'A responsabilidade do Partido Comunista frente à opressão da maternidade: sobre tarefas urgentes na socialização de cuidados' (Yolle)
Se somos comunistas, devemos compreender os cuidados com as crianças como algo coletivo. E é nossa responsabilidade enquanto Partido Comunista pensar maneiras de garantir essa socialização hoje. Pois as mães de nossa classe estão adoecidas, solitárias e exaustas hoje.
Por Yolle para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Nota da Autora: para a escrita desta tribuna, não consegui me desvencilhar da concepção binária de gênero feminino/masculino, então peço a compreensão dos leitores nesse aspecto. Ao me referir a mulheres, me refiro àqueles corpos entendidos socialmente como femininos, e todos os desdobramentos de opressões que recaem sobre nós. Além disso, me refiro especificamente ao peso social da maternidade, compreendendo que somos culturalmente as mais sobrecarregadas no cuidado dos filhos, não excluindo a pluralidade no tocante ao cuidado com crianças.
Todos aqueles que em algum momento se dispuseram a ler e estudar, mesmo que rapidamente, sobre luta de classes e feminismo classista, se deparou com a compreensão marxista e que a divisão sexual do trabalho diz respeito ao modo capitalista de produção e sua perpetuação. Todo comunista sabe que o trabalho doméstico e de cuidado recai majoritariamente para as mulheres de nossa classe como forma de aprisiona-las num regime de exploração que não somente favorece o acúmulo de capital, como também garante a sua perpetuação de forma mais ampla. O trabalho não pago, além de exaustivo e adoecedora, é solitário, pois nos é imposto também um modelo atomizado de família, fundado na imposição da monogamia como única forma possível de estabelecer relações interpessoais e familiares. Tudo isso beneficia o capital: não se paga pelo trabalho feminino que é responsável pela reprodução da vida; se isola aqueles corpos que cumprem centralmente a função reprodutiva para garantir a passagem dos bens de propriedade privada por meio da linguagem sanguínea exclusiva do homem; e expõe as mulheres a múltiplas jornadas de trabalho dentro e fora do ambiente doméstico familiar.
Tendo tudo isso em vista, seria natural compreender que os comunistas têm como dever a subversão, e em longo prazo a extinção, da divisão sexual do trabalho e individualização do cuidado (seja ele de crianças, idosos, PCD’s, enfermos e etc.), uma vez que essa divisão de trabalho é resultado do modo capitalista de produção, e parte necessária para a manutenção da sua existência.
Enquanto mãe e comunista, ao entrar nas fileiras da UJC, tinha a esperança de encontrar dentro da estrutura partidária alguma forma de acúmulo prático que subvertesse essa lógica. Do contrário, nossa organização muitas vezes reproduz os papéis de gênero e raça na divisão do trabalho político, do que formula e pratica sua superação. Para além disso, encontrei quase pouca, ou em alguma medida nenhum acúmulo pratico sobre a socialização de cuidados (e neste caso me refiro à experiência regional do Paraná, no que tange à UJC e ao próprio PCB e seus coletivos). E aqui preciso deixar claro uma coisa: não me refiro apenas à organização de “espaços kids” em eventos e espaços pontuais, ou ao destacamento de camaradas de cuidem das crianças para que suas mães e demais cuidadores participem dos espaços de militância. Esses espaços foram, e seguem sendo importantes e ne4cessários, mas é preciso apontar que não passam de meros curativos sob fratura exposta. E vale dizer, que mesmo para isso, que considero o básico, enfrento inúmeras dificuldades em ser ouvida sobre a urgência de ter acesso a isso para garantir a mínima condição de manter uma militância ativa, sendo constantemente obrigada a participar de reuniões e/ou tocar tarefas enquanto cuidava do meu filho.
Se somos comunistas, devemos compreender os cuidados com as crianças como algo coletivo. E é nossa responsabilidade enquanto Partido Comunista pensar maneiras de garantir essa socialização HOJE. Pois as mães de nossa classe estão adoecidas, solitárias e exaustas HOJE. As mães solo, sem rede de apoio, estão ainda mais soterradas, responsabilizadas por um trabalho que deveria ser desde o início, coletivo. Não podemos seguir fechando nossos olhos para essa situação, ainda mais quando temos mães camaradas em nossas fileiras.
Se o vínculo social e acolhimento mútuo é parte fundamental da permanência de nossos camaradas nas fileiras, serei obrigada a apontar o óbvio: nós mães estamos sendo excluídas desses espaços de socialização; seja por não termos com quem deixar nossos filhos, seja pelos espaços mais comuns de socialização não serem adequados para eles (como festas, bares e etc.), ou pela simples exaustão do dia a dia que nos afasta destes e tantos outros espaços. Somente quem convive com crianças sabe a exaustão mental de se preparar para sair com eles, sem saber se os espaços serão adequados, se terá ajuda com o cuidado durante sua permanência ali, sem contar preocupações com alimentação, brinquedos, deslocamento e afins. Por muitas vezes cogitei abandonar a organização, por me frustrar com tantas promessas vazias de apoio.
Um agravante desse quadro é a frequência em que nós mães somos colocadas em posições de extrema responsabilidade militante (geralmente em tarefas puramente operativas e organizativas, sob o argumento simplista e machista de “termos perfil” para tal) sem ao menos ser consideradas nossas condições reais, não somente de exercer a militância, mas de termos o mínimo de tempo de descanso e lazer. Constantemente abrimos mão de descanso que já não temos, pois entendemos a urgência de construirmos uma nova sociedade, para nós e nossos filhos.
Meu objetivo aqui é apontar a flagrante contradição que vivemos dentro da estrutura partidária. Ao mesmo tempo que nos formamos para sermos vanguarda do processo revolucionário, pouco consideramos a forma devastadora que se tem explorado a mão de obra das nossas camaradas mães, colocando-as em posições de extrema vulnerabilidade e exaustão física e mental ao não propor alternativas de socialização dos cuidados de nossas crianças. E essa deve ser uma responsabilidade do Partido como um todo, e não somente das instâncias nas quais temos mães.
Já passou da hora de estruturarmos espaços coletivos de cuidado, de reprodução da vida e socialização para nossa militância. Precisamos considerar a viabilização de espaços como cozinhas e lavanderias coletivas, creches associativas, espaços de convivência e etc.; é urgente buscar meios de aliviar a sobrecarga daquelas responsáveis pelo trabalho de cuidado e reprodução da vida. Essas medidas podem inclusive garantir a melhora de qual ide de vida de todes nossos camaradas, em especial aqueles que vivem situações de vulnerabilidade social e insegurança alimentar. Para além de uma abordagem “assistencialista”, esse tipo de proposta carrega em si um caráter formativo e de viabilização de inúmeras formas de inserção política dentro dos espaços em que temos base militante.
Acredito que seja nossa tarefa coletiva nos responsabilizar pela concretização dessas novas forma de socialização e organização da vida, numa perspectiva verdadeiramente revolucionária e de superação real das opressões que fomos ensinados a entender como parte da ordem natural das coisas. Reforço que enquanto não avançarmos nesse debate, o adoecimento e desligamento de mães e cuidadores continuará sendo rotineiro, e perdermos a cada dia mais mentes revolucionárias brilhantes, ofuscadas pela opressão cotidiana que lhes pesa os ombros de maneira insustentável.