'O giro operário-popular e as áreas estratégias: outros pontos de partida e algumas perguntas fundamentais' (João Chau)

Inserção nas redes de solidariedade já existentes e constituir nossas próprias, é não só avançar na nossa inserção mas também preparar nossa organização do ponto de vista logístico e militar.

'O giro operário-popular e as áreas estratégias: outros pontos de partida e algumas perguntas fundamentais' (João Chau)
"Não temos terremotos acontecendo hoje no Brasil, camaradas. Mas temos, todo ano, enchentes, deslizamentos, apagões e uma verdadeira guerra contra a classe trabalhadora e negra nas periferias de todo país. Se inserir nas redes de solidariedade já existentes (e que até onde entendo existem, precisam existir e têm alguma funcionalidade, afinal tudo segue “normalmente”) e constituir nossas próprias, é não só avançar na nossa inserção mas também preparar nossa organização do ponto de vista logístico e militar."

Por João Chau para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

1. Áreas estratégicas - alguns dos erros e o que já sabemos (e que todos o saibam)

Camaradas, ao me deparar com nossas pré-teses de estratégia e tática, no que dizem respeito ao giro operário-popular, o perfil da classe trabalhadora e seus setores estratégicos inevitavelmente voltei para 2022, época em que questionei o porquê de construirmos determinada entidade ou sindicato. Caros camaradas me apresentaram então o embasamento do PCB para tal: num simpático livreto da UC (creio eu), com uma listagem das áreas estratégicas e cerca de 1 ou 2 linhas sobre cada. Fim. 

Avalio que podemos e devemos dar mais passos à frente do que é trazido em: 

“§60 O setor de transporte (incluído, aqui, o setor portuário e aeroportuário); o setor energético (abrangendo petróleo, gás e derivados); o setor da Tecnologia de Informação, telecomunicações, telemarketing; o setor de saneamento, limpeza, serviços de asseio; a Construção Civil; a saúde; a mineração; os setores dinâmicos da indústria de transformação (papel e celulose, alimentos e bebidas, metalúrgica e química) e o ramo bancário. No campo, devemos centrar nossos maiores esforços na organização do proletariado rural que, em aliança com os pequenos produtores privados do campo (os camponeses pobres), terá a colossal tarefa de expropriar o latifúndio e o agronegócio capitalista brasileiro.”

Parto, sem no entanto me restringir nela, da área da saúde (onde tive atuação mais expressiva até o momento). Pelas atuais pré-teses, qual a proposta para a área estratégica Saúde? Juntar os camaradas da psicologia, da medicina, da enfermagem, da farmácia, do serviço social e pensar que sindicatos disputaremos, que cursos de graduação disputaremos, que entidades estudantis disputaremos e quem queremos recrutar? O trabalho na área estratégica da Saúde consistirá então em recrutar estudantes de medicina e médicos e disputar, por exemplo, a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM) e o Sindicato dos Médicos de São Paulo? Foi isso que fizemos até então.

De quais mecanismos e formas históricas de organização da classe que temos na saúde estamos partindo e quem efetivamente queremos disputar ali? Faço a mesma pergunta para todas as outras 9 citadas no parágrafo acima.

Se formos pensar na inserção nos territórios, bairros e comunidades, coloco minha mão no fogo de que a chave são as Agentes Comunitárias de Saúde (ACS). São elas (maioria de mulheres) trabalhadoras locais (muitas vezes lideranças comunitárias) que passam a integrar a Atenção Primária à Saúde, que tem por propósito conhecer profundamente o território, cada família, cada casa, cada necessidade e construir um vínculo com os usuários do SUS. Repito, camaradas, elas conhecem cada pessoa pelo nome, batem na porta das casas, entram e são recebidas - parece algo relevante, né? 

Entretanto, o que elas fazem com todas essas informações e vínculos hoje está (olhando para as grandes capitais, principalmente) nas mãos das Organizações Sociais de Saúde, suas metas de produtividade e atendimentos, assédio moral e cooptação de lideranças locais. Se formos pensar em parar grandes hospitais em todo o país e abalar a burguesia, é para as enfermeiras e técnicas de enfermagem - que gerenciam, conhecem cada setor e efetivamente sustentam boa parte do cotidiano dos serviços  - que temos que olhar. Esse tipo de detalhamento pode e deve constar em nossas resoluções.

E uma nota: antes de pensarmos inclusive na centralidade do território e nos Comitês Locais como centro de gravidade do trabalho, o SUS enquanto sistema de amplitude nacional se estruturou partindo do território e de indicadores (com maior ou menor pertinência e relevância) de algumas necessidades concretas da classe trabalhadora, com regionalização, método e estrutura de inserção nos bairros e populações específicas, como povos indígenas. Me parece válido, do ponto de vista organizativo, observarmos essas contribuições, seus acertos e seus vazios. 

2. E como a classe vem se organizando até então?

Cometemos o erro, até pouquíssimo tempo atrás, de tocar o grande trabalho de saúde nos grandes debates (que obviamente são importantes, mas que se isolaram cada vez mais em abstrações) sobre o orçamento, a privatização da saúde e a defesa de um SUS 100% público e estatal (do qual o programa das pré-teses do ponto “20. A proibição da exploração privada da saúde e da educação. Por um sistema educacional e um sistema de saúde 100% públicos, gratuitos, universais e geridos democraticamente.” não difere muito e não avança para além). 

Em espaços como a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde (a qual eu e muitos outros camaradas da UJC e PCB construíram), caminhou-se vertiginosamente para a repetição mofada desse tipo de frase, que vejam, é sim importante, mas não fazia o esforço de se vincular às pautas das trabalhadoras da enfermagem, pelo piso salarial da categoria ou das lideranças comunitárias boicotadas todos os dias pelos gestores do SUS.

Na 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), finalizada em julho de 2023, foi feita a escolha, dentro do complexo partidário da época, de não participação e não orientação dos militantes presentes, a partir de uma crítica completamente válida mas lá do alto de uma torre distante, de que o controle social (a participação da classe trabalhadora na gestão e na definição do planejamento do SUS) é limitado, vazio e reboquista. 

Sou o primeiro a tacar pedra e apontar todas as contradições do controle social, mas é inegável que, na etapa nacional da 17ª CNS estive no espaço mais diverso (na falta de uma palavra melhor) de toda a minha vida, ao lado de lideranças populares da Zona Leste de São Paulo, povos indígenas, quilombolas, que estavam ali por problemas reais e pela sobrevivência dos seus. Eram os primeiros a aplaudir de pé nossas intervenções e a perder o brilho nos olhos ao ver as falsas respostas da burguesia e seus gestores ali presentes. 

Quando não os sindicatos e o movimento estudantil, foram os Movimentos Populares em Saúde (MOPS) que propuseram e sustentaram durante a Reforma Sanitária e a criação do SUS a estatização completa de toda a saúde, proposta derrotada por outra de estatização progressiva e continuidade da iniciativa privada, defendida pelo PCB à época, com importante atuação do sanitarista (e liquidacionista) Sérgio Arouca e a partir da Estratégia Democrático-Nacional. Diversos materiais de agitação e propaganda do Movimento Popular de Saúde da Zona Leste mostram os esforços para pautar na década de 80 e 90 a redução da jornada de trabalho, o aborto (e não apenas na esfera da descriminalização, mas também da legalização) e apontando diretamente homicídios enquanto uma causa de mortalidade relevante. 

São apenas alguns dos exemplos a serem contemplados, digeridos e transformados em alguma coisa para debatermos a inserção na classe trabalhadora e seu desdobramento em áreas estratégicas. 

Proponho então enquanto tese:

“Para os setores estratégicos enumerados, será constituído um corpo de agitação e propaganda nacional, acompanhado pelo Comitê Central e responsável pela pesquisa, sistematização e formulação nos seguintes eixos:

I. Resgate das experiências de luta e organização da classe trabalhadora nestes setores;

II. Caracterização da burguesia nacional e internacional e suas frações vinculadas a tais setores;

III. Caracterização da composição destes setores e suas categorias de trabalhadores;

IV. Análise do estado do atual desenvolvimento econômico e produtivo destes setores e as respectivas políticas do Estado brasileiro.”

3. Sob que chão se erguem as “fortalezas produtivas”?

Compreendo a importância de infiltração nas “fortalezas produtivas” e meus apontamentos, mais do que discordâncias, estão colocados acima. Entretanto, me questiono se, na periferia do capitalismo, onde a regra é a superexploração, o desgaste e adoecimento dos trabalhadores e um imenso exército de reserva, os aspectos da reprodução da força de trabalho não deveriam constar em nossas formulações do giro operário-popular. Afinal, como, em meio a genocídio, violência, fome, enchente e adoecimento a classe trabalhadora ainda se encontra as condições (sem contar a óbvia necessidade) de acordar todos os dias, ir e voltar do trabalho e garantir os lucros da burguesia? Sob que chão se erguem as “fortalezas produtivas” que queremos tomar? 

Para além do trabalho doméstico e do trabalho em saúde (dois exemplos que consigo citar de imediato que cumprem esse papel), quais redes hoje estão estabelecidas em meio a população negra, as mulheres, a juventude, a população LGBTQIA+, os povos originários e que permitem que a roda continue a girar? Sabemos de alguns dos dispositivos, como moradia, creches e refeitórios populares, que estão corretamente citados na proposta de programa. Mas de que forma, hoje, essas necessidades são colocadas em movimento e constituem redes essenciais que organizam a vida da classe trabalhadora?

Pois essas redes existem, e se não estiverem nas nossas mãos, digo que estão nas mãos das igrejas neopentecostais nas periferias, por exemplo, com suas redes de solidariedade de um lado - garantindo contatos, apoio, alguma perspectiva de futuro, quando não colaborando materialmente - e de controle - com as comunidades terapêuticas prontas para encarcerar a juventude precarizada que adoece ou que simplesmente recorre às várias drogas para suportar a vida. Compreender que não precisamos necessariamente inventar a roda, mas se apropriar do que a classe trabalhadora já construiu e vem construindo historicamente para sobreviver, imprimir nessas telas nosso programa e o partido efetivamente se tornar organizador da vida. 

Coloco inclusive que chegar a esse nível de detalhamento, compreensão e proposição (onde acabo limitado nesta tribuna, mas planejando futuramente partir no sentido do que a camarada Valen coloca em 'Por teses que dialoguem com as juventudes brasileiras') é o meio pelo qual iremos do ponto A - acúmulos e experiências da UJC, do CFCAM, do CNMO e do LGBT Comunista, que muitas vezes permanecem como apenas experiências ou se tornam abstrações no estilo “mulheres/negros/LGBTs existem” para o ponto B - sínteses, propostas, palavra e ação.

Sem ainda uma proposta concreta, quero retomar uma experiência citada no “Relatório político da delegação da UJC ao 13º Congresso Nacional da Juventude Comunista da Grécia (KNE)”, referente ao Partido Comunista da Turquia (TKP):

“Para responder à pergunta de como o TKP conseguiu e consegue responder de maneira tão efetiva ao desastre natural do terremoto, é necessário compreender a forma como vem sendo desenvolvido o trabalho político comunista na Turquia.

Sem deixar de lado o trabalho sindical, estudantil, a luta das mulheres e etc, o TKP estabeleceu uma política de estabelecimento de presença física nos mais diversos bairros dos centros urbanos da Turquia. Esta presença física se expressa através da presença de uma sede, independentemente do tamanho, do TKP nos bairros. Para os camaradas da Turquia o Partido só pode se tornar relevante no contexto do país se estiver profundamente presente no cotidiano das pessoas, e essa presença se manifesta também na presença física para além dos locais de trabalho, mas principalmente nos bairros de maneira geral. Portanto são casas, garagens, quartos, salões, enfim, qualquer espaço físico que todo e qualquer militante de qualquer organização de base do Partido ou da Juventude deve estar atento e buscar estabelecer o quanto antes, quando estas ainda não forem existentes. Estas casas são apresentadas e funcionam como eles chamam de “Casas de Trabalhadores”, onde nas dependências são realizadas as mais diversas atividades, desde estudo, biblioteca, centros culturais, esportes, além é claro de atividades políticas onde são imprimidas as ideais do Partido. As casas obrigatoriamente precisam de uma agenda constante e estável de atividades. Somente no ano passado foram abertas 70 destas casas por toda a Turquia, a meta que o TKP possui é ter no futuro próximo 300 destas casas por todo o país, nos principais centros urbanos. 

Estas casas foram a base, a fundação, de toda a malha logística do Partido para responder com tanta agilidade e eficiência, além de organizar o próprio socorro médico e de suprimentos, quando o Estado Turco foi completamente omisso. Através do trabalho nestas casas, da legitimidade conquistada e aumentada pelo TKP nas mentes e corações dos trabalhadores da Turquia, pessoas que sequer eram comunistas, enxergam no Partido uma entidade que representa seus interesses e tem a seriedade e o comprometimento real com a Classe Trabalhadora.”

Não temos terremotos acontecendo hoje no Brasil, camaradas. Mas temos, todo ano, enchentes, deslizamentos, apagões e uma verdadeira guerra contra a classe trabalhadora e negra nas periferias de todo país. Se inserir nas redes de solidariedade já existentes (e que até onde entendo existem, precisam existir e têm alguma funcionalidade, afinal tudo segue “normalmente”) e constituir nossas próprias, é não só avançar na nossa inserção mas também preparar nossa organização do ponto de vista logístico e militar. 

4. Pra quê? 

Finalizo, camaradas, com um dos questionamentos que considero mais fundamentais para pensar a proletarização das nossas fileiras. Depois de inúmeras tribunas que debatem o recrutamento, a permanência e a atuação de militantes jovens trabalhadores, mulheres, LGBTQIA+ e racializados, as condições para tal só serão construídas dentro dessa organização quando estivermos conscientes e convencidos do porquê essas pessoas devem estar na vanguarda da classe trabalhadora brasileira e do porquê sem elas não construiremos Revolução Brasileira alguma.


Referências:

UNIFESP, Centro de Memória Urbana. Movimento Popular de Saúde (Zona Leste de São Paulo/SP). Disponível em: https://centrodememoriaurbana.org/collections/show/8

DANTAS, André Vianna. Saúde, luta de classes e o ‘fantasma’ da Reforma Sanitária Brasileira: apontamentos para sua história e crítica. Saúde em Debate, [S.L.], v. 42, n. 3, p. 145-157, nov. 2018. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042018s311.

CASTRO, Thiago Alves de; DAVOGLIO, Rosane Silvia; NASCIMENTO, Ananda Ariane Januário do; SANTOS, Kamila Juliana da Silva; COELHO, Glória Maria Pinto; LIMA, Kátia Simoni Bezerra. Agentes Comunitários de Saúde: perfil sociodemográfico, emprego e satisfação com o trabalho em um município do semiárido baiano. Cadernos Saúde Coletiva, [S.L.], v. 25, n. 3, p. 294-301, 9 out. 2017. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700030190.

Valen. Por teses que dialoguem com as juventudes brasileiras. Disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/por-teses-que-dialoguem-com-as-juventudes-brasileiras/