'Da Venezuela ao Sahel: os limites do nacionalismo popular' (Leonardo Vinhó)

O objetivo fundamental aqui é apenas iluminar uma discussão que precisa ser mais central se não desejamos emitir comentários despretensiosos acerca das questões internacionais, deslocados da nossa estratégia enquanto organização política.

'Da Venezuela ao Sahel: os limites do nacionalismo popular' (Leonardo Vinhó)
Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em evento conjunto com o Partido Comunista da Venezuela (PCV), em 2018, para declarar apoio à sua reeleição. | Foto: Divulgação/Prensa Presidencial [*]

Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Este texto busca responder à tribuna “Sobre um levante nacionalista popular e um questionamento”, por “China” [1], que aborda os acontecimentos recentes no Mali, Níger e em Burkina Faso. Não pretendemos aqui, contudo, reconstruir uma análise dessas realidades, mas tão somente pontuar algumas questões do texto e quais elementos julgamos importantes para analisar uma conjuntura internacional e conduzir esse debate.

Por que debater?

Em primeiro lugar, acreditamos que o questionamento final da tribuna, sobre a falta de debates acerca do tema, enseja uma pergunta anterior: por que debater? Seja sobre Burkina Faso, sobre a República Popular da China, ou o que for. Por que debater? Não é uma pergunta retórica. É importante para entendermos de onde vem e, principalmente, para onde vai a discussão, permitindo estabelecer melhor as prioridades e dedicação dos nossos esforços.

Seria por diletantismo? Por um exercício quase esportivo de análise de conjuntura? Para ver o assunto em maior evidência nas nossas redes? Ou para demarcar posições frente ao campo popular-democrático e sua recente guinada rumo à Quarta Teoria Política? Para desenvolvermos uma estratégia coerente de atuação internacional? As duas últimas hipóteses nos parecem mais frutíferas, e de onde parecem brotar as angústias que inspiraram a tribuna original. Para isso, contudo, precisaremos dar um passo atrás: qual a nossa estratégia?

Historicamente existiram algumas posturas de governos comunistas. Delinearemos duas, de forma bastante superficial e generalista, apenas para exemplificar, pois cada uma renderia páginas de argumentação, e não é o intuito divergir totalmente o foco do debate. A primeira, que chamaremos “intervencionista”, constituiu no esforço ativo da União Soviética (URSS) em influir, de uma forma ou de outra, nos rumos do Movimento Comunista Internacional (MCI) e nas realidades de outros países. O esforço inicial da Terceira Internacional, capitaneada pela URSS, foi o de fomentar revoluções socialistas nos países da Europa, revoluções democrático-burguesas no antigo império otomano, e a fundação de partidos comunistas em todos os lugares. Posteriormente, ela significou o envio de esforços humanos e materiais para a Guerra Civil Espanhola, a Guerra da Coreia, Guerra do Vietnã — e, argumentariam alguns, na Hungria, Checoslováquia e Afeganistão. A segunda postura, que chamaremos “abstencionista”, é exemplificada pela política externa chinesa. É verdade que a ala liderada por Mao Zedong dentro do Partido Comunista da China enviou recursos ao Vietnã e à Coreia. Mas também encontrou uma resistência interna muito maior e mais organizada, que logrou adotar uma postura de isenção quando o grupo de Mao não estava no poder ou não conseguia pressionar o suficiente. A não-intervenção é, hoje, política oficial da República Popular da China.

Novamente, esta é uma simplificação bastante grosseira do debate, sem aprofundar em nuances ou argumentos nem nenhum juízo de valor a respeito de nenhum caso, apenas para ilustrar algumas possibilidades. É possível que existam outras, não contempladas, ou que forjemos novos caminhos. Também é evidente que essas políticas não foram adotadas no vácuo, mas são antes fruto de condições muito concretas e muito diferentes. O objetivo fundamental aqui é apenas iluminar uma discussão que precisa ser mais central se não desejamos emitir comentários despretensiosos acerca das questões internacionais, deslocados da nossa estratégia enquanto organização política (o que não é o caso da tribuna de “China”).

As classes na análise de conjuntura internacional

Todos os elementos apresentados no texto para justificar a importância da região de fato são relevantes em algum grau, mas é preciso tomar cuidado quando se encerra a análise aí. É comum da geopolítica — no fim das contas uma ciência burguesa elaborada por expoentes teóricos dos países imperialistas, as chamadas “grandes potências” — pensar as relações internacionais tão somente como uma simples disputa por territórios e recursos (humanos e materiais) dos países do chamado terceiro mundo, entendendo questões complexas a partir dos ganhos de poder que essas disputas interimperialistas podem trazer. E essa é de fato a preocupação maior dos formuladores e burocratas desses Estados ocidentais. Enquanto marxistas, porém, e sobretudo de um país dependente, não podemos menosprezar as relações de classe nem subtrair sua agência do processo histórico.

O conjunto do texto evidencia justamente essa ausência de uma análise de classes. Quais são as classes sociais nesses países, quais os interesses de cada uma, como elas se relacionam, quais classes apoiaram essa mudança e se beneficiam com ela…? Quando a tribuna diz que a junta militar de Burkina Faso está “auxiliando seus irmãos africanos nesta luta colossal com apoio militar do grupo Wagner”, por exemplo. Está auxiliando as classes trabalhadoras, na luta pelos seus interesses, pelo poder? Sim, é possível que esteja de fato auxiliando no combate a uma organização fundamentalista, mas daí relegaremos as classes trabalhadoras a uma espécie de etapismo em que “primeiro combatemos o Daesh e restabelecemos a ordem burguesa, depois pensamos na revolução”? Quais os interesses e as consequências de empregar um grupo mercenário de fortíssimas ligações com o governo russo? Será mesmo que deveríamos retroceder a uma espécie de campismo e apoiar um lado nesse conflito interimperialista?

Há diferenças severas entre o antiimperialismo e a anti-hegemonia. Essa confusão nasce quando entendemos o imperialismo a partir do seu sentido “vulgar”, agitativo, comum ao movimento comunista brasileiro do séc. XX, que o reduz à esfera da política e da ação militar, além de reduzi-lo à ação do governo estadunidense. Só existe possibilidade de campismo dentro dessa concepção errônea, em que qualquer país que se levante contra os países imperialistas é automaticamente bom e nos trará a salvação. Onde estão esses libertadores em relação ao genocídio palestino que ocorre neste mesmo instante? Qual foi a efetividade das tropas russas contra a chacina de armênios perpetrada pelo exército azeri em Nagorno-Karabakh?

Dentro de uma conceituação leninista de imperialismo, que o entende como a etapa subsequente do capitalismo, ou seja, as bases econômicas do sistema internacional sob o qual vivemos, fica nítido que uma disputa entre burguesias não pode ser senão a disputa pela hegemonia desse sistema. A postura anti-hegemônica de um dos lados jamais pode ser confundida com uma postura anti-imperialista — que é, também, necessariamente anticapitalista. Que um dos dois lados ainda não seja imperialista nos termos clássicos é irrelevante para a análise, porque a condição prévia para essa disputa é que um lado ocupe uma posição de liderança desejada pelo outro.

Historicamente nenhuma transferência de liderança hegemônica do sistema internacional foi conduzida de forma pacífica. Não há evidências plausíveis para acreditarmos que, com os governos russo e chinês disputando com a França, os Estados Unidos, a Europa como um todo, estaremos mais próximos da libertação, mas sim de uma nova guerra mundial onde as burguesias ocidentais não cederão (como nunca cederam, pensando nas duas primeiras guerras) sem um enfrentamento militar, e quem quer que deseje tomar o posto o fará até sacrificar toda a classe trabalhadora no campo de batalha.

Enquanto marxistas, há sempre que se tomar cuidado na análise para não reificarmos um país inteiro, como se “o Mali” (ou qualquer outro país) fosse uma entidade ou pessoa, dotada de consciência e interesses unos e supostamente nacionais, supraclassistas. Com isso, não nos damos conta de que passamos a acreditar numa interpretação mecanicamente transposta de países “opressores” e “oprimidos”, em que um país do terceiro mundo é composto apenas da “massa da humanidade sofredora” (nas palavras da Plataforma Mundial Anti-Imperialista) e que dentro dele não ocorre lutas de classes, opressões, violências. Neste sentido não existe “o Mali”. O que existe é o governo (enquanto poder Executivo) do Mali ou, no máximo, o Estado, que também não é monolítico nem neutro, mas sim busca atender interesses de classes dominantes específicas. A África não está, afinal, isenta das lutas de classes, como nenhum outro lugar do planeta hoje em dia.

A tal “realidade concreta”

Quando dizemos que “o certo, deve ser algo retirado de nossa cabeça, não levando em conta a realidade material, vivendo em delírios idealistas”, estamos dizendo que os interesses das classes trabalhadoras daquele país não importam. Que não existe alternativa. Que devemos, nós aqui e eles lá, aceitar qualquer coisa que for imposta por meio das armas como solução.

Em primeiro lugar, isso é exatamente o discurso petista sem tirar nem pôr, de que lutar pela revolução é idealismo frente à situação brasileira (qualquer que seja ela, num terrorismo político que data pelo menos desde a candidatura de Geraldo Alckmin em 2006), e que deveríamos defender o governo Lula. O que diferencia as duas realidades para que em só uma delas essa posição nos seja inaceitável? Será que, com isso, estamos de fato dando destaque às lutas daqueles países? Estamos viabilizando a agência de quem, exatamente: de trabalhadores e das organizações revolucionárias, ou do governo?

Em segundo lugar, contudo, a tribuna está certa em dizer que existe uma saída não revolucionária concreta. É verdade, não podemos dizer que só haverá uma independência formal completa com a revolução. É plenamente possível, através de alguma espécie de golpe ou bonapartismo, que se opere essa mudança pelo alto, sem participação popular. Porém essa situação tem limites claros. O primeiro deles, por óbvio, é o da plenitude de uma “soberania” e governo burgueses em países de capitalismo dependente. A realidade brasileira foi assim, afinal. Estamos em uma situação melhor por conta disso?

A questão do Banco Central (BC), por exemplo, levantada pela tribuna. O BC do Brasil e sua moeda são soberanos, o Banco se localiza em território nacional e não paga taxas a nenhum outro país pela impressão de sua moeda. Por muito tempo não foi sequer independente como é hoje. E mesmo tudo isso jamais significou um capitalismo menos dependente. Diferente, sim. Melhor, não necessariamente. Depende de para quais classes você pergunta. Será então que o acordo pelo alto, imposto por uma junta militar, seja para pacificar as classes burguesas ou para impor os interesses de uma sobre as demais, é o que devemos apoiar enquanto comunistas?

A tribuna encerra questionando “quão importante é o nacionalismo popular? Como ele se manifesta na América Latina e no Brasil?” A isso responderemos chamando a atenção para a situação da Venezuela, onde o governo burguês, mas de nacionalismo popular, utilizou do poder Judiciário para intervir no Partido Comunista da Venezuela (PCV), tentando destituir formalmente suas lideranças. Isso porque as eleições estão prestes a ocorrer e as críticas do PCV não sinalizavam a certeza da aliança com o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Aqui temos duas opções. Podemos escolher acreditar que o governo Maduro agiu bem ao tentar calar a oposição comunista em nome de ceder a um suposto interesse nacional — que coincidentemente é o interesse imediato das classes dominantes de liberalizar as relações econômicas e dolarizar a economia do país. Nesse caso, precisaríamos declarar apoio incondicional ao governo Lula e seu arcabouço fiscal no mesmo espírito.

Ou podemos, como alternativa, dar um passo atrás na empolgação com figuras de “estadistas” com discursos vagamente remetidos ao nacionalismo popular de outrora, seja aqui, na Rússia, na Venezuela, ou em Burkina Faso, e exercer a solidariedade internacional com as classes trabalhadoras e povos oprimidos.

É verdade, alguns discursos de Ibrahim Traoré parecem empolgantes e promissores. Mas, metaforicamente, um restaurante só é tão bom quanto seu último serviço. Não importa sua fama, não importam suas estrelas Michelin ou a propaganda que faz de si mesmo. Importa a qualidade da comida que serve cotidianamente. Podemos julgar a política externa do governo Lula pelos seus discursos mais inflamados e sua retórica anti-hegemônica, ou podemos julgar pelo que os militares brasileiros fizeram na intervenção ao Haiti.

A primeira opção é o erro em que incorrem comunistas não-brasileiros mundo afora, relativizando o reformismo de Lula como “o menos pior”. Se aqui sabemos enxergar a realidade com maior criticidade do que comunistas de fora e sermos oposição, é válido pensar se talvez não estejamos fazendo o mesmo com outras realidades e silenciando a linha revolucionária. É por isso que nossa escolha reside em submeter tudo à crítica impiedosa das lutas de classes, em todos estes países.

Por fim, é também verdade que as organizações revolucionárias possuem diferentes tamanhos, recursos e capacidades organizativas, de continente para continente e, por vezes, até de país para país. E que isso impacta diretamente na nossa capacidade de nos mantermos informados, de repassar suas análises sobre o que acontece na sua realidade e sua estratégia frente à conjuntura. Mas essas debilidades na comunicação não podem nos induzir a acreditar que essas lutas não estão acontecendo, e que, portanto, não existe alternativa. Somos, por princípio, oposição a qualquer governo burguês, seja aqui ou em qualquer outro país.


Notas

[*] DESCRIÇÃO DA IMAGEM: Em primeiro plano, à esquerda da imagem e um pouco desfocado, um púlpito, com destaque ao galo vermelho, símbolo do PCV. à direita, em segundo plano e bastante em foco, o presidente da Venezuela Nicolás Maduro. Ele está um pouco mais ao fundo, e veste uma camisa vermelha. Suas mãos estão aplaudindo algo enquanto ele esboça um sorriso, e parece olhar de canto de olho para o símbolo do PCV.

[1] Disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-um-levante-nacionalista-popular-e-um-questionamento-china/