'O que é o federalismo e como se expressa entre os comunistas' (Euclides Vasconcelos)

Para além do mandonismo, das práticas arbitrárias, das perseguições e demais situações que vimos vir à tona desde o início do racha que cada vez mais se consolida, os “vários PCB” existem também quando o tema é a própria linha política do partido e seus desdobramentos.

'O que é o federalismo e como se expressa entre os comunistas' (Euclides Vasconcelos)
"Pois sendo o federalismo uma das alternativas político-administrativas para a organização do Estado burguês, pode parecer estranha sua manifestação com tamanha força em um partido comunista."

Por Euclides Vasconcelos para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Por anos falou-se em federalismo no velho PCB. Vimos várias de suas manifestações surgirem ou serem incentivadas entre nós, da base aos dirigentes locais e nacionais, cada qual militando ou conduzindo seu próprio partido nas localidades, sejam elas estados inteiros, regiões menores ou mesmo municípios. Com “seu próprio partido” digo exatamente isso: desde 1992 e do início da reconstrução do PCB, nunca houve um único Partido Comunista Brasileiro, mas vários “partidos dentro do partido”. Para além do mandonismo, das práticas arbitrárias, das perseguições e demais situações que vimos vir à tona desde o início do racha que cada vez mais se consolida, os “vários PCB” existem também quando o tema é a própria linha política do partido e seus desdobramentos.

Como exemplo podemos olhar ao tantas vezes mencionado “giro operário e popular” que em 2016 foi pela primeira vez formulado por Edmilson Costa e em 2018 absorvido pelo VIII Congresso da juventude. A sua aplicação nos estados virou tema de uma segunda rodada de disputas: aqui era aplicado de um jeito, acolá de outro e num terceiro era tido como letra morta. Em Minas Gerais travou-se em 2021 uma batalha onde de um lado a militância jovem formulava e aplicava medidas de aplicação do giro, dada a necessidade de diversificar o perfil majoritariamente universitário dos militantes, e, de outro, militantes do Comitê Central e seus grupos, agitavam e agiam abertamente contra tais medidas. Em outros estados, não havendo planejamento das direções nem criadas as condições de torná-lo possível, o giro nunca existiu para além do papel. Há ainda os locais onde ele possibilitou, em alguma medida, diversificar o perfil e a origem social da militância na juventude: de uma militância de origem quase que completamente pequeno-burguesa e universitária, passamos a uma juventude que conta com cada vez mais elementos vindos das camadas precarizadas da classe trabalhadora.

Como tudo no velho PCB, o que seria aplicado sempre dependeu de onde seria aplicado. Assim, nunca houve no partido nada que se assemelhe a uma estrutura nacional e centralizada na política, no método, no planejamento ou na ação. Existia, antes, seu exato contrário: uma miríade de pequenos partidos que digladiavam-se entre si sem um denominador comum, já que até sobre a estratégia os diferentes dirigentes propagam para fora diferentes linhas sob o disfarce da “liberdade de cátedra” — que entre os acadêmicos marxistas significa dizer que se você tem uma cátedra universitária para chamar de sua, propagandear o contrário da linha partidária não lhe causará nenhum desconforto e tampouco será apontado como uma afronta ao “centralismo democrático”.

As eleições para o Comitê Central podem também ser usadas como exemplo. A proporcionalidade que regia as escolhas de nomes para a direção nacional do partido nada mais é que a expressão em números da lógica equivocada de que cada estado precisa de determinado número de representantes de acordo com o seu tamanho e peso político, real ou não. Assim sendo, ao invés de a eleição de determinado nome para direção ser uma consequência do trabalho de formação de quadros do partido e do destacamento daquele nome como um quadro, um indivíduo preparado e dotado de determinadas capacidades, habilidades e potencialidades, a escolha é regida pelo direito de determinada localidade a alçar alguns dos seus à posição de dirigente. São Paulo precisa de tantos dirigentes porque é a fatia do bolo que lhe cabe. O Rio de Janeiro, orgulhoso demais de sua história para ficar atrás de São Paulo, precisa estar em equilíbrio com este último. Minas Gerais também merece destaque, para evitar uma sub-representação deste sudeste de ego ferido.

Dos cinquenta e cinco nomes que constavam na nominata para o novo Comitê Central apresentada ao XVI Congresso (estendida a 60 e finalmente a 61 depois que uma tentativa de golpe da mesa quase implodiu a plenária final), mais da metade eram do eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Uma irônica repetição da história do poder no Brasil — a antiga capital imperial e republicana e os estados das oligarquias do “café com leite”, um dos quais o inconteste centro industrial do país. Outro exemplo dentro do exemplo: Pernambuco tinha, no CC cessante, três “cadeiras”. A  Comissão Eleitoral a princípio manteria os mesmos três na nominata e incluiria mais dois (um aumento de bancada decorrente do aumento da importância do estado na contagem das garrafas), mas um daqueles três “antigos” declinou do posto. Resultado: coube a um delegado de Pernambuco apresentar uma “questão de ordem” para aumentar de 55 para 60 o número máximo de membros para o novo Comitê Central (pensem vocês, o congresso estruturou-se de uma forma que a nominata inicial tinha desde o início a quantidade limite de nomes). Aprovada a questão de ordem das comadres, tratou-se de incluir um outro nome de Pernambuco para o lugar do dirigente que declinara, assim a “bancada pernambucana” no CC não saiu prejudicada.

A junção de frações locais, regionais, de categorias profissionais e outras que se possam listar era a real condição de existência do velho PCB. Agora com o racha, o que nos compete? Como garantir a não repetição do ambiente onde nos formamos e, além disso, não incorrer no risco de que o combate à concentração política e numérica do partido no Sudeste deságue em outras formas de federalismo, vindas agora dos estados e regiões periféricas de forma defensiva, em razão do isolamento em que foram postos até aqui?

1. Uma definição de federalismo

O federalismo é, em sua concepção original, uma forma de organização e distribuição do poder estatal onde as unidades federativas (os estados, no caso brasileiro) preponderam localmente diante das representações do poder central (o governo federal). Em alguns casos, a autonomia local diante do governo federal confunde-se com uma quase independência dos estados, que decidem sozinhos questões como a política educacional, fiscal, suas leis e política penal e outras atribuições. O principal exemplo no mundo de hoje são os Estados Unidos, que tem esse nome não por outro motivo: trata-se da união de cinquenta estados quase que independentes entre si, surgidos inicialmente a partir da divisão colonial inglesa e do estabelecimento das “Treze Colônias” na América do Norte. A separação política e administrativa das colônias, o processo de independência, a escravidão, a guerra civil e posterior unificação formaram uma sociedade atravessada por profundas rivalidades regionais que só conseguiu algum grau de unificação graças ao caráter imperialista de seu desenvolvimento. Seja com o nascimento da Doutrina Monroe e o destino manifesto, seja quando assumiu a dianteira do capitalismo mundial a partir do pós-Segunda Guerra, a colcha de retalhos a que chamamos Estados Unidos da América só se mantém unida internamente canalizando para fora (principalmente na forma de guerras de rapina) as insatisfações que outra forma explodiriam como uma panela de pressão um país que parece sempre à beira da guerra civil.

No Brasil, a proclamação da República em 1889 e a primeira constituição republicana (1891) introduziram o federalismo como o princípio organizativo dos Estados Unidos do Brasil, um país pensado à imagem e semelhança dos irmãos do norte. A “República Velha” e sua “política dos coronéis” nada mais foi que a forma grosseira de referir-se um país organizado de forma que os estados e suas oligarquias possuíam total autonomia política face a um governo central fraco e desautorizado. A Revolução de 30, por sua vez, foi o processo político pelo qual uma fração das oligarquias insatisfeita com o jogo político quebrou o acordo, assumiu o leme do Estado brasileiro e subjugou as demais, centralizando o poder político, quebrando as resistências locais, desarmando os coronéis e caudilhos e submetendo as forças públicas estaduais (que em forma de polícia cumpriam o papel de força armada de cada unidade federativa) à sua própria força armada, o Exército. Desde então e a partir das mudanças pós-1930, a dinâmica política nacional não voltou aos moldes federalistas anteriores, nem no papel, nem na prática. Mas continuou sendo um elemento presente e ainda hoje é um princípio balizador de um “processo de pactuação” entre União e estados, já que só seria diferente se o Estado e sociedade brasileiras fossem radicalmente reformados ou postos do avesso em algum processo histórico maior, mais traumático e — por isso — mais renovador.

Pois sendo o federalismo uma das alternativas político-administrativas para a organização do Estado burguês, pode parecer estranha sua manifestação com tamanha força em um partido comunista. Mas para isso existe uma razão que se torna óbvia uma vez que é dita: a estrutura organizativa do velho PCB respondia aos ditames da legislação eleitoral burguesa e se organizava segundo a mesma lógica que rege a democracia burguesa no Brasil.

O processo de reconstrução revolucionária iniciado após 1992, tão mencionado e tão pouco estudado, uma vez que vence a batalha pelo direito ao nome e símbolo de comunistas, encampa uma segunda e mais longa batalha: a filiação em massa e abertura de diretórios partidários por todo o Brasil segundo exige a legislação eleitoral — só assim seria possível criar um partido daquele tipo naquele momento. E aqui não se trata de apontar de maneira acusatória como responsáveis aqueles que no passado enfrentaram essa batalha. Trata-se, antes, de buscar um diagnóstico: a reconstrução começou com uma frente de militantes e alas cujas posições eram não só divergentes como completamente antagônicas (e hoje a conta dessa grande frente foi posta na mesa). Começando assim, precisou submeter-se à lógica do direito eleitoral burguês e fundar um partido à imagem e semelhança dos demais, seguindo critérios que não foram estabelecidos por nós e que por isso nenhuma relação tinham com nossas necessidades.

Nossos Comitês Regionais até aqui não tiveram sob sua autoridade e responsabilidades regiões delimitadas por nós a partir de uma análise qualificada das características econômicas, geográficas, políticas e sociais do país, mas seguiam pura e simplesmente a divisão administrativa das unidades federativas da República, os estados — eram diretórios estaduais com outro nome. Por que cidades como Petrolina e Juazeiro, no sertão nordestino, separadas por uma ponte e uma fronteira invisível, mas unidas pelo Velho Chico e toda uma dinâmica unificada (a ponto de pessoas morarem em uma e trabalhar em outra), precisam responder a Comitês Regionais separados (Pernambuco e Bahia, respectivamente)? Por que nunca sequer se levantou a óbvia constatação de que ali seria muito mais efetiva a criação de algo como um Comitê da Região do Vale do São Francisco? Diversas contendas e problemáticas entre direções estaduais sem nenhuma razão de ser senão a óbvia burocratização, o engessamento dos trabalhos e o nítido afastamento político e geográfico de direções concentradas nas capitais por anos atrapalhou o nosso trabalho porque um ou outro Comitê Regional se recusava a abrir mão de “sua jurisdição”.

A partir de que momento os comunistas passaram a respeitar as fronteiras administrativas do Estado burguês e adaptar sua estrutura organizativa segundo elas? O federalismo que se expressa entre os comunistas não é outra coisa senão a consequência lógica da adoção das normas políticas, administrativas e eleitorais do Estado brasileiro, construído sobre bases federalistas e por elas atravessado. Enquanto o partido comunista se restringir aos limites da ordem, não fará outra coisa que não espelhar seus fundamentos. No caso presente, o federalismo entre nós é a repetição automática das desigualdades regionais, da concentração local e das disputas das localidades entre si e contra o poder central — fenômenos próprios de um país desigual, imenso e variado. Para os comunistas, que acima de tudo precisam da inventividade, da ousadia e das forças jovens, é preciso submeter à sua lógica o terreno onde se atua, não submeter-se à lógica de quem controla o terreno. Só assim florescerão os frutos da variedade e potencialidade das forças trabalhadoras brasileiras.

2. Novas e nossas expressões de um velho problema

Recentemente um camarada e amigo traçou importantes linhas para pensarmos o federalismo a partir do que chamou de “falsa dicotomia” ou “monopolismo tacanho do debate político nacional entre uma suposta ala paulista e outra fluminense”. E assim o foi recentemente, quando questões profundas e acumuladas ao longo dos últimos anos vieram à tona com nitidez através da cisão que ainda vivemos. Mesmo com todas as particularidades de um dos mais sui generis rachas da história do PCB, uma considerável quantidade de militantes insistem em caracterizar a cisão como algo “proveniente de São Paulo”, orquestrado por indivíduos e grupos paulistanos que acima de tudo e todos arrastaram os idiotas úteis.

Essa visão empobrecida — mais do que a cegueira de quem em momento algum conseguiu estar à altura da crise e por isso foi por ela engolido — é reflexo justamente da “identidade autocentrada e irrefletida da intelectualidade e militância comunista do Sudeste do país”. Sem tirar os olhos do próprio umbigo e incapazes de conceber não só o Brasil como também o PCB fora do Sudeste, não souberam o que fazer senão espernear.

Mas por mais tentador que seja escrever sobre o racha como alguém que esteve no olho do furacão, esta tribuna não é sobre isso. Precisamos entender que o que chamamos de federalismo é, no Brasil de nosso tempo, a expressão de um antigo problema na estruturação de um partido revolucionário (especialmente em países de grande extensão territorial): a dicotomia “local” versus “nacional”.

Lênin, em seu “Que fazer?” e outras obras, dedica-se bastante a reflexões desse tipo. No esforço de seu “plano para a criação, simultaneamente e por diversos lados, de uma organização de combate comum a toda a Rússia”, Lênin observou de perto as várias manifestações entre os social-democratas russos das disputas entre localidades, de preconceitos regionais, étnicos e raciais que já àquela época se apresentavam como uma das principais dificuldades para a atuação dos revolucionários no país que, além de o mais extenso do globo, concentrava centenas ou milhares de etnias, povos e nacionalidades submetidas à opressão do Estado russo.

Nossa luta contra o federalismo só pode ser encarada de uma forma: trata-se de um importante passo na construção de uma “organização de combate” comum a todo o Brasil, um país de unidade e integração nacionais frouxas e instáveis, formadas como tal a pouquíssimo tempo. Para que essa construção tenha sucesso, o combate à concentração local será a maior e a primeira das batalhas — e nenhuma medida de curto prazo dará conta do problema por completo, por mais tentadora e incisiva que possa parecer. A partir dessa grande batalha e ao longo dela, outros problemas podem surgir. O maior, mais provável e já há algum tempo manifestado é que as localidades afastadas da concentração de nossa organização no Sudeste (e quanto mais geograficamente afastadas, mais experimentaram o afastamento e isolamento político) passem, na defensiva, a encampar uma luta contra tal ou qual local ao invés da luta contra o problema em si e contra dirigentes à frente dos problemas que, por um ou outro motivo, resistem à retificação de suas práticas.

É o caso, por exemplo, de locais onde o federalismo manifesta-se em duas diferentes faces quando prospera a contradição capital versus interior. De um lado, uma capital que centraliza a política a partir e com fim em si mesma e, de outro, uma ou outra região interiorana que envolve-se em um casco autoprotetivo e se nega a qualquer contato com as demais localidades de um estado, eventualmente se furtando mesmo de diálogos nacionais.

O contrário do federalismo manifestado na identidade autocentrada dos comunistas no Sudeste do Brasil não são regiões desassistidas em postura defensiva e ensimesmadas, olhando apenas para si. Quando assim o é, por mais aguerridos que sejam os militantes que se levantam em defesa da “sua região”, é ainda o federalismo que dita como agimos e pensamos, uma vez que não foi atacada a raiz do problema. Até aí nossa organização de combate estará voltada para dentro e sequer merecerá tal nome. É só através do fortalecimento dos organismos em seus locais e de uma formação de quadros que permita, a médio e longo prazo, termos capitães distribuídos por todo o território nacional e generais das mais distantes regiões discutindo não sobre elas e representando-as, mas debatendo e decidindo os rumos da organização em todo o território nacional, que teremos algo como um Estado-Maior revolucionário no Brasil.

3. Unidade territorial e unidade nacional

Por fim, é importante lembrar que o território brasileiro e suas fronteiras (internas e externas) não foram sempre como são hoje. No caso das fronteiras externas, foram estabelecidas ao longo dos séculos de empresa colonial europeia nesta porção da América e pelos interesses imperiais do Estado brasileiro no pós independência, com mudanças menores durante o período republicano. Já no caso das fronteiras internas (os limites territoriais dos estados e a política de regionalização do território nacional), o estabelecimento é mais recente: foi o poder republicano o principal responsável pelas sucessivas reorganizações do espaço brasileiro até a conformação dos dias de hoje.

Não é coincidência, por exemplo, que a região Norte do Brasil seja de tal forma ignorada e escanteada a ponto de estabelecer-se um status quo que, apesar do reforço permanente da soberania brasileira sobre o território, olha para aquela porção de terra quase como se não fosse Brasil e ao seu povo como uma coisa qualquer que não brasileiros. E aqui está um ponto na maioria das vezes desconsiderado: a porção geográfica que hoje chamamos Norte do Brasil por boa parte do tempo realmente não foi parte do “Estado do Brasil”. A administração colonial portuguesa dividiu as terras sob seu controle na América em duas grandes colônias: o Estado do Grão-Pará e Maranhão (criada em 1621 como Estado do Maranhão e renomeada em 1654 para Estado do Maranhão e Grão-Pará, antes da renomeação final em 1751) e o Estado do Brasil, aquele com o qual estamos familiarizados e comumente acreditamos ser o que sempre existiu. Ambos os territórios só passaram a responder de maneira unificada a uma mesma administração em 1823, quando o Império do Brasil — e sua independência como desdobramento do império português — anexou a ainda colônia portuguesa do Grão-Pará.

Mapa aproximado da administração colonial portuguesa na América em 1766. O Estado do Grão-Pará e Maranhão compreendia, a essa altura, as províncias de Rio Negro, Grão Pará, Maranhão e Piauí. Elaborado por Jhonatan Gomes Diniz para o Wikipédia.

Quando hoje olhamos para a dinâmica do poder político no Brasil e constatamos uma região Norte desassistida e desintegrada, apartada dos círculos de poder, desconsiderada nos cálculos políticos e isolada geograficamente pela ausência de infraestrutura que a conecte ao restante do território nacional estamos encarando o resultado do desenvolvimento de uma relação de parasitismo — de colonialismo interno. Anexado pelo Império do Brasil, o Grão-Pará deixa de ser a colônia amazônica de Portugal para se tornar uma colônia interna do Estado brasileiro, mesmo que sob os disfarces de uma unificação. O desenvolvimento do capitalismo, do poder burguês e a República como forma política, seja a de outrora, seja a de hoje, sempre viram a região da mesma forma: uma imensa fonte de pessoas e recursos a serem explorados até a exaustão e destruição para a acumulação de capital da metrópole chamada Brasil.

E o Nordeste? Que outra função econômica para o capitalismo brasileiro a região teve se não a de reserva de mão de obra para os momentos de explosão de um ou outro setor em qualquer parte do território nacional? O ciclo da borracha entre o fim do século XIX e início do XX (e sua sobrevida nos anos da Segunda Guerra Mundial), a construção de Brasília, a construção da São Paulo que conhecemos hoje nos anos 50 e 70 e outros exemplos mostram que essa região que inicialmente fora centro do poder colonial português e menina dos olhos do império ultramarino, cobiçada e disputada por outras empresas coloniais europeias graças à produção de açúcar, fora transformada num enorme quartel para o exército industrial de reserva que foram os migrantes nordestinos do século XX.

Há ainda outros elementos a serem considerados, como a relativamente recente expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste brasileiro e o aumento de sua influência na economia e política nacionais, cada vez mais desindustrializada e agroexportadora neste primeiro quartel do século XXI. Ou ainda nosso insistente desconhecimento de um Sul cuja identidade talvez seja a mais ferrenha, resistente e disputada até hoje, fruto do afastamento sui generis de uma região não tão geograficamente apartada dos centros de poder, mas suficientemente autônoma e experiente para por dez anos sustentar a existência de uma república própria junto ao esforço de uma guerra civil contra o Império do Brasil. Região essa a última a ser anexada por completo pelo Estado brasileiro e cuja construção da identidade foi gestada em séculos de conflitos — vide as disputas entre Portugal e Espanha pelo seu domínio, as guerras guaraníticas nas regiões das Missões e todas as tendências e conflitos separatistas, bem como as inúmeras guerras civis (uma delas não coincidentemente batizada de “revolução federalista” pelo esforço de autonomia diante da República recém-instaurada).

Todo esse passado e sua história de lutas sufocadas em sangue segue “como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”, que comprime a nós e ameaça o nosso futuro. Entre as grandes necessidades as quais precisamos nos dedicar, está a elaboração de um mapa atualizado da questão nacional no Brasil que compile não só teses sobre a dinâmica entre as regiões, mas também especifique e detalhe os povos que nelas vivem em toda a sua diversidade e reivindicações: povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, povos ciganos e a enorme variedade de comunidades de imigrantes (recentes e históricas) e seus descendentes, bem como os diversos tipos de brasileiros que o século da globalização e o cosmopolitismo insistem em homogeneizar. Em resumo: todos aqueles que fazem do Brasil um caldeirão de povos com características e potencialidades das mais variadas — todos e cada um deles submetidos à opressão do Estado brasileiro e explorados pelo capital.

Está formado um país cuja unidade é atravessada por dinâmicas e desigualdades muito próprias. É sobre esse terreno e a partir dos problemas existentes que haveremos de atuar. Como nos apontou o já mencionado camarada: “o Partido Comunista no Brasil somente será digno do seu nome quando for nacional em sua unidade e diversidade, quando compreender quantos forem os ‘brasis’ que existem entre nós. Enquanto não estiver à altura desta tarefa, nosso Partido nada poderá ser.” Enquanto não estivermos à altura desta tarefa, não seremos ainda uma organização de combate comum a esse imenso Brasil. [1]


Referências:

[1] “O Sudeste e o chauvinismo brasileiro: entraves para um partido nacional”, por Arthur Campos para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário (https://emdefesadocomunismo.com.br/o-sudeste-e-o-chauvinismo-brasileiro-entraves-para-um-partido-nacional/).