'O(s) Grande(s) Erro(s) de Zenem Sanchez – Uma resposta' (Pedro Alcântara)
Se verifica, então, que o camarada trava uma dura batalha contra o que julga ser o pensamento de FMR, mas, assim que a poeira baixa, fica claro de que seu agressor não passava de um mero espantalho, enquanto os argumentos de FMR não apresentam sequer um arranhão!
Por Pedro Alcântara para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Desde que tenhamos essa linha presente sempre presente encontramos as respostas políticas de cada dia. Pelo menos foi isso que eu aprendi do leninismo.”- Francisco Martins Rodrigues, Oitenta anos a enterrar Lênin, 2004
A tribuna escrita pelo camarada Zenem Sanchez (que tomarei a liberdade de chamar simplesmente de Zenem) causou certo espanto de minha parte. Certamente é de grande importância a discussão sobre as ideias de um pensador tão importante (quanto controverso) como Francisco Martins Rodrigues (ou FMR). Minha apreensão, no entanto, reside na forma como os trechos, já sem uma boa dose de contexto, são interpretados.
Se verifica, então, que o camarada trava uma dura batalha contra o que julga ser o pensamento de FMR, mas, assim que a poeira baixa, fica claro de que seu agressor não passava de um mero espantalho, enquanto os argumentos de FMR não apresentam sequer um arranhão!
Isso não significa que sua argumentação não seja digna de consideração. Sendo assim, creio que todos nos beneficiaremos de uma análise profunda de sua tribuna. Devo acrescentar que os erros que discutiremos não serão apresentados na ordem que aparecem no texto, mas na que melhor facilite a exposição.
O primeiro erro do camarada Zenem, parafraseando seu texto, é seu uso do conceito de espontaneísmo. Como o camarada não se dá ao trabalho de definir os pormenores do que considera por “espontaneísmo” (para além de chamá-lo de idiotice), tomarei a liberdade de pegar emprestada a explicação de Lênin sobre o assunto.
Logo no início do século XX, Lênin se lança à luta contra a tendência dos “economistas”. Entre outras, uma das principais características do pensamento desse grupo era o espontaneísmo, ou seja, uma supervalorização do movimento operário “puro” em detrimento da consciência social-democrata. Como coloca Lenin, os espontaneístas seriam aqueles que:
“imaginam que o movimento puramente operário é, por si próprio, capaz de elaborar, e que elaborará, uma ideologia independente [em relação ao trade-unionismo] desde que os operários arranquem o seu destino das mãos dos dirigentes”.[1]
Devido à clara importância que dá FMR ao partido em ambos os trechos citados, seria ridículo acusá-lo de espontaneísmo. Se trata, então, de uma questão relacionada à espontaneidade.
Aqui esbarramos num segundo problema: Zenem realmente discute – e no primeiro momento parece sair na frente – com uma definição de espontaneidade, mas não a de FMR. Isso decorre do fato de que há duas definições possíveis para a espontaneidade.
A primeira, a que o camarada busca refutar, seria a dos antigos membros da II Internacional, segundo a qual a revolução surgiria naturalmente em reação à opressão capitalista, cabendo ao partido simplesmente dar forma a essa revolta. Algo como “pensar um cenário quase ideal e determinista em que uma explosão social vai acontecer e a partir daí entramos em ação”[2], nas palavras de Zenem.
A segunda, mais coerente com os escritos de FMR, seria ligada a agir por iniciativa própria, sem coação externa. A espontaneidade da revolta dos dominados a torna justamente imprevisível[3]. É impossível prever como se darão as formas de luta em determinada época histórica. Lênin, na esteira da Revolução de 1905, declara que o marxista:
“reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as inventa, mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento”[4].
Quando o camarada diz que “a explosão social é iniciada e, mesmo que diante de um contexto de propensão, sempre há um elemento iniciador e politizador que arrasta o restante da massa para a ação explosiva”, não é justamente esse o significado de espontânea? Pior, se “não podemos ter certeza de que esses elementos existirão e nem que realizarão ações nesse sentido”[5], não estaria Zenem confessando que, justamente por seu caráter espontâneo, não seria possível prever as formas de luta?
Desse ponto em diante, quando Zenem desenvolve suas ideias acerca do papel do partido, a tribuna desanda de vez. Se ele tem razão em dizer que os revolucionários podem (e devem), em certas circunstâncias, agir para aumentar a probabilidade de uma explosão social, isso nunca foi garantia de nada. Como poderíamos dar respostas concretas às questões estratégicas da revolução se nem sabemos ainda as formas de luta que serão empregadas? A resposta é que não podemos. E nem devemos.
É sobre isso que discorre FMR nos seus textos “Ação comunista em tempo de maré baixa”, “Três doenças da esquerda” e, se Zenem tivesse se dado ao trabalho de voltar míseras 13 páginas, o muito mais claro “Oitenta anos a enterrar Lênin”. Mas, para tratar desses textos, devemos, como deveria todo marxista, primeiro entender em que contexto eles são escritos.
Ao repetir, diversas vezes, a necessidade de reavivar a doutrina marxista e de afirmar a independência de classe do proletariado, FMR tem em mente não só a histórica política de aliança com a burguesia liberal do PCP, mas principalmente a desastrosa atuação dos comunistas portugueses durante o período revolucionário de 1974-75[6]. Portugal, ao final da transição do regime fascista para a “democracia avançada” que planejava Álvaro Cunhal, era, provavelmente, um dos lugares mais desfavoráveis à atividade partidária que já se viu.
Começa a fazer sentido a “postura purista” da qual Zenem desdenha. Quando FMR diz que devemos “distinguir continuamente os interesses políticos do proletariado dos da pequena-burguesia”[7], que o partido “ou goza das vantagens de se instalar no sistema, ou sofre as consequências de ser revolucionário”[8] e que se deve “manter a fidelidade aos interesses gerais e a longo prazo da classe, não se deixando ir atrás de êxitos conjunturais, pagos com absorção pelo sistema”[9], ele não está defendendo um purismo ou a criação de uma seita, mas justamente respondendo a uma política que, nos tempos desfavoráveis, em que as revoltas ainda são desarticuladas, pode nos desviar completamente de nossos objetivos.
Mas talvez o ponto de FMR ainda não tenha ficado claro. Para dar um fim no assunto, pode ser útil nos voltar a um escrito do Partido Comunista Internacional intitulado “Considerações sobre a atividade orgânica do partido quando a situação geral é desfavorável historicamente”. Partindo do mesmo diagnóstico de “maré baixa”, o texto do PCI não pode deixar de chegar a conclusões semelhantes. Aqui, no entanto, há uma diferenciação importantíssima que não existe na exposição de FMR: o partido histórico e o partido formal.
Essa diferenciação, presente já em Marx e Engels, é fundamental para entendermos as tarefas dos comunistas segundo a situação histórica em que se encontram. O partido histórico, nesse caso, seria referente ao conteúdo, a doutrina invariante do marxismo. Por outro lado, o partido formal seria contingente, referente à forma que toma, e que “atua como força prática física de uma parte decisiva do proletariado”[10]. Obviamente as definições podem se desdobrar ainda mais, mas por enquanto nos basta a síntese.
Dessa forma, em momentos em que a eclosão dos grandes antagonismos de classe ainda não toma seus contornos definitivos, a tarefa do partido que se pretende revolucionário é de “enfrentar [...] ataques à linha política do partido histórico, obliterando toda a miséria e mesquinharia que vimos nas idas e vindas dos vários, infelizes, partidos formais”[11]. Só assim pode a doutrina marxista ser transmitida intacta para além das gerações de militantes. É disso que fala FMR quando diz que, enquanto tivermos em vista a linha vinda de Lênin (e iniciada por Marx e Engels), não nos faltarão respostas políticas.
NOTAS:
- V. I. Lênin, Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento, 1902.
- Zenem Sanchez, O grande erro de Francisco Martins Rodrigues, 2023. Disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/o-grande-erro-de-francisco-martins-rodrigues/
- Para uma discussão mais aprofundada sobre a relação de espontaneidade e o partido, ver Espontaneidade, Mediação, Ruptura, do coletivo Endnotes, tradução de Proelium Finale. Disponível em: https://proelium.medium.com/espontaneidade-mediação-ruptura-a2f135508e0d
- V. I. Lênin, A Guerra de Guerrilhas, 1906.
- Ambas as citações do parágrafo retiradas de O grande erro de Francisco Martins Rodrigues. Ver nota de no 2.
- Isso pode ser constado após a leitura de Oitenta anos a enterrar Lênin, presente na edição d’O Anti-Dimitrov lançada pela editora Lavrapalavra. Se Zenem não leu o artigo ou preferiu ignorá-lo só pode ser motivo de especulação.
- Francisco Martins Rodrigues, Oitenta anos a enterrar Lênin, 2004
- Francisco Martins Rodrigues, Três doenças da esquerda, 2006
- Francisco Martins Rodrigues, Ação comunista em tempo de maré baixa, sem data.
- Partido Comunista Internacional, Considerações sobre a atividade orgânica do partido quando a situação geral é desfavorável historicamente, tradução de Proelium Finale. Disponível em: https://proelium.medium.com/considerações-sobre-a-atividade-orgânica-do-partido-quando-a-situação-geral-é-desfavorável-654b2f9da81f
- Ver nota de no 10.