Da literatura à luta política: a jornada de Juliana Porto em “O tronco é firme, os galhos finos”

"[...] o contato direto com mulheres trabalhadoras e crianças no Jd. D’Abril e a inserção em frentes como a Frente Estadual Pela Descriminalização e Legalização do Aborto me permitiram aprender como a classe trabalhadora pode se organizar e como lutamos por uma pauta comum."

Da literatura à luta política: a jornada de Juliana Porto em “O tronco é firme, os galhos finos”

“Eu gostaria muito de fazer uma faculdade, que só poderei fazer depois de concluir esses estudos. Também tenho uma questão de me sentir inferior intelectualmente por frequentar também muitos espaços com pessoas que já possuem ensino superior”, é o que afirma Juliana Porto, que pela não conclusão do ensino básico encontra, também, dificuldade em sua autodefinição: “Isso é algo que me pega muito porque eu não tenho uma profissão, sempre trabalhei com atendimento ao público no geral: vendedora, caixa, recepcionista, hostess, etc”.

Porém, hoje, podemos afirmar que Juliana Porto, 28 anos, é uma escritora, pois, apesar das dificuldades que vivenciou, está com campanha aberta para a pré-venda de seu primeiro livro: “O tronco é firme, os galhos finos”, pela editora Urutau.

O livro é um conjunto de poemas escritos ao longo dos últimos cinco anos que começaram a ser organizados recentemente. A transformação desses textos em um livro foi quase uma surpresa para Juliana: “Um belo dia, a editora abriu uma chamada para uma coleção chamada “Mãe leva a outra ", sobre maternidade, aí decidi enviar meus textos. Nunca havia enviado para nenhuma editora e nem tinha muita esperança de que ele fosse selecionado, foi mais só pra ver. Nessa chamada eles receberam cerca de 600 originais e foram selecionados 25 textos, o meu acabou sendo um deles.”

Com dois filhos, a publicação de seu livro já na primeira editora que tentou tornou Juliana uma mãe mais autoconfiante. A escrita foi um lugar no qual a autora pôde vencer o que chamou de “síndrome de impostora”, que a persegue em grande parte dos lugares que frequenta. As dificuldades que enfrentou na vida e ainda enfrenta não tira de Juliana a esperança de um futuro melhor: Acho que é um pouco de todos nós, comunistas, a esperança de um futuro melhor. Principalmente, para nós que temos crianças, temos que nos apegar nisso para pensar mais em todo o coletivo”.


Confira a seguir a entrevista que a autora concedeu ao Em Defesa do Comunismo:

Vamos começar sobre o livro: você sempre gostou de poemas? Quais foram seus primeiros contatos com a poesia?

Juliana: Quando criança eu gostava bastante, estudei até a 8ª série em uma escola particular [em São Paulo], por isso tinha uma estrutura melhor. Eu gostava mais no primário, até uns 10 anos mais ou menos. Na adolescência tive um período muito rebelde e acabei só me afastando de tudo o que envolvia intelectualidade. Mas voltei a me aproximar na adolescência quando conheci a cultura hip hop com slams, batalhas de rima e saraus que chamaram minha atenção de volta a eles, mas nada muito amadurecido ainda para que eu voltasse a pegar literatura de fato.

Você chegou a participar de batalhas de rima e slams?

Juliana: Ia só para assistir, nunca cheguei a recitar ou ler de fato. Apenas uma vez organizei um sarau entre amigos que fui mestre de cerimônias onde li algumas coisas que havia produzido, mas foi algo bem pequeno.

Quando você começou a escrever poemas e se entender como poetisa?

Juliana: Depois de ser mãe, lá pelos 20 anos. Na verdade, foi um processo muito demorado e sinto que ainda estou nesse processo. Me vejo muito mais como escritora do que como poetisa. Não sei, também ainda não consigo me enxergar totalmente como escritora, tenho uma “síndrome de impostora” que vem da minha falta de formação formal. Também sei que o campo da literatura atualmente ainda é muito elitizado, não sinto que me encaixo nele.

Você escreve outros textos além de poemas?

Juliana: Já escrevi algumas matérias pontuais. Fiz dois cursos de extensão pela UFRJ do curso de letras dentro das temáticas de maternidade, era uma parceria com um núcleo de pesquisa em gênero chamado Núcleo Materna, nele havia uma coluna e escrevi para ela um tempo, além de já ter escrito mais recentemente para a redação do próprio EDC [Em Defesa do Comunismo] também. E antes disso eu mantinha um blog na mesma temática.

O que te levou a pensar em escrever o livro e, mais importante, querer publicá-lo?

Juliana: Na verdade, minha intenção inicial nem era escrever um livro. Comecei a escrever no início da maternidade mais como um desabafo e aos poucos eu ia arquivando eles. Sempre escrevi diários e fiz essas anotações pessoais. Com o tempo, com minha tomada de consciência tive um estalo de que eu poderia organizar e tentar publicá-los um dia. Foi quando me aproximei do Núcleo Materna, conhecendo algumas escritoras, que vi que meus textos tinham potencial. Este meu livro tem escritos que fiz já faz uns cinco anos até outros que escrevi no fim do ano passado, mas comecei a organizá-los, com a ideia de transformá-los em um livro, em 2022.

Como foi sua infância e adolescência? No primeiro poema me pareceu que você não se sentia muito encaixada no seu grupo de amigas, você acha que já naquele momento você conseguia enxergar uma diferença social em relação a elas?

Juliana: Naquele momento eu frequentava a escola particular. Minha família tinha condições de me manter naquela escola, mas nunca fomos ricos. Também não tinha entendimento de fazer uma análise mais profunda das condições de vida da minha família com a das outras crianças, mas eu sempre estranhei um pouco... Eu nasci e cresci aqui na Cidade Dutra, que é um bairro entre Grajaú e Interlagos, zona sul de São Paulo, não é uma quebrada mas também não é um bairro de gente rica. No ensino médio fui para uma escola pública bem fraca de estrutura, lembro que em várias matérias escolares eu sequer tinha professores. Nessa época eu tive um momento de revolta. Senti o choque da diferença que havia entre a realidade que havia vivido e aquela nova, mas não tinha bagagem para entender essa desigualdade que existe no meu território e no país. Por um lado me senti mais próxima de meus colegas de escola pública, mas também foi nessa época que conheci algumas drogas, comecei a cabular aulas e perdi o interesse nos estudos. Eu não via mais sentido em continuar estudando também porque a escola era muito ruim, muitos dias eu não tinha aula nenhuma e ficávamos fazendo nada o período inteiro. A junção desses vários fatores me levaram à evasão. Eu concluí o primeiro ano [do ensino médio], mas no segundo ano repeti e acabei abandonando a escola enquanto cursava ele pela segunda vez. Minha família estava bem desestruturada na época, tive muita negligência com meus estudos e não se importaram com o abandono, acho que isso também colaborou para minha escolha.

Você comentou que entrou no Núcleo Materna após ter se tornado mãe, mas queria que você contasse mais sobre outras mudanças que o nascimento de suas duas crianças trouxe para sua vida.

Juliana: Bom, foi com o nascimento deles que comecei a amadurecer, tinha entre 18 e 20 anos quando tive meus dois filhos. Como havia passado por esse momento de abandono da escola, não tinha perspectiva de futuro. Com o nascimento deles me veio esse estalo de que eu precisava retomar um projeto de vida, voltar a pensar em terminar meus estudos, ter uma carreira para que eu pudesse dar um futuro melhor para eles do que o que eu tinha naquele momento. Tentei me inscrever em supletivos (Educação de Jovens e Adultos), mas o problema era que só tinham aulas à noite e como mãe solo com crianças pequenas para mim era inconciliável. Durante a pandemia eu comecei a fazer um supletivo online no Centro Paula Souza. Mas não cheguei a concluir porque tenho muita dificuldade em fazer provas, fico muito ansiosa e nervosa, o que impede meu foco. Cheguei a tentar fazer ENCCEJA (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), mas acabo tendo crises de pânico e travando no dia da prova, por isso não consegui me formar até agora.

Como você sente que não ter concluído os estudos impacta na sua trajetória? Seu caso não foi de gravidez na adolescência, mas há muitas meninas que abandonam a escola por esse motivo, quais políticas públicas você acha que poderiam ajudar você e essas mães adolescentes?

Juliana: A maior consequência é no mercado de trabalho, não consigo me inserir nele sendo mãe sem ter concluído o ensino médio. Eu gostaria muito de fazer uma faculdade que só poderei fazer depois de concluir esses estudos. Com isso entendi a importância do fim do vestibular. Também tenho uma questão de me sentir intelectualmente inferior, por frequentar também muitos espaços com pessoas que já possuem ensino superior, percebo que a tratativa social é muitas vezes diferente. Se tivéssemos mais políticas públicas, desde educação sexual nas escolas até programas sociais de manutenção e progressão no ensino médio, além da própria melhoria estrutural, o ambiente seria mais propício para impedir que os jovens abandonassem os estudos. Além da própria legalização do aborto, que seria um benefício imediato para essas meninas que hoje engravidam enquanto estão na escola. A estrutura de nossa educação é muito precária ainda. É urgente pensar em políticas mais primárias e estruturais. Essa bolsa de ensino médio que o governo Lula está implementando agora, por exemplo, para mim é uma medida que serve apenas para colocar um curativo em uma fratura exposta que não vai resolver o problema da evasão escolar que temos no país.

Você comentou que tem crises de pânico quando vai realizar provas da ENCCEJA e até mesmo as da própria EJA. Essas crises são comuns em outras situações de sua vida?

Juliana: Sim. Na verdade, eu sou borderline, que é um transtorno de personalidade. Descobri há cerca de dois anos. Ele resulta em padrões de comportamento disfuncionais, de desregulação emocional e cognitiva. Sinto que ele impacta bastante em minha rotina como mãe e militante. A escrita, inclusive, foi um grande lugar de evasão dessa carga. Por isso, no livro há poemas que abordam essa questão da neurodivergência. Alguns falam sobre desafios crônicos, minhas crises e por aí vai.

Você também é militante da Célula Feminista Classista do Movimento pela Reconstrução Revolucionária do PCB. Você pode nos contar o que te fez decidir por militar em um partido comunista e como foi essa trajetória até chegar na militância?

Juliana: Hoje eu percebo que foi pela própria precariedade que passei na minha vida. Além de não conseguir concluir meus estudos nem me inserir no mercado de trabalho, em meus partos passei por violência obstétrica, essas foram coisas que provocaram uma raiva em mim e  que, aos poucos, percebi que precisava ser organizada. Depois da violência obstétrica eu pensei em começar a trabalhar como doula, que são pessoas que trabalham assistindo gestantes antes, durante e depois do parto. Cheguei a fazer um curso e me inserir nesse caminho, porém, quando fui atuar percebi que não tinha ainda saúde mental para esse tipo de trabalho. Depois disso, comecei a desejar cursar serviço social e, ao mesmo tempo, comecei a procurar organizações e movimentos que tivessem algum trabalho social com mulheres trabalhadoras ou em vulnerabilidade. Acabei conhecendo o Partido Comunista Brasileiro (PCB) pela internet junto com meu companheiro que também estava buscando uma organização e eu entrei pelo Coletivo Feminista Classista.

Por que de todas as opções você escolheu um partido marxista-leninista? Pelo seu relato me pareceria mais natural você procurar organizações como o MTST ou MST, por exemplo.

Juliana: Queria encontrar um meio que auxiliasse mulheres concretamente e diretamente. Eu flertei um tempo com o Movimento de Mulheres Olga Benário, mas encontrei algumas desavenças políticas com essa organização. Me identifiquei muito mais com a linha política do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. Lembrando agora, fiquei quase seis meses em aproximação e nesse período fui sentindo a importância da forma partido como organização para a luta de libertação das mulheres. Também me aproximei muito da linha de mulheres que pensaram o pós revolução como as revolucionárias [Alexandra] Kollontai e [Nadejda] Krupskaia. Por exemplo, considero muito efetiva a implantação do novo sistema educacional após a Revolução Russa e as contribuições sobre as problemáticas da família tradicional mononuclear. Hoje, sinceramente, ainda estou aprendendo muito, não sinto que tenha tanta bagagem teórica ainda, mas me construo autodidata. Porém, vejo que minha entrada no partido, principalmente a partir dos trabalhos práticos, tem enriquecido minha formação. Nunca havia militado antes e o contato direto com mulheres trabalhadoras e crianças no Jd. D’Abril [favela localizada na zona oeste de São Paulo] e a inserção em frentes como a Frente Estadual Pela Descriminalização e Legalização do Aborto me permitiram aprender como a classe trabalhadora pode se organizar e como lutamos por uma pauta comum. Isso tem enriquecido bastante minha construção.

Estar organizada em um partido ou coletivo pode ser um espaço de socialização, confraternização, acolhimento e pode proporcionar uma rede de apoio para pessoas cuidadoras de crianças. Mas também pode ser um espaço opressor para mulheres, isolador para mães e adoecedor. Como você entende essas contradições?

Juliana: Essa é difícil de responder. Na verdade, a primeira coisa que preciso pontuar é que, atualmente, meus filhos não estão morando comigo mas com a família paterna, muito devido à minha instabilidade financeira. Isso faz com que eu tenha muito mais tempo livre para a militância do que eu teria caso eles estivessem morando comigo. Talvez, se eles voltassem a morar comigo, eu não conseguisse conciliar o trabalho de cuidado deles com a militância. Na verdade, planejo que eles voltem a viver comigo o mais tardar ano que vem, porque eles estão entrando em um período de pré-adolescência que quero acompanhar e não tenho ideia de como vou tocar esses dois trabalhos.

De maneira geral, eu acho que o Partido tem sido um ambiente muito mais adoecedor do que acolhedor para nossas militantes mães, principalmente as mães solo. Acho que essa contradição tem origem no fato de ainda não termos efetivado mudanças que são necessárias para a construção de uma sociedade mais igualitária. Não vai tapar o buraco construirmos ambientes para crianças quando temos tarefas e reuniões e/ou oferecer auxílio financeiro. Precisamos efetivar logo espaços mais concretos que realmente desafoguem a sobrecarga das mães e cuidadores em geral, já que também há pessoas que não são mães mas que cuidam de idosos, pessoas com deficiência ou pessoas doentes. Esses tipos de espaços já foram construídos em alguns países no passado: como a construção de lavanderias e cozinhas comunitárias, creches associativas, entre outros que alguns países socialistas como a União Soviética e a Alemanha Oriental tiveram. É importante enxergarmos a urgência disso e começar a construção dessas políticas reais que vão para além desses discursos bonitos feitos tão frequentemente, mas que pouco nos ajudam concretamente.

Você acredita que esse trabalho de cuidado dos filhos tem impedido muitas mães de se tornarem militantes e participarem da vida política?

Juliana: Sim. Eu vejo relatos de outras camaradas mães. Temos o exemplo de uma tribuna maravilhosa da camarada Yolle (“A responsabilidade do Partido Comunista frente à opressão da maternidade: sobre tarefas urgentes na socialização de cuidados”) que também aborda isso. Acho isso muito visível. Tenho certeza que se fizermos um levantamento da proporção de camaradas mães que temos, será um número muito baixo. Na organização já temos menos mulheres do que homens, se formos ainda olhar para as mulheres mães, temos poucas, é sintomático.

Por que você acha que essa questão não é uma prioridade do Partido?

Juliana: Eu acho que ainda é uma herança do próprio machismo que insiste em persistir dentro das organizações. Por mais que tenhamos avançado em algumas questões, essa é uma que não conseguimos superar estruturalmente pois ainda há resistência. Não tenho uma resposta muito bem formulada para explicar isso melhor.

Seus filhos estão com a família paterna, mas como você organiza sua rotina de estudos, trabalho, contato com eles, militância e produção cultural?

Juliana: Minha rotina tem sido bastante caótica. Tenho tentado manter meu plano de estudos durante a semana, mas tenho muitos percalços, a neurodivergência acaba me atropelando muitas vezes com as crises. Ano passado consegui fazer alguns [trabalhos de] freelance, mas foi pouca coisa e estou desempregada há bastante tempo. Como meus filhos estudam durante a semana e é um pouco longe daqui, eu tento passar os finais de semana com eles, mas são justamente nesses dias que são marcadas a maioria das tarefas do Partido. Sempre preciso escolher entre a militância e eles, isso é bem complicado. Eu vou tentando equilibrar. Confesso que ultimamente acabei me engajando mais nas tarefas partidárias, quero aproveitar esses anos que eles estão com a família paterna e tenho mais tempo para minhas coisas pessoais para me envolver mais na militância.

Você se sente culpada ao fazer essa escolha entre passar o final de semana com seus filhos ou fazer alguma tarefa da militância?

Juliana: Muita culpa! Eu acho que, na verdade, na maternidade o sentimento geral é culpa em tudo, em todas as situações que você conseguir pensar. Mas dentro dessa questão, em específico, eu sempre tento me apegar ao pensamento de que estou fazendo isso para uma construção maior que vai beneficiar eles no futuro. Tento contornar a culpa dessa forma.

Entrando nessas questões mais políticas, recentemente foi criado um movimento chamado Vida Além do Trabalho que defende o fim da escala 6x1. Que importância você vê na pauta de redução da jornada semanal para as mães trabalhadoras?

Juliana: Essa pergunta é quase autoexplicativa. Acho que é muito explícito, até para quem está fora da nossa bolha, a sobrecarga que existe para as pessoas que estão encarregadas dos trabalhos reprodutivos, domésticos e outros não remunerados. Essa é uma sobrecarga que acaba adoecendo as mulheres física e psicologicamente e isso interfere na vida dessas pessoas de várias maneiras, por exemplo, uma mulher com tripla jornada, adoecendo por conta dessa sobrecarga pode perder o emprego o que lhe gera um novo sofrimento. Precisamos urgentemente diminuir a jornada de trabalho semanal, isso vai trazer benefícios não só para nós cuidadoras, mas para todo mundo. O adoecimento dessas mulheres cuidadoras ressoa no ambiente que ela convive, nossos filhos e familiares acabam ficando prejudicados também, o que, por sua vez, acaba ressoando nos ambientes que frequentam. E mesmo que não prejudicasse ninguém além delas próprias continuaria sendo injusto.

Estamos bem próximo do dia 08 de março. Qual a importância desse dia para as mães trabalhadoras do Brasil?

Juliana: Acho que precisamos primeiro socializar melhor que esse não é um dia da mulher mas, sim, da mulher trabalhadora. Esse dia é levado muito por essa visão liberal. É preciso que todo mundo entenda a questão do trabalho envolvida. A pauta do Vida Além do Trabalho é uma questão importante a ser reivindicada neste 8 de março, assim como outras questões que debatemos nesta entrevista como a legalização do aborto, a gravidez na adolescência, o abandono escolar e nossa exclusão no mercado de trabalho. Acho que esse dia ainda é um espaço muito pouco visto pelas trabalhadoras como uma data de luta e reivindicação de maior igualdade social

Você acha que temos espaço para disputar essa data?

Juliana: Agora eu vou ser um pouco pessimista: não vejo espaço de disputa. Na própria construção do ato 8M, nós vemos como a disputa nos parece ser um desperdício de energia. Acho que temos que voltar nossos braços para a própria revolução de fato, construindo mais na base da classe trabalhadora, do que apenas participar desse dia.

Você diz em relação ao ato?

Juliana: Não, digo em relação à data em si. A questão das próprias campanhas que existem nesse dia, que vão além do ato. Acho que fazemos um grande esforço para colocar em pauta as questões das mulheres trabalhadoras e esse esforço é encoberto pelas campanhas liberais e burguesas das empresas sobre o dia ser apenas um dia para a mulher ganhar flores.

Você tem uma visão pessimista sobre o futuro também?

Juliana: Acho que não diria nem pessimista nem otimista mas esperançosa. Algo mais próximo do neutro. Acho que é um pouco de todos nós, comunistas, a esperança de um futuro melhor. Principalmente, para nós que temos crianças, temos que nos apegar e pensar mais em todo o coletivo. Eu tento manter a revolução em mente, é meio difícil. Para ser bem sincera, às vezes perco ela um pouco. Mas acho que é da minha natureza ser pessimista.

Sobre sua trajetória como escritora, como você vê seu futuro?

Juliana: Objetivamente, por enquanto não planejo escrever mais livros. Pretendo me concentrar em levar minha escrita para um sentido de olhar mais crítico e científico do que literário. Quando terminei a conclusão desse livro eu senti um grande fechamento de ciclo e faz um bom tempo que não escrevo mais poemas e prosas. As últimas coisas que escrevi foram mais no formato de reportagens. Eu gostaria de levar minha escrita para um viés mais político. Quem sabe virar jornalista.


Iniciada como um desabafo após a maternidade, a escrita foi parte fundamental da formação de Juliana. Foi por meio dela que percebeu que mesmo sem a conclusão do ensino básico, ela poderia tornar-se uma escritora profissional. Apesar das adversidades que poderiam ter excluído a autora por completo do acesso à arte e à cultura, Juliana insistiu e hoje conquistou a publicação de seu livro que também contará com exemplares físicos.

Por ser seu primeiro livro, a escritora sabe que terá dificuldades para conseguir todo o apoio necessário para a impressão de sua obra. Por isso, a solidariedade de classes torna-se fundamental. Como a própria autora apontou, o ambiente literário no Brasil ainda é um ambiente muito elitizado. Tornou-se raro encontrar obras prestigiadas escritas por mulheres trabalhadoras e ainda mais raro, obras prestigiadas escritas por mães trabalhadoras. O apoio a esse tipo de trabalho é um apoio para que toda a classe trabalhadora tenha suas próprias produções culturais. Colocando suas ideias e pontos de vista para além dos interesses da burguesia de nosso país.

O acesso à campanha para publicação do livro pode ser acessado pelo link: https://benfeitoria.com/projeto/tronco e a autora disponibilizou o poema a seguir para que os interessados conheçam um pouco do conteúdo.

a família de todas elas tinha mais dinheiro
do que a minha
a mais rica tinha o pai francês
foi a primeira vez que entrei num carro com teto solar
a primeira vez que entrei num closet
a primeira vez que fui numa festa a fantasia
claro, sem a fantasia
e acho que a primeira vez que vi gringo falando inglês
pessoalmente enquanto eu ficava constrangida
foi a primeira vez que elas entraram num fusca
e com certeza a primeira vez que viram um parente qualquer
de uma amiguinha bêbado no chão da sala
ahhh, deve ter sido por isso
que elas nunca mais voltaram
tanto creme importado
tanta comida e marca cara que nunca tinha visto
até o pão francês elas cortavam de outro jeito
que depois de ver eu quis imitar mas não me acostumava
e ali eu me sentia uma estranha no ninho
fantasiando
que tudo aquilo também era meu
que eu era parte daquele castelo
daquele conto de fadas
até o dia em que a pequena
cleptoladrinha
foi pega e exilada para sempre