'Liberação militante na profissionalização anti-opressões' (Aya Setembru Kuwahara)
Viver no capitalismo é uma experiência atordoante e muitas vezes desumanizadora – o que é muito pior quando se experiencia esse mundo sofrendo opressões específicas. Precisamos de um partido que tenha estruturas capazes de tornar a realidade de nossa militância e da nossa classe melhor.
Por Aya Setembru Kuwahara para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A permanência de militantes comunistas em nossa organização depende de diversos fatores, e aqui proponho uma das possíveis resoluções para o debate acumulado principalmente pelos coletivos CFCAM, CNMO e LGBTCOM (Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, Coletivo Negro Minervino de Oliveira e Coletivo LGBT Comunista). Nos meses seguintes ao racha, houve alguma discussão sobre a incorporação do legado da luta desses coletivos ao RR, e é esse o ponto de partida.
Não é surpresa para ninguém (pelo menos, não deveria ser) que militantes mulheres, LGBTIA+, neurodivergentes, e racializades costumam ser ês primeires a sofrer com a violência e/ou perseguição política dentro de nossas próprias fileiras. Também não é uma informação brilhante e nova que são esses militantes que costumam ter menos tempo e condições para militar. E com a violência política, frequentemente associada às opressões, pode acabar surgindo a vontade de se afastar da luta – desligar-se do partido ou afastar-se indeterminadamente dele. É isso que chamamos de ‘quebra militante’ – que apesar de surgir por diferentes motivos, acredito que quando estamos falando sobre opressões, isso se torna mais evidente da forma que coloco acima.
Aqui, gostaria de destacar: essa vontade de se afastar da luta não surge do nada. Essus militantes já sofrem no cotidiano a brutalidade imposta por esse sistema – que pode muitas vezes parecer implacável, dar a impressão da impossibilidade de alteração da realidade, a descrença na luta coletiva. E se é só dentro do partido marxista-leninista que se pode criar algo novo, uma nova sociabilidade, quando essas mesmas injustiças continuam a ocorrer sistematicamente dentro dele, sem perspectiva de mudança, não há como se surpreender quando o desânimo aparece.
Até agora, a forma de tocar a política anti-opressões dentro de nossas fileiras – pelo menos, na minha vivência pessoal, na UJC –, foi a de formar politicamente nossos militantes para que entendam as opressões e assim, em tese, parem de cometer opressões e passem a formular sobre essas questões. Aqui, não quero colocar em xeque a importância da formação acerca de opressões, que é algo basal para nossa organização e central para a revolução brasileira – não é uma pauta ‘menor’ e que deve ser lida como secundária. Na verdade, trata-se de uma pauta central para nosso processo revolucionário e que devemos nos debruçar se quisermos dar cabo ao nosso giro operário-popular.
Essa política tem sido tímida no que diz respeito à alteração concreta da realidade. É como se importasse mais entender os pormenores das opressões e propagagitar em torno disso. E não quero dizer que não seja importante entender os pormenores das opressões e a agitação e propaganda em torno dessas pautas, mas acredito que propostas de intervenção que interajam com a realidade sejam muito mais capazes de educar nossa classe e nossos militantes, com uma qualidade muito superior – me debruçarei mais sobre isso na próxima seção desta tribuna.
E não podemos esperar que nossos camaradas homens, brancos e cisheteronormativos tomem consciência de sua posição de privilégio e poder e que a partir dessa consciência parem de cometer violências e passem a agir com um bondoso senso de fraternidade com sus camaradas oprimides, como se dependesse tão somente da tomada de consciência desses homens para a resolução dessas contradições. E mesmo que tomem consciência e parem de cometer violências, não seria o suficiente para tornar nosso partido mais ‘amigável’ para essus militantes. Na verdade, precisamos que eles tomem sim consciência e se apropriem dessa luta, já que ela não se desconecta da estratégia socialista. Precisamos ir além do que temos hoje, abandonar a postura que se afasta da luta real e nos mantém na discussão de ideias para adotar uma nova linha que busque criar estruturas partidárias na luta cotidiana para que isso tome corpo na realidade
Liberação militante para além do assalariamento
Para proletarizar nossas fileiras, tornar esse partido um partido operário-popular, precisamos pensar em como fazer com que aquelus que já têm dificuldades de participar da vida política possam ter tempo e disposição para militar. Precisamos de um partido que seja capaz de liberar tempo para militantes a partir de sua política e de suas estruturas. Quando pensamos em liberação militante, o que costuma primeiro aparecer no debate é o assalariamento de militantes – isto é, pensamos nas finanças destinadas a garantir que militantes (muitas vezes, direções) não precisem trabalhar fora do partido e possam ter foco integral para ele. Mas será que essa seria a única forma de liberar tempo para que nosses camaradas possam militar? Militar é voluntário, e trazer aqueles que normalmente estão à margem da luta para o centro dela é uma tarefa nossa, e que virá de um esforço coletivo e organizado.
Aqui, abordarei alguns exemplos, e provoco aos leitores que também o façam em seu cotidiano, em sua célula, núcleo, instância, local de atuação etc. Só com esse esforço coletivo de buscar entender em quais situações que nosses camaradas acabam ficando incapazes de militar (ou limitades) e em quais dessas ocasiões o partido poderia estar lá ativamente presente e trazendo esses quadros para a luta. Ou seja, é pensar trabalhos que podem ser ressocializados e incorporados ao partido.
Por exemplo: cuidados com familiares – muites camaradas que precisam cuidar de sus filhes ou de outros familiares deixam de participar de reuniões ou de tocar tarefas por conta dessa sobrecarga. Não seria papel do partido providenciar, por exemplo, camaradas destacades para buscar sus filhes da creche/escola? Talvez até mesmo pagar a mensalidade da creche. Ou mesmo destacar camaradas para acolher as crianças nos espaços de reunião ou em tarefas. Podemos pensar em destacar militantes para cuidar de familiares ou então no custeio de cuidadores pelo partido. Enfim, aqui a ideia é tirar do particular o fardo desse trabalho, trazendo ao coletivo partidário essas responsabilidades.
O mesmo se aplica para a alimentação, a limpeza, os demais afazeres domésticos e o transporte. Não é só pensando nas opressões de forma distante, como se bastasse o refletir e formular sobre isso que seremos um partido avançado e revolucionário. É também buscando no agora as mediações que se conectem com o nosso programa e nosso congresso, alterando a realidade. Não existe a política voltada para dentro e a política voltada para fora: essa separação é abominável e não nos serve. Se vamos pensar no direito a creches, precisamos também pensar na nossa auto-organização enquanto classe. E isso também se aplica quando pensamos no direito à educação para todes, no direito à alimentação, no direito à moradia; no direito à mobilidade urbana e à cultura.
Considerações finais
Através dessa provocação corro o risco de ser lida como assistencialista. E quero deixar claro que não é esse o debate que eu gostaria de fazer. O central é que sabemos que viver no capitalismo é uma experiência atordoante e muitas vezes desumanizadora – o que é muito pior quando se experiencia esse mundo sofrendo opressões específicas como as já citadas neste texto. Precisamos, então, de um partido que tenha estruturas capazes tornar a realidade de nossa militância e da nossa classe melhor, alterando a realidade. E nessa luta, na nossa auto-organização, podemos ser educados, educar e recrutar. Nada disso está desconectado de nossas finanças, nossa agitação e propaganda, nossa política.
Aqui, não há ingenuidade: não será simples e terá muito trabalho militante envolvido. Mas deixo o convite ao debate a todes que leem esta tribuna. Infelizmente, não consegui desenvolver o texto com a qualidade que gostaria, mas estou no limite do prazo de envio de tribunas ao EDC.
Saudações leninistas,
Referências
[1] 'Pela profissionalização da luta interna contra as opressões! Proposta de estatuto especial para o combate interno às opressões' (Gustavo Guimarães). Link: <https://emdefesadocomunismo.com.br/pela-profissionalizacao/>