Como deve ser um jornal no século XXI? (J.P. Guarnieri)

O jornal está no centro de toda a atividade comunista, porque é o que transforma as atividades de amadores isolados em uma organização de vanguarda. Justamente pela centralidade desse papel, Lênin entendia que o jornal deveria ser o dirigente ideológico do partido.

Como deve ser um jornal no século XXI? (J.P. Guarnieri)
"Precisamos criar um complexo multimidiático, capaz de exercer as múltiplas funções do jornal político"

Por J.P. Guarnieri para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Estas tribunas de debates abriram uma discussão bastante bem-vinda acerca do jornal do partido. Durante os meus anos de militância, o jornal do partido parece ter sido tratado como um órgão periférico, desimportante, um mero folheto onde meia dúzia de militantes dão a visão oficial do partido sobre temas que julgam importantes. Nada poderia ser mais distante do que um jornal leninista deveria ser. A criação de um jornal político que cobrisse toda a Rússia foi uma das preocupações centrais de Lênin no período que antecedeu a revolução. Nas palavras do próprio:

“Em nosso parecer, o ponto de partida da nossa atividade, o primeiro passo prático para criar a organização que desejamos, o fio condutor, enfim, seguindo o qual poderemos incessantemente desenvolver, enraizar e alargar essa organização, deve ser a fundação de um jornal político para toda a Rússia. Aqui precisamos antes de tudo de um jornal; sem um jornal é impossível coordenar sistematicamente a propaganda e a agitação multiformes e consequentes que constituem a tarefa permanente e principal da social-democracia em geral, e a tarefa particularmente urgente do momento atual, no qual o interesse pela política, pela questão do socialismo, está acordando na mais larga parte da população. E nunca foi sentida com tanta força como hoje a exigência de se completar a agitação dispersa, feita através da ação pessoal, dos jornalecos locais, opúsculos etc.” (Lênin, 1901)

Como podemos ver, o jornal tem como função coordenar de maneira sistemática os esforços de agitação e propaganda por todo o país, unificando atividades que acontecem de maneira isolada em cada região em uma ação comum. É precisamente esta organização de nossos esforços que transforma as lutas cotidianas da classe trabalhadora em luta de classes propriamente dita.

Ou seja: o jornal está no centro de toda a atividade comunista, porque é o que transforma as atividades de amadores isolados em uma organização de vanguarda. Justamente pela centralidade desse papel, Lênin entendia que o jornal deveria ser o dirigente ideológico do partido. Em seu texto “O jornal de Lênin”, o camarada Tavinho dá uma definição bem sucinta do papel que o jornal político deve exercer em nossa organização:

“Diante do exposto, é possível entender como características fundamentais do jornal de Lenin ser um organizador coletivo, voltado à vanguarda do proletariado, mas que dê conta de articular diferentes veículos de comunicação para diferentes graus de consciência no movimento operário. Deve organizar a literatura partidária comum, sem a qual não pode haver atividade revolucionária comum, bem como coordenar a propaganda e agitação em todo o país. Deve operar também como a tribuna para que o povo trabalhador possa fazer suas denúncias políticas cotidianas, com completa liberdade de palavra e de imprensa; ser o organizador coletivo da classe, o dirigente e unificador ideológico do partido proletário.” (Tavinho, 2023)

Ainda precisamos de um órgão que desempenhe essas funções. Mas devemos entender que Lênin escrevia no início do século XX, quando o jornal impresso ainda era o principal meio de comunicação em massa. De lá pra cá, vimos este papel ser desempenhado pelo rádio, depois pela televisão e finalmente pela internet. Nenhuma dessas invenções (até agora) extinguiu as outras, mas todas forçaram que os aparelhos de imprensa burgueses se reinventassem, incorporando estas novas linguagens. A internet, em particular, provocou mudanças profundas na maneira como consumimos notícias, ferindo de morte o jornal impresso como nenhuma outra invenção foi capaz. Um levantamento do Poder360 mostrou que a tiragem dos jornais impressos brasileiros caiu 16% em 2022. Este número é ainda mais dramático se olharmos mais para trás: em 1999, a média diária dos jornais brasileiros era 7.245.000 exemplares. Em 2022, esta média foi de 394.130, uma redução de 94,56%.

Isso se dá num cenário de mudança nos padrões de consumo de notícias do público brasileiro: segundo pesquisa da Comscore, 96% dos brasileiros consomem conteúdos jornalísticos em seus dispositivos, uma porcentagem acima da média global, que é de 90%.

Inicialmente, essa queda na venda de jornais impressos corria em paralelo com o crescimento das assinaturas digitais, impulsionado pelo crescimento dos dispositivos móveis (como tablets e smartphones) uma série de mudanças nos jornais digitais. A Folha, que liderou em número de assinaturas durante os anos 10, unificou em 2010 as Redações digital e impressa, integrando-as plenamente dois anos depois. Ao mesmo tempo, implementou o paywall, censurando parte de seu conteúdo para os leitores não-pagantes. Depois, começou a diversificar o seu conteúdo, produzindo especiais temáticos aprofundados, seminários e podcasts. Também amplificou seu campo de atuação, passando a fazer publicidade legal (isto é, a divulgação de informações e documentos de companhias privadas que são de interesse público e/ou determinados por lei, como atas, balanços patrimoniais e manifestos) e criando um estúdio, separado da Redação, para produção de conteúdo customizado para clientes, o Estúdio Folha.

Medidas semelhantes foram adotadas por outros sites. Eis o modelo de negócios aplicado pela Infoglobo, empresa responsável pela gestão dos quatro jornais do Grupo Globo até 2018:

“Adotamos o modelo de paywall poroso como parte da estratégia de valorização do conteúdo de qualidade produzido pelo jornal. O modelo permite uma degustação do conteúdo. Depois de certo nível de navegação, o leitor é convidado a degustar todos os produtos premium mediante cadastro. O próximo passo é tornar-se assinante para ter acesso ilimitado a todos os produtos: site do jornal, revista digital O Globo a Mais, Acervo, jornal e ebooks.” (Marcelo Corrêa, 2013)

Como podemos ver, os jornais da imprensa burguesa precisaram se transformar em complexos multimidiáticos, com um grande sucesso inicial: de 2014 a 2015, a média do número de assinaturas digitais cresceu 27%; no ano seguinte, cresceu mais 14%. Mas este modelo de negócios parece ter alcançado um teto conforme a virada da década se aproximava. Eis os dados segundo o Poder360:

Um gráfico representando a variação anual do número de assinaturas digitais. Produzido pelo Poder 360 e replicado neste artigo.
O texto diz "Jornais no Brasil. Variação anual de assinaturas digitais. Números absolutos de 12 veículos selecionados pelo Drive / Poder 360."
2016: 83.033 novas assinaturas, uma variação de 14%.
2017: Perda de 29.194 assinaturas, uma variação de -4,3%.
2018: 212.004 novas assinaturas, uma variação de 32,8%.
2019: 114.493 novas assinaturas, uma variação de 13,3%.
2020: 60.061 novas assinaturas, uma variação de 6,2%.
2021: 51.157 novas assinaturas, uma variação de 4,8%.
2022: 31.019 novas assinaturas, uma variação de 2,9%."

No início de 2023, quando o gráfico foi produzido, as publicações on-line registraram o menor avanço desde 2018.

Os jornais analisados foram O Globo, Folha, Valor, Zero Hora, A Tarde, O Tempo, Estado de Minas, Super Notícia, Correio Brasiliense, O Popular e Extra.
Observação: O Drive / Poder 360 optou por incluir 5 veículos de comunicação desde a última divulgação anual do levantamento. Por esse motivo, o número total de 2016 a 2021 difere do que foi divulgado anteriormente.
Observação 2: o IVC (Instituto Verificador de Comunicação) não audita a versão digital de O Povo, Meia Hora e Diário do Pará. Por isso, os 3 só aparecem no infográfico de circulação impressa.
Fonte dos dados: IVC.

Após estes dois saltos de crescimento, as assinaturas digitais apresentaram uma leve queda, antes de crescer mais 32,8%. Mas a partir de 2018, o ritmo de crescimento vai se desacelerando, até o ano atual que, apesar de ainda não ter terminado, parece apresentar uma queda nos números absolutos: em dezembro de 2022, o total de assinantes das versões digitais dos 12 principais jornais brasileiros foi de 1.105.627 para 1.062.617, uma diminuição de 3,9%.

Uma tabela representando a evolução da circulação digital no Brasil. Produzida pelo Poder 360 e replicada neste artigo.
O texto no topo diz: "Jornais no Brasil. Evolução da circulação digital de 2017 a junho de 2023, em números absolutos (milhares). Abaixo do texto, há linhas coloridas representando as evoluções nos números. Abaixo do gráfico, estão os números absolutos de assinaturas digitais de cada jornal.

Folha: foi de 164.327 assinaturas em 2017 para 296.885 em 2022 e 295.176 em 2023. A variação entre 2022 e junho de 2023 foi de -0,6%.
O Globo: foi de 112.987 assinaturas em 2017 para 310.607 em 2022 e 287.024. A variação entre 2022 e junho de 2023 foi de -7,6%.
Estadão: foi de 88.745 assinaturas em 2017 para 153.179 em 2022 e 154.256 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de 0,7%.
Valor: foi de 28.985 assinaturas em 2017 para 116.631 em 2022 e 109.642 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -6%.
Zero Hora: foi de 80.150 assinaturas em 2017 para 94.373 em 2022 e 97.020 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de 2,8%.
A Tarde: foi de 13.348 assinaturas em 2017 para 40.980 em 2022 e 48.700 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de 18,8%.
O Tempo: foi de 44.784 assinaturas em 2017 para 24.105 em 2022 e 16.214 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -32,7%.
Estado de Minas: foi de 25.356 assinaturas em 2017 para 27.140 em 2022 e 20.455 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -24,6%.
Super Notícia: foi de 48.143 assinaturas em 2017 para 17.700 em 2022 e 13.017 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -24,6%..
Correio Braziliense: foi de 18.427 assinaturas em 2022 para 14.826 em 2022 e 14.535 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -2%.
Extra: foi de 21.460 assinaturas em 2017 para 6.302 em 2022 e 3.974 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -36,9%.
O Popular: foi de 449 assinaturas em 2017 para 2.899 em 2022 e 2.604 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -10,2%.
O número total de assinaturas digitais foi de 647.161 em 2017 para 1.105.627 em 2022 e 1.062.617 em 2023. A variação entre junho de 2022 e 2023 foi de -3,9%.

Observação: os dados de 2017 a 2022 correspondem ao fechamento do mês de dezembro.
Observação 2: O Drive / Poder 360 optou por incluir 4 veículos de comunicação desde a última divulgação do levantamento. Por esse motivo, o número total de 2017 a 2021 difere do que foi divulgado anteriormente.
Fonte: IVC (Instituto Verificador de Comunicação).

Vários fatores contribuem para esta queda. A queda do poder de compra durante o governo Bolsonaro certamente não ajudou: entre 2018 e 2022, o real perdeu quase 30% do seu valor de compra. Além disso, de acordo com dados do Reuters Institute Digital News Report 2023, publicado pela Reuters, os últimos anos foram marcados por uma queda da confiança do brasileiro na imprensa. Em 2015, 62% dos brasileiros diziam confiar “na maior parte das notícias a maior parte do tempo”. Em 2023, este número é de 43%.

Mais uma vez, o ex-presidente tem uma contribuição para este cenário. Primeiramente, com seus repetidos ataques à imprensa, amplificados por sua rede de apoiadores: dois terços dos brasileiros entrevistados relatam que “ouvem ou veem, com frequência, pessoas criticando a imprensa”. O ex-presidente também foi um grande propagador de notícias falsas durante a pandemia. Em 2020, uma reportagem do Fantástico noticiou que nove entre cada dez brasileiros com acesso à internet já receberam pelo menos um conteúdo falso ou desinformação sobre o coronavírus.

Também houve uma mudança no perfil do consumo de notícias do brasileiro, que acompanha tendências globais. De 2013 pra cá, caiu a porcentagem dos brasileiros que se informa através dos meios tradicionais, isto é, a televisão e os jornais impressos. Também caíram aqueles que se informam online, considerando tanto jornais digitais quanto mídias sociais. O único número que cresceu é o de brasileiros que se informam por redes sociais, que foi de 47% para 57%. Mas mesmo este número está em queda: ele teve seu ápice em 2016, quando o Reuters Institute Digital News Report apurou que 72% dos brasileiros usavam as mídias sociais para se informar.

Um gráfico representando em porcentagem quantos dos entrevistados pela Reuters consomem notícias por cada meio. Gráfico criado pela Reuters e traduzido para este artigo.
O título do gráfico é Fontes de Notícias (2013 a 2023).
A porcentagem dos entrevistados que consome notícias online, incluindo jornais digitais e mídias sociais, foi de 90% em 2017 para 79% em 2023. Pela televisão, foi de 75% para 51%. Através de mídias sociais, foi de 47% para 57%. Por impressos, foi de 50% para 12%.

A queda em todos estes números talvez esteja relacionada com a evasão informacional. 41% dos entrevistados afirmaram que evitam se manterem informados. Este número já foi maior: durante o ano eleitoral, 54% dos entrevistados diziam evitar as notícias. Mas é importante salientar que esta é uma tendência global: 48% dos entrevistados pela Reuters se disseram muito ou extremamente interessadas em notícias. Em 2017, eram 63% dos entrevistados.

Ainda que o jornal leninista tenha uma função bastante distinta daquela dos jornais burgueses, estes dados demonstram de maneira inequívoca a necessidade de repensarmos a forma que nosso jornal político deve ter. Insistir em colocar um meio midiático em declínio como é o jornal impresso no centro de nossas atividades seria como continuar a escrever em tábuas de argila após a invenção do pergaminho. Precisamos, também, criar um complexo multimidiático, capaz de exercer as múltiplas funções do jornal político.

A questão é: como chegamos lá? Com nosso nível atual de organização, não conseguimos sequer publicar mensalmente o jornal O Poder Popular. O podcast “quinzenal” do partido, o Ousar Vencer, também é incapaz de manter a regularidade. Seria tolice imaginar que somos, atualmente, capazes de organizar os complexos fluxos de trabalho de uma organização multimídia. Como todo trabalho humano, comecemos visualizando aquilo que pretendemos criar.

Precisamos, é claro, de um jornal digital, um portal que vá agregar as produções literárias do conjunto da nossa militância. Além das reportagens escritas, esse portal publicará reportagens em vídeo e ao menos um podcast. Para a produção deste conteúdo, precisaremos de ao menos três equipes especializadas: uma equipe de redação, uma equipe de produção audiovisual e uma equipe de produção sonora. Para direcionar tráfego para o nosso portal, precisamos de uma equipe de mídias sociais, que selecionará e/ou produzirá conteúdo adequado para a postagem nos principais aplicativos utilizados pela população brasileira. Este jornal precisará de uma política de finanças robusta: um complexo multimidiático é um empreendimento bastante custoso, não conseguiremos sustentar esse aparelho puramente através das contribuições dos nossos militantes. O uso de ferramentas de financiamento coletivo certamente será parte dessa política de finanças, mas acredito que, sozinhas, elas ainda serão insuficientes. Para sanar este problema, acredito que devemos, mais uma vez, nos espelhar nas práticas da imprensa burguesa: além do conteúdo gratuito, precisaremos pensar em conteúdo pago, acessível somente para membros assinantes. Nesse sentido, vejo algumas direções: a organização de palestras e seminários presenciais, a produção de cursos digitais sobre temas de interesse do nosso público e a produção de entretenimento dentro da nossa linha política. Este último, além de potencialmente lucrativo, tem a vantagem de captar público em momentos de alta evasão informacional.

Tendo agora uma ideia do aparelho que pretendemos criar, podemos começar a pensar em quais são os passos necessários para a implementação deste plano. A meu ver, o primeiro passo é a criação de um jornal digital apenas com conteúdo escrito. A produção de material literário requer menos conhecimentos técnicos, mas já exige uma estrutura organizativa sólida: precisamos engajar nossa militância numa produção permanente, inclusive formando equipes inteiramente dedicadas à produção de reportagens. O objetivo deve ser atingir um nível de produção que entregue múltiplos artigos diários e colunas semanais. Num primeiro momento, deveremos organizar um núcleo de redação em cada estado, responsável por produzir um artigo semanal dedicado à conjuntura local. Além das equipes estaduais, precisamos de uma equipe de redação dedicada inteiramente a temas de abrangência nacional, com periodicidade ao menos quinzenal. Também devemos estar abertos para receber artigos produzidos pelos núcleos e militantes da base, que poderão tratar de temas ainda mais específicos, como a luta do movimento estudantil em determinada faculdade ou a atuação sindical de certa categoria. Conforme nosso trabalho se estruturar melhor, os artigos diários poderão ser inteiramente redigidos pela base, com a equipe de redação do jornal se dedicando somente às colunas.

Para dar suporte a este trabalho, precisamos de uma equipe responsável pela manutenção do site, recebendo os e-mails dos contribuintes, colocando os textos e continuamente buscando melhorar a nossa interface para tornar a experiência de navegação o mais fluida possível e direcionar o tráfego para os artigos mais importantes; precisaremos de uma equipe de design para produzir infográficos e material de divulgação; por fim, precisaremos de uma equipe para a gestão de nossas mídias sociais, para que este trabalho chegue aos usuários nas plataformas que eles já acessam. De acordo com o Digital News Report 2023, as mídias sociais mais utilizadas para o consumo de notícias são, por ondem de grandeza, o What’s App, YouTube, o Instagram e o Facebook. É neles que devemos focar inicialmente nossos esforços de divulgação, mas precisamos ficar de olho nas mudanças nos padrões de consumo: o Facebook vem continuamente perdendo usuários, enquanto o TikTok cresce como ferramenta informativa.

Também teremos que dar um primeiro passo na monetização deste conteúdo, usando as plataformas de financiamento coletivo e criando uma Pessoa Jurídica para receber doações diretas através do PIX.

Ainda que o nosso foco inicial deva estar na produção literária, isso não significa sufocar os trabalhos dos camaradas que por conta própria já produzem conteúdo em áudio e em vídeo. Com o site no ar, nós podemos linkar para estes conteúdos, o que tanto direcionará nossos leitores para o conteúdo que já é produzido quanto trará para o site usuários buscando este conteúdo em ferramentas de pesquisa.

Com um jornal digital organizado e uma política de finanças incipiente, poderemos colocar mais uma camada no nosso trabalho, iniciando a produção de conteúdo em áudio, como podcasts. A criação de conteúdo em áudio requer todo conhecimento necessário para a produção textual, mais o conhecimento técnico para a gravação e edição e uma política financeira que permita a compra de equipamento. Assim, teremos uma equipe de redação atuando em sintonia com uma equipe de gravação e edição, ou seja, uma forma mais complexa de trabalho coletivo. Passaremos a entender mais dos problemas que surgem nestes trabalhos mais complexos, como a necessidade de trabalho mais especializado, os gargalos na produção que esta especialização pode criar, os valores que é preciso levantar para subsidiar a compra de equipamento e, quem sabe, até a remuneração do trabalho envolvido. Para evitar que a necessidade de conhecimento técnico se torne um obstáculo, precisaremos organizar atividades de formação com camaradas que já trabalham na área, difundindo para o conjunto da nossa militância os saberes que adquiriram em suas vidas profissionais. Assim, não ficaremos dependentes do recrutamento de camaradas da área do audiovisual para garantir que tenhamos múltiplos camaradas aptos para cada uma das funções necessárias no processo de produção midiática.

Precisamos pensar bem no tipo de conteúdo em áudio que iremos produzir. De acordo com o Digital News Report 2023, os tipos de podcast mais consumidos são os que buscam aprofundar um tema, como o Psicologia na Prática e o História em Meia Hora, e os de entrevistas em formato de conversa extensa com o apresentador, como o PodPah e o Flow. Os podcasts de notícias ainda são de baixo consumo: 34% dos entrevistados pela Reuters globalmente ouviam ao menos um podcast mensalmente, mas só 12% acessavam programas dedicados a notícias. No Brasil, o número de ouvintes é ainda maior: 57% dos entrevistados escutam podcasts, não temos dados quanto à porcentagem que ouve podcasts de notícias. Um podcast de notícias pode ser importante para cumprir a função política do nosso jornal, mas não irá aumentar nosso alcance nem nossa captação de recursos. Assim, para continuar o trabalho de expansão do nosso complexo multimidiático, devemos buscar também criar podcasts seguindo os formatos mais populares. Esta seria uma boa maneira de iniciar a produção de conteúdo pago: além dos episódios regulares, estes podcasts também podem ter episódios especiais disponíveis somente para assinantes. Ou, ainda, podem sair primeiro para assinantes e apenas depois serem publicados de maneira gratuita. O modelo exato de monetização é algo que deverá ser discutido quando já tivermos uma ideia de como serão estes programas.

Só aí estaremos prontos para finalmente começar a produção de conteúdo audiovisual. Neste ponto, já teremos todo o conhecimento técnico e prático necessário para a gestão de um aparelho que engloba múltiplos meios de mídia, bem como uma política de finanças suficientemente sólida para a aquisição do equipamento necessário para a produção em vídeo. Nossa tarefa inicial será a formação de equipes de produção: um vídeo precisa mobilizar vários camaradas para atuar em conjunto: uma pessoa falando, uma operando a câmera, uma fazendo a iluminação, uma operando a gravação de áudio e, por fim, um editor para montar o vídeo. Esta é uma equipe enxuta, capaz de gravar vídeos do tipo mais simples: uma pessoa falando para a câmera sobre determinado tema, como os vídeos do camarada Jones Manoel. Estes vídeos são um excelente ponto de partida para nossa produção audiovisual, e servirão para versar nossa militância no trabalho prático necessário para a produção em vídeo. Também já são adequados para a monetização: podemos criar cursos de videoaulas ou canais que produzam vídeo-ensaios financiados através do Apoia-se. Mas eles são, ainda, insuficientes para cumprir o papel organizador do jornal. Voltemos para Lênin, e já peço sua paciência pela citação mais extensa:

“Um jornal, todavia, não tem somente a função de difundir ideias, de educar politicamente e de conquistar aliados políticos. O jornal não é somente um propagandista e agitador coletivo, mas também um organizador coletivo. Sobre esse último aspecto, se pode comparar o jornal com a estrutura de andaimes que envolve o edifício em construção mas permite adivinhar seus traços, facilita os contatos entre os construtores, lhes ajudando a subdividir o trabalho e a dar conta dos resultados gerais obtidos com o trabalho organizado. Através do jornal e com o jornal se formará uma organização permanente, que se ocupará não somente do trabalho local, mas também do trabalho geral sistemático, que ensinará a seus membros a acompanharem atentamente os acontecimentos políticos, a avaliar a importância e a influência de diversos estratos da população, a elaborar quais métodos permitem ao partido revolucionário exercitar sua influência sobre os mesmos. Até mesmo as tarefas técnicas de assegurar ao jornal fornecimento regular de recursos e uma distribuição eficiente obrigará a criar uma rede de agentes locais de confiança do partido unificado, agentes [distribuidores e correspondentes] que deverão manter-se em contato vivo uns com os outros, deverão conhecer a situação geral, habituar-se a executar regularmente uma parte do trabalho para toda a Rússia, a experimentar as próprias forças organizando hora esta, hora aquela ação revolucionária. Esta rede de agentes será o esqueleto exatamente da organização de que aqui precisamos: suficientemente grande para estender-se por todo o país; suficientemente ampla e variada para efetuar uma rigorosa e detalhada divisão do trabalho, suficientemente temperada para saber cumprir inflexivelmente o seu trabalho em todas as circunstâncias, em todas as reviravoltas e em todos os imprevistos, bastante flexível para saber, por um lado, evitar a batalha em terreno descoberto e contra um inimigo de forças superiores, que as concentrou em um só ponto e, por outro, aproveitar das incapacidades de manobra do inimigo para cair-lhe em cima no lugar e no momento em que ele menos espera. Hoje, diante de nós se coloca uma tarefa relativamente fácil, apoiar os estudantes que se manifestam nas praças das grandes cidades. Amanhã, pode se colocar uma tarefa mais difícil, por exemplo, apoiar o movimento dos desempregados de alguma região. Depois de amanhã, deveremos estar talvez em nosso posto participando de modo revolucionário de um levante camponês. Hoje, devíamos usar o agravamento da situação política que o governo criou com a cruzada contra o zemstvo [espécies de parlamentos rurais de tipo feudal russo]. Amanhã, deveremos apoiar a indignação da população contra este ou aquele esbirro czarista, desencadeando e ajudando, mediante os boicotes, as denúncias, as manifestações etc., a dar uma lição tal que o constranja a se retirar. Tal grau de preparação para a luta se pode formar somente com uma atividade contínua em que se empenhe a tropa regular.” (Lênin, 1901)

Percebam o papel que desempenha a distribuição do jornal nesta formulação. Além de colocar a organização comunista em contato direto com a classe trabalhadora, ela exige que se crie uma organização capaz de percorrer todo o território russo, uma das condições básicas para se empenhar na atividade revolucionária propriamente dita. Esta não é uma função que conseguiremos desempenhar apenas produzindo vídeos em nossas próprias casas: precisamos de equipes que se desloquem até os locais de morada, trabalho e lazer da classe trabalhadora, conhecendo em primeira mão as suas condições e criando relações pessoais com lideranças locais. É assim que nosso trabalho audiovisual pode ser o gérmen da organização revolucionária que pretendemos criar.

Tomemos por exemplo as recentes enchentes no Rio Grande do Sul: no mundo ideal, estas três equipes entrariam em ação, indo até os locais afetados conversar com as vítimas. Quando produzíssemos matérias, escritas e em vídeo, sobre o assunto, tomaríamos conhecimento de quem são as pessoas afetadas, onde elas moram, do que estão precisando. E aí poderíamos direcionar nossos esforços para campanhas de arrecadação, tanto através de mídias sociais quanto em ativos nos bairros, em seguida fazendo a distribuição dos mantimentos. E aí poderíamos estabelecer contatos mais duradouros com estas populações locais, que poderiam se voltar ao nosso jornal para fazer denúncias ou compartilhar suas formulações quanto às questões regionais.

Este é um tipo de filmagem mais complexa. No momento em que formos capazes de produzir reportagens deste estilo, já estaremos prontos para criar uma produtora propriamente dita, podendo tanto captar recursos governamentais através de editais e leis de incentivo quanto prestar serviços de produção audiovisual, aumentando a nossa arrecadação.

Conforme espalharmos na nossa militância o conhecimento técnico e as habilidades práticas para a produção audiovisual, surgirão iniciativas de núcleos ou de militantes individuais que buscarão produzir conteúdo político específico para seus locais de atuação ou mesmo de entretenimento. Essas iniciativas, ainda que não sejam direcionadas pelas comissões que operam o trabalho do jornal, são positivas e devem ser agregadas ao nosso complexo multimidiático. Digamos que determinado militante tenha grandes dotes culinários, e ao aprender como gravar vídeos tenha conseguido criar uma audiência de nicho no TikTok que assiste suas vídeo-receitas, permitindo que ele ganhe seu sustento através da produção de conteúdo. Ainda que este conteúdo não seja político, ele poderia perfeitamente se tornar parte do nosso jornal, como uma coluna da seção de entretenimento, adicionando a receita por escrito ao vídeo. A inclusão deste conteúdo atrairia para nosso site leitores que não necessariamente estavam procurando por conteúdo político, aumentando a nossa base de usuários.

Essa estrutura não pode existir apenas no plano nacional: precisamos nos dedicar a montar aparelhos próprios de cada estado, que estarão em contato direto com as questões da conjuntura local. Não podemos esperar que haja camaradas capacitados em determinado espaço para que a iniciativa de criar estes aparelhos surja espontaneamente, é preciso um plano nacional de como implementar estes trabalhos em todo o país. Se certo estado tem uma política financeira mais débil e não é capaz de levantar fundos para comprar uma câmera, é preciso que os outros estados contribuam para a compra de aparelhos para aquele local. Se em tal região não há nenhum militante que saiba como se faz edição de vídeo, precisamos fazer uma atividade de formação direcionada. Se não tivermos este cuidado, é bem possível que sejamos capazes de criar estes aparelhos na região sudeste, que tem mais recursos econômicos e mais militantes trabalhando no campo do audiovisual, sem conseguir estruturar o trabalho da mesma forma no resto do país. Precisamos direcionar nossos esforços não para as regiões que já estão mais próximas de conseguir realizar este trabalho, mas para as que atualmente estão mais defasadas nesse sentido.

A criação de um complexo multimidiático é uma tarefa bastante complexa, que deve ser uma preocupação central da nossa organização. Esta tarefa demandará imenso esforço e levará alguns anos, mas acredito plenamente que temos a vontade e a capacidade de levá-la a cabo. É assim que criaremos aparelho de imprensa robusto, que consiga engajar toda nossa militância, orientar nosso trabalho de agitação e propaganda, organizar a luta da classe trabalhadora e semear por todo o país gérmens de poder popular.


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