O Golpe de 1964 e o problema do poder

A propósito de situação idêntica, conhecido estadista francês, ao diagnosticar a derrota sofrida em seu país pelas forças democráticas, em certo episódio, explicou: “Tínhamos o governo, mas não tínhamos o poder”.

O Golpe de 1964 e o problema do poder
Brasília, 1958. Foto de Marcel Gautherot.

Por Nelson Werneck Sodré

Excerto retirado do livro Introdução à revolução brasileira, 3ª edição, publicado pela editora Civilização Brasileira, 1967, p. 250-253.


Os que, apreciando as grandes linhas do desenvolvimento histórico, verificam que ele é ascensional, sempre no sentido do avanço, da libertação do homem, esquecem, às vezes, que, visto em detalhes, aquele desenvolvimento se apresenta pontilhado de curvas, ziguezagues, avanços e recuos, sem mencionar o aspecto do ritmo, ora lento, ora acelerado. A interrupção da vigência de instituições democráticas – na relatividade peculiar às condições brasileiras daquela fase – em abril de 1964, surpreendeu e deixou perplexos aqueles que supunham uniformemente positivo e ascensional o desenvolvimento histórico. As novas gerações, particularmente, que vinham participando da atividade política de pouco mais de um decênio a esta parte, e não tinham, portanto, a experiência da derrota, sofreram sério impacto que levou muitos ao desespero, ao desânimo, à descrença, ao pessimismo, de que emergiram, pouco depois, com acentuada e generalizada tendência ao radicalismo e à proposição de teses e ações em contraste com a realidade e, portanto, com as possibilidades. A derrota inesperada desorienta, realmente, e, de todas as formas, a interrupção do processo democrático corresponde sempre a atraso,

É fácil comprovar, no caso concreto ocorrido no Brasil, esse atraso: atraso político, atraso econômico, atraso social, atraso cultural. Não há benefício algum nas derrotas, visto o quadro em conjunto. Mas é inequívoco que elas ensinam, de forma contundente. Saber aprender a lição é uma necessidade; não perder a perspectiva, exigência imperiosa. O balanço da derrota das forças democráticas, em nosso País, é realmente impressionante: destruição da atividade sindical, dispersão dos quadros melhores que dirigiam as massas proletárias, instalação do policialismo nas organizações dos trabalhadores, cancelamento de seus direitos mais elementares, redução dos salários em numerosos setores, imposição de progressiva e continuada redução em todos, privação da escolha eleitoral, cassação de mandatos eletivos e privação de direitos políticos às personalidades mais eminentes e populares, dissolução de partidos, prisão de elementos os mais destacados em todos os campos da atividade política e cultural, exílio de dirigentes, mestres, artistas, cientistas, simulacro de legislação eleitoral, escolha de substituto do chefe do Governo por Congresso sem condições para isso, prorrogação de prazo de permanência no poder do chefe inicial do Governo oriundo do golpe de abril, processos sucessivos de milhares de brasileiros, jurisdição militar para julgamento desses processos, censura ao cinema, ao rádio, no teatro, à televisão, à imprensa, à correspondência, destruição das organizações estudantis e da estrutura universitária, fechamento de entidades e instituições culturais, direitos ditatoriais concentrados nas mãos do chefe do Executivo, cancelamento do resguardo da patente dos militares, da inamovibilidade e intangibilidade dos juízes, violação dos direitos individuais, com invasão dos domicílios, apreensão de correspondência, livros, documentos privados, prisões sem motivo, sem mandato e sem prazo, apreensões de livros e invasão de editoras, suspensão de jornais e revistas e, por fim, culminando essa série de atentados, de arbitrariedades e de violências, uso constante da tortura e do assassínio, institucionalização da delação, fundação de amplo sistema de espionagem, entrega do controle da economia e das finanças do País a forças estrangeiras, submissão total na política exterior ao imperialismo, adoção de planejamento econômico que leva à desnacionalização, ao desemprego, à estagnação, desespero em quase todos os lares, divisão e ódio estabelecidos como sistema, – o Brasil verdadeiramente arrasado política, econômica, social e culturalmente. Balanço terrível, sem a menor dúvida, e particularmente se considerarmos, para termo de comparação, a fase democrática ascensional que se vinha desenvolvendo e dentro de cujo processo era fácil prever o sentido e o conteúdo da crise econômica e financeira que já se vinha acentuando e de que o golpe de abril foi o coroamento. Balanço capaz de levar à perplexidade, à confusão, ao desanimo, ao desespero, ao pessimismo aqueles que não conheciam a experiência da derrota e julgavam-na hipótese impossível.

Três anos após a instauração da ditadura, é já possível estabelecer outro balanço, entretanto, começar a ver o outro lado da realidade. Em primeiro lugar, é agora muito mais fácil admitir que as forças democráticas estavam politicamente derrotadas, em 1964, quando sobreveio a derrota militar, que apenas sancionou aquela e por isso foi tão fácil, não encontrando resistência ponderável. O sintoma da referida derrota política era tão visível que não era visto: a reação detinha o poder; não o tomou, apenas expeliu dele os elementos que temia. Trata-se, no fim de contas, de um dos problemas menos conhecidos e menos estudados, entre nós, – o problema do poder. A propósito de situação idêntica, conhecido estadista francês, ao diagnosticar a derrota sofrida em seu país pelas forças democráticas, em certo episódio, explicou: “Tínhamos o governo, mas não tínhamos o poder.” Mas isso, lá como aqui, só se tornou evidente depois da derrota, quando as forças democráticas foram despejadas do governo. No Brasil, na realidade, elas jamais detiveram o poder. Daí os golpes oriundos do poder, – do verdadeiro poder – golpes de dentro para fora, excluindo da função pública determinado ou determinados funcionários ou mandatários, que eram governo mas não eram poder. A análise acurada dos golpes de 1937, 1945, 1954 e 1964 mostra essa trivialidade, esse traço óbvio: detentores do governo que perdiam função por não serem detentores do poder. Sem falar na tentativa de 1961 e na decisão de 1955. Note-se: em nenhum desses casos, houve resistência ponderável, houve luta; os detentores do poder agiram contra os que não detinham poder. Em 1961, quando parcelas poder divergiram, foi procurada a acomodação, tudo desembocou no golpe político do estabelecimento do parlamentarismo. Em 1964, os detentores do poder decidiram afastar do governo aqueles que não lhes inspiravam confiança, após terem retirado deles as parcelas de poder que haviam conseguido pelo uso do aparelho de Estado – após isolá-los, politicamente. Operaram na posse plena e pacifica dos instrumentos de poder, que detinham. Só essa constatação é suficiente para deixar claro que a democracia brasileira era, na realidade, muito débil, como débeis eram as forças democráticas que travavam, então, a luta política pelas reformas, entre as quais, paradoxalmente, havia componentes que não só se julgavam fortes para efetivar aquelas reformas, de conteúdo democrático e nacional, plenamente compatíveis com o regime capitalista, mas para ir adiante e introduzir reformas de conteúdo socialista. Os que não aprenderam com essa lição arriscam-se a perder o fio da História.