Claudete: da necessidade à luta política

"E aí eu começo a estar dialogando sobre a minha quebrada, os equipamentos da minha quebrada, sobre a saúde da minha quebrada, sobre a educação da minha quebrada, mas é uma luta que ainda é isolada. Nem todo mundo enxerga assim."

Claudete: da necessidade à luta política
"Minha relação começou aí, tendo que lutar não só por mim, mas por toda comunidade." Foto: Midianinja

Entrevista: Vitor Nascimento e Gabriel Tavares
Texto: Vitor Nascimento

O bairro do Jardim d’Abril, situado na zona oeste, posiciona-se na divisa entre os municípios de São Paulo e Osasco. Nesse local, ou mais precisamente na Favela II, reside Claudete, mulher negra de 51 anos e liderança comunitária que toma à frente, pelo menos há quase três décadas, das lutas por moradia e outros direitos básicos em sua região. O PCB-RR entrevistou essa grande personalidade das lutas populares, tendo o objetivo de expandir sua voz e visibilidade, fazendo de suas memórias um trajeto para pulsar também a memória coletiva da camada mais superexplorada da classe trabalhadora, a que é empurrada para bolsões de miséria, de modo previsto pelo capital, para ser convertida em força de trabalho barata e descartável para o mercado de trabalho.

Como muitas famílias da classe trabalhadora que construíram São Paulo, a família de Claudete fincou os pés na cidade, trazendo-a ainda pequena, após migrar de Pernambuco. Sabemos que a formação de favelas se deu geralmente como efeito da superexploração, onde os próprios trabalhadores, vitimados por um assalariamento insuficiente, tiveram que construir seus espaços de moradia de modo precário. É em um desses espaços que Claudete cresceu, sem contudo deixar de ver beleza em sua infância:

“Infância de comer fruta no pé. A comunidade não tinha água. Tinha um pico de luz num poste que ia pra todas moradias. Era uma comunidade pequena. Eram poucos barracos, tudo de madeira. Essa área aqui era muito terreno, tinha bastante fruta. Então as coisas do nosso consumo a gente colhia daqui mesmo. Era uma época em que a gente pegava água no poço. Não tinha água encanada. As vielas não eram urbanizadas como é hoje. Era uma infância muito feliz, mas havia muita dificuldade pra chegar as coisas no território. Hoje em dia eu tenho essa visão, na época não, era criança.”

Para além da exploração do trabalho assalariado, as relações capitalistas se reproduzem a partir do trabalho doméstico que é largamente imposto principalmente às mulheres e crianças negras. Perguntada se precisou cuidar de sua família ainda na infância, a liderança comunitária fala como também não escapou a essa realidade:

“Eu sempre cuidei. Então desde cedo, desde os oito anos, eu já sabia limpar uma casa. Então, vamos dizer, eu era uma criança de oito anos, mas já estava virando adulta, porque eu tinha responsabilidades desde nova. Cuidava de primos mais novos, cuidava de irmão caçula, do meu irmão do meio. E a gente tinha responsabilidade de cuidar deles. Com dez anos de idade eu era uma menina que já sabia cuidar de uma casa muito bem, eu sabia lavar, eu sabia passar, eu sabia cozinhar”.

É por imposição da luta de classes que a criança se transforma, assim, na jovem adulta Claudete que, por sua vez, se firmará como lutadora popular:

“Minha relação com o Jardim d’Abril começa na era [do prefeito de São Paulo] Celso Pitta, quando a gente recebeu ordem de despejo na nossa comunidade, uma comunidade sendo construída há quarenta anos, e chegou a ordem de despejo pra todos os moradores. Foi aí que eu vi importância da luta política. Nós tínhamos direitos e a gente tinha que lutar pra garantir esses direitos de continuar morando nesse local ou conseguir moradias pra todos em outro local. Minha relação começou aí, tendo que lutar não só por mim, mas por toda comunidade. Nessa época eu já tinha filhos, estava grávida da minha terceira filha. E eu vi que tinha que garantir o direito dos meus filhos, não só os meus, e os direitos da juventude, dos já nascidos e os que não tinham nascido”.

Claudete, aqui, está então em um ponto em que uma tensão extrema se manifesta, aquele em que a cidade colocada como mercadoria expulsa a camada mais baixa da classe trabalhadora, que mesmo reproduzindo as condições capitalistas não recebe o suficiente para a manutenção de uma vida minimamente digna. A esse grupo de pessoas no limite do descarte, a luta coletiva pode fraturar a ilusão ideológica e se revelar como único meio de existência. Continua:

“E aí eu começo a estar dialogando sobre a minha quebrada, os equipamentos da minha quebrada, sobre a saúde da minha quebrada, sobre a educação da minha quebrada, mas é uma luta que ainda é isolada. Nem todo mundo enxerga assim. Tá difícil formar liderança aqui. Mas não falo de liderança política: vem lá um político "eu te dou isso aqui hoje e você...". Essa liderança pra mim não interessa. Eu falo de liderança que vai realmente levar o Jardim d'Abril afinco pra frente. Independente do político ou partido que ele esteja apoiando. Ele tem que saber dialogar e fazer chegar as coisas aqui. Então de certa forma eu consegui fazer o Jardim d' Abril ficar visto porque eu consigo dialogar em todas instâncias. E preconceito... A única coisa que o Estado coloca aqui dentro efetivamente e sempre colocou é a polícia. Fora isso, o Estado não coloca nada aqui”.

A ausência de aparelhos públicos de cultura e lazer na periferia se faz perceptível em toda fala de Claudete, assim como o controle policial das comunidades. No entanto, a lógica do descarte para a morte dessa camada da classe trabalhadora se mostra mais profunda durante o governo fascista de Bolsonaro que, atendendo à burguesia, impôs à população que a manutenção da rede produtiva deveria atravessar a pandemia sem qualquer paralisação, ignorando que desse modo, mais uma vez, as periferias seriam punidas com morte em massa. Lógica que não deixou de funcionar quando, graças à pressão popular, o fechamento de diversos setores e o isolamento social se tornou inevitável, de modo que, ficando sem assistência, mais uma vez as favelas foram jogadas à própria sorte.

Sem o Estado, Claudete e os moradores ao seu redor buscaram articulações com diversos movimentos populares, alguns que a própria liderança pediu para serem citados em agradecimento foram a RAP (Rede de Apoio Popular), a FSL (Frente de Solidariedade e Luta) e a Associação do Jardim Rizzo.

“... quando entra a pandemia, quem já viveu uma pandemia? A última foi há mais de cem anos atrás. Então eu fiquei meio assim "e agora?". Um vírus que mata, que ninguém conhece. E quando o governo determina, não o Bolsonaro, que por ele podia todo mundo morrer, mas quando os governos estaduais começam a decretar o fechamento das coisas e tal, distanciamento, aí eu vi a comunidade em um clima polvoroso porque é uma coisa nova, aonde se matava. A gente teve a primeira morte no Jardim d' Abril de uma amiga nossa. Foi quando eu vi que a situação era mesmo muito crítica. E aí fecha tudo e eu começo a gritar por socorro, porque as famílias vão morrer de fome. Porque fecha tudo e o Governo não tinha um plano B pra essas famílias. É diferente fechar tudo pra uma comunidade que fica sem ter o que comer do que pra uma pessoa que é rica. Então eu tinha que gritar por socorro, ver de onde vinha uma ajuda. E eu comecei a entrar em contato com as outras lideranças pra ver a movimentação em outros territórios. E aí eu vi que o Jardim d' Abril não tinha movimentação nenhuma. Não tinha ajuda de governo, não tinha ajuda de movimento”.

Nesse cenário, mais uma vez lutar e se organizar desde baixo se efetiva como a única possibilidade de garantir a própria existência. Se os fatos demonstram a insensibilidade da burguesia e seus governos aliados diante da miséria de milhões, por outro lado algo começa a germinar em resposta: a articulação popular, a autodeterminação da classe trabalhadora. O nós por nós.

“E aí começa a gerar movimentação em torno do meu trabalho e começa a chegar ajuda pras famílias. Então, num primeiro momento eu fiz cadastramento com as famílias, fizemos uma conscientização do que era o vírus, fomos fazer um estudo do que era o vírus, então junto com movimento Comunidade contra a Covid, com a Marisa, e o Felipe, a gente fez um trabalho aqui dentro em que a gente saiu conscientizando as pessoas com microfone, falando do uso da máscara, da higienização, distribuímos trezentos kits de higiene pras famílias, e aí a gente começa a fazer um movimento de ajuda com alimento, cesta básica, mas tudo isso mantendo o protocolo que se mandava. Quando a gente ia fazer distribuição das cestas, eu chamava vinte famílias por vez, dava um espaço de período, tudo mantendo a higienização, distribuindo máscaras. Fizemos muita assistência nessa parte. Álcool em gel a gente também conseguiu a rodo pra eles. A gente então conseguiu conscientizar e manter as famílias mais seguras e alimentadas. Foi quase três anos de pandemia e a gente três anos nessa luta”.

No último período, Claudete também decidiu se preparar para a candidatura ao Conselho Tutelar, tornando-se por fim a pessoa mais votada em sua região. Ao PCB-RR ela contou como uma análise de conjuntura a fez decidir entrar nessa disputa, apesar de criticar a estrutura verticalizada do cargo.

“Na verdade nunca quis ser conselheira porque eu sei que o negócio é doído, e o negócio é de cima para baixo, nunca de baixo para cima. Então, você vai enfrentar inúmeros problemas, como toda periferia tem, de mal-trato de criança e tal. E eu preferi me preparar para esse momento, então fui me preparando, fui me preparando. Na pandemia eu acabei tendo mais acesso às famílias, mais acesso a outras comunidades, a gente viu que aumentou também a violência contra a criança e contra o adolescente, uma vez que todo mundo ficava em casa isolado e tal, e aí eu falei, vamos preparar porque a próxima eleição eu venho, mas eu venho para quem? Eu venho também para desmobilizar a direita. Porque enquanto a gente de esquerda estava tranquilamente tendo uma visão do conselho, onde os candidatos se candidatavam, a gente ia lá e apoiava quem a gente achava que seria melhor para o conselho, porque eu sempre apoiava conselheiros, eu sempre votei, sempre fiz questão de apoiar conselheiros, mas aí a gente começa a ver uma direita entrando dentro de um conselho, e aí você vê essa direita tirando essa garantia de direito, você não pode ficar de braço cruzado, você tem que ir”.

Nesse contexto, Claudete desenvolve seu olhar para o problema com o qual deve lidar, a violência contra crianças e adolescentes, de modo social e humano, para além da criança de forma individualizada:

“... o conselheiro tem que ter uma visão ampla das dificuldades, de como trabalhar com a família, não uma forma autoritária, mas sim uma forma de respeito com aquela família, dar àquela família ao mesmo tempo o acolhimento e o olhar diferenciado com aquela criança. Eu nunca fui conselheira, mas os conselheiros devem pegar N's motivos, e aí como você lida com esses N's motivos? Você tem que ter esse olhar de que em uma família bem estruturada a criança não tem problema. O ser humano tem problema, já é natural, mas uma família que tiver estruturada, a criança vai ter menos problema. Então eu penso num conselho, num conselheiro onde há não só o olhar para a criança, mas o olhar para a família também. Se eu consigo estruturar aquela família, consigo passar alguns valores para aquela família, não os meus, mas um valor que aquela família está precisando naquele momento, já que o governo não faz isso, ela consegue se estruturar de alguma forma e com isso acabar um pouco o sofrimento da criança e do adolescente dentro de casa”.

Dentre a diversidade de lutas travadas e citadas até aqui, a atuação de Claudete para garantir possibilidades de jovens e adultos de acessarem lazer e cultura é notável. Articulada com organizações políticas e, sobretudo, com outros moradores, ela tem sido fundamental para garantir que a comunidade tenha eventos educativos e artísticos, além de festas de Dia das Crianças e Natal, para citar alguns exemplos. Esse esforço visa romper uma desigualdade de acesso que ela descreve assim:

“A cidade até oferece [lazer e cultura], mas a periferia não consegue chegar lá. Primeiro, porque tem que ser transporte público, nosso transporte público não funciona como deveria funcionar. Segundo, a nossa passagem é cara, e muitas vezes a periferia não é bem vista em alguns lugares. Então tem esse olhar da pessoa, preocupada se ela vai ser bem aceita naquele espaço, porque o espaço já olha para a sua roupa, já olha para o seu pé, então se ela não estiver vestida adequadamente como a burguesia quer, como o sistema acha que tem que ser, você já não é bem visto. Eu sou uma trabalhadora que de repente eu estou aqui de chinelo, eu vou ali no shopping, mas como esse shopping vai olhar para mim quando eu chegar lá? Então as famílias da periferia muitas vezes preferem não ir. Porque aqui pelo menos é um centro protegido de ser humilhado fora da sua comunidade”.

A liderança comunitária denuncia ainda uma escassez de espaços abertos que se abrange para afetar a cidade como um todo:

“E na parte de lazer, olha, acho que ninguém está tendo mais, porque eu estou vendo aí derrubar árvore, privatizar parque, está um absurdo. Então a gente vai chegar em um tempo que eu acho que ninguém vai ter lazer mais [...] Os CEUs, a gente apostou muito nos CEUs, que os CEUs ofereciam muita coisa, e não que ainda não tenha, mas não como antes. Toda semana tinha alguma coisa, tinha peça teatral, você ainda conseguia deslocar um pouco a comunidade para esse espaço. Não tem mais, é uma coisa ou outra, tem CEU que nem funcionando direito está mais, só tem as aulas e pronto, o anfiteatro fechado, o espaço que é para ser aberto nesse calor fechou para a comunidade, a piscina é fechada… Então quer dizer, até os CEUs que era uma coisa para amenizar um pouco essa falta de cultura para as periferias, hoje em dia já também não funciona mais. E nós precisamos de CEU aqui também, um que funcionasse, claro”.

Ainda que pareça ter energia infinita para as lutas, Claudete reflete também sobre as dificuldades que o capitalismo impõe para que a classe se mantenha constantemente engajada:

“Então, o que desmotiva as pessoas, eu acho que é essa burocracia que se torna quando você vai buscar algo junto ao Poder Público. Você vai construir uma grande estrutura e aí você se esbarra numa burocracia que leva às vezes anos, e nessa de levar anos a pessoa se desmotiva. A gente já formou vários coletivos aqui de luta, mas todos esses coletivos que foram formados de luta, eles de alguma forma se desmotivaram por conta da burocracia, por falta de tempo, porque todo mundo tinha que trabalhar. Hoje em dia as pessoas trabalham, não têm mais horário, a gente não tem transporte público de qualidade, então a pessoa passa mais tempo no trânsito, mais tempo indo pro trabalho do que mesmo trabalhando, então quando volta para cá, já volta exausto, não por conta do trabalho em si, mas por conta de pegar todas as vias travadas, ônibus que demora mais de uma hora, uma hora e meia para passar, então as pessoas acabam se desmotivando porque estão cansadas, estão cansadas. Eu já me desmotivei de não fazer mais parte de tudo isso [...] aí eu me afastava, e aí parece que todo Jardim de Abril ficava parado, todo mundo também se afastava, aí você começa a falar não, não dá, porque tem coisa que você não pode deixar para vir quando der, você tem que ir buscar, tem que ir lá, então aí volta eu [...] Mas está sendo difícil criar coletivos bons como era antigamente, hoje em dia está difícil, não sei se é a tecnologia também, os jovens estavam se interessando, mas alguma coisa desmotivou muito eles, tem que entender essa cabecinha, essa desmotivação toda. Dos mais velhos eu sei que é isso, é muita luta, muitos se desgastaram, muitos morreram sem conseguir ver o que almejaram para a sua comunidade, e aí ressurge alguém que fala não, não era isso que era para vir, e vai naquela luta, e a luta é assim, e você às vezes morre e não consegue ver chegar tudo. Mas eu só vou parar acho que o dia que eu morrer ou eu ficar doente, né?”

Diante de tantos relatos, de todo aprendizado, o militante do PCB-RR que escreve este texto, eu, não consegue deixar de pensar no quanto é fundamental isto: escutar. Escutar pessoas como Claudete, escutar mulheres, escutar pessoas racializadas, escutar as periferias, escutar os focos de luta que nunca deixarão de surgir diante de condições de vida tão inescrupulosas impostas pelos poucos que lucram com o sangue e o suor da maioria. E, nesse processo de escuta, também agir, agir em conjunto com a voz escutada, mostrando que nosso partido, nossa linha de luta revolucionária é uma ferramenta eficiente para a mudança almejada. Escutando, agindo, construindo, o Partido e a voz se farão uma coisa só. A mudança radical se efetivará então.