Governo Lula: amigo ou inimigo das mulheres?
Melhor que Bolsonaro, Lula certamente é. No entanto, só o pessimismo mais senil e o conformismo com a existência da desigualdade e da opressão podem colocar como critério de avaliação de um governo “o que é menos pior”.
Por Redação
Fruto de uma frente ampla entre progressistas, movimentos sociais e sindicais e, principalmente, grandes empresários, o governo Lula foi eleito com a expectativa de equacionar todos os interesses das classes e segmentos da sociedade. Diferente da extrema-direita bolsonarista, Lula e seu partido tendem a ter maior sensibilidade para as desigualdades. Porém, a prática, mais uma vez, tem comprovado a impossibilidade de conciliar os interesses contraditórios entre as classes, pendendo sempre a balança para o lado mais forte - o das classes dominantes. Nesta equação, sobram à classe explorada apenas ações simbólicas que não tocam na estrutura da desigualdade de gênero reinante no Brasil.
Ainda no primeiro ano do governo, em dezembro, o governo comemorou a aprovação da Lei da Igualdade Salarial entre Homens e Mulheres. Esta medida, em que pese sua tentativa de remediar o problema, não só não o enfrenta na raiz, como contribui para uma permanente mistificação de suas causas. Enquanto a desigualdade de gênero, edificada sobre o patriarcado, é parte estrutural do capitalismo dependente brasileiro – que relega as mulheres (em especial, as negras) para os piores empregos e salários, somados ao solitário trabalho doméstico – o governo atua como se esta fosse apenas uma questão moral, em que basta regulamentar, pouco a pouco, as expressões desta desigualdade até que um dia deixe de existir. Mas, afinal, o que diz esta lei?
Desde 1943, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) determina a igualdade de salários para todos os trabalhadores que exercem mesmas funções, independentemente da raça e gênero. As estatísticas do mundo do trabalho, por sua vez, demonstram que tal regulamentação nunca chegou perto de ser efetivada. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua (PnadC) apontam que a renda média mensal das mulheres, em 2023, ainda é 22,3% menor que a dos homens. Para agravar, dentre todas as mulheres ocupadas, 39,9% recebem até um salário-mínimo, dado que é ainda pior entre as mulheres negras, em que 49,4% recebem este valor. Mesmo entre as mulheres com Ensino Superior, a desigualdade permanece: elas recebem 35,5% a menos que os homens.
Apesar desta situação pouco ter mudado durante os primeiros 14 anos de governo do PT, agora, a Lei da Igualdade Salarial (nº 14.611/2023) reforçou a impossibilidade de distinção salarial baseado no gênero e apresentou algumas novas medidas, como a obrigatoriedade de empresas com 100 ou mais funcionários apresentarem relatórios semestral com dados sobre os salários dos trabalhadores; a disponibilização de canais, em aplicativo virtual do governo, para a denúncia de discriminação salarial; e o aumento do valor da multa às empresas no caso de não retificação do problema após identificação da infração. Contudo, no que tange aos mecanismos de inspeção por parte do governo, ainda não há, na lei, nenhuma medida concreta, para além do indicativo de que o executivo instituirá, em algum momento, um protocolo de fiscalização.
Esta medida não pode ser menosprezada. Certamente, estipular multas mais altas e uma obrigatoriedade de transparência pressiona empresários a, individualmente, evitarem este prejuízo. Contudo, o cerne desta desigualdade ainda está longe de ser abalado, enquanto existir a divisão de gênero do trabalho, de modo a empurrar massas de mulheres para trabalhos precários e mal remunerados, ainda que de forma equânime. Hoje, setores como o telemarketing, marcado por extensas e intensas jornadas de trabalho e assédio moral, são compostos por 72% de mulheres, a maioria (84%) jovens entre 18 e 29 anos.
Do total de todas as mulheres ocupadas, 20,4% trabalham por “conta própria” sem CNPJ, o que equivale a 8,849 milhões de mulheres. Em geral, estas trabalhadoras prestam serviços para várias empresas ou pessoas. Das mulheres negras ocupadas e que recebem até um salário-mínimo, 40,9% trabalham por conta própria, e as não negras, 42,2%. De todas elas com esta renda e sem vínculo formal de trabalho, 26,4% trabalham no comércio e 24,6% no agregado de outros serviços (como cabeleireiras, manicures etc.). Tal situação é agravada, ainda, pela tripla jornada de trabalho. Segundo o DIEESE, em 2022, as mulheres dedicavam, em média, 17 horas semanais com afazeres da casa e relacionados à família – um trabalho não remunerado.
No que tange à informalidade das mulheres, de acordo com o DIEESE, 41% das trabalhadoras informais são negras, enquanto as não negras são 30,8% delas. Das mulheres que recebem até um salário-mínimo, 88% são informais. Dessas, 66,4% são trabalhadoras domésticas, 44% trabalhadoras por conta própria e 40,7% empregadas sem carteira no setor privado. Todas sem qualquer garantia trabalhista e sem direito à previdência.
Esta precariedade do trabalho, parte essencial do capitalismo brasileiro, se aprofundou drasticamente com a Reforma Trabalhista e a Lei das Terceirizações, emplacadas pelo governo golpista de Michel Temer, e a Reforma da Previdência, realizada pelo governo Bolsonaro. Tais medidas, que contemplavam as ambições mais vorazes do grande empresariado brasileiro (sempre ávido por reduzir os custos da força de trabalho e por aumentar sua exploração), afetaram as mulheres com maior impacto. A revogação deste programa de reformas – que motivou o golpe contra a presidente Dilma Rousseff – sequer é considerada pelo governo Lula.
A Reforma Trabalhista retirou o direito das mulheres ao descanso antes de iniciar a jornada extra, viabilizou a permanência de mulheres grávidas em postos de trabalho insalubres e, para a classe trabalhadora em geral, reduziu seu poder de negociação por melhores condições de trabalho e salário. Ao mesmo tempo, a Lei das Terceirizações generalizou a possibilidade de trabalho temporário, instável, altamente rotativo e com precária segurança jurídica para o trabalhador em caso de violações de seus direitos. A terceirização é, hoje, muito comum no setor de serviços, no qual trabalham a maioria das mulheres que recebem até R$1.500 mensais. Um exemplo já citado desta condição, é o próprio telemarketing, que emprega milhões de trabalhadores, sendo mais de 70% mulheres. Por sua vez, a Reforma da Previdência do governo Bolsonaro aumentou a idade mínima para aposentadoria das mulheres para 62 anos, bem como aumentou o seu tempo mínimo de contribuição para 30 anos.
Na tentativa de equilibrar os interesses que se propôs a conciliar, o governo Lula mantém intactos os interesses fundamentais das classes dominantes, isto é, o conjunto de reformas aplicadas para ampliar a exploração do trabalho, auferir lucros extraordinários para a burguesia e aumentar o abismo da desigualdade social em nosso país; na política econômica, o governo Lula vai além e dá continuidade aos governos anteriores, aprofundando o ajuste fiscal, com o novo Arcabouço Fiscal (Teto de Gastos), que limita os investimentos públicos – inclusive, nas políticas de assistência social e de políticas sociais num geral, como se vê nos baixos orçamentos dos ministérios e secretarias voltadas ao combate à desigualdade racial e de gênero.
Também o governo não deu sinais de que vai encarar a histórica pauta do aborto, tão cara às mulheres, que morrem e são criminalizadas aos milhares em função da proibição deste procedimento, que deve ser tratada como uma questão de saúde pública. A este propósito, o próprio presidente se pronunciou em defesa de tratar o tema como assunto de saúde, porém, para apaziguar as críticas que recebeu publicamente, recuou e disse ser “contra o aborto”, como um aceno aos setores conservadores e reacionários.
Melhor que Bolsonaro, Lula certamente é. No entanto, só o pessimismo mais senil e o conformismo com a existência da desigualdade e da opressão podem colocar como critério de avaliação de um governo “o que é menos pior”. Só a descrença de que é possível superar a desigualdade e a opressão pode se contentar com as parcas medidas de mitigação e, por consequência, de manutenção das desigualdades. É possível e necessário ir além.
Em 2018, foi a partir da histórica greve internacional das mulheres trabalhadoras que se reorganizou e reacendeu a luta de massas contra Michel Temer e Bolsonaro no Brasil. Da mesma forma, dá exemplo de luta, mobilização e organização a categoria da enfermagem, constituída majoritariamente por mulheres (85%). Dentre vários outros exemplos de liderança nas lutas populares, comunitárias e sindicais exercida por mulheres que demonstram que o caminho para contemplar efetiva e completamente os interesses das mulheres trabalhadoras é o da luta de massas nas ruas, sem confiar a mudança total da estrutura da opressão ao joguete da conciliação, o qual, no final das contas, jamais enfrenta o poder que oprime.