Cessar-fogo em Gaza: vitória palestina não é garantia de paz

O cessar-fogo representa uma pausa crucial no genocídio em curso contra o povo palestino, vista como uma oportunidade para que a resistência palestina se reorganize e que as organizações humanitárias atuem no socorro às milhares de vítimas.

Cessar-fogo em Gaza: vitória palestina não é garantia de paz
Reprodução/Foto: Bashar Taleb / AFP.

Por Redação

Após meses de intensificação do conflito entre a resistência palestina e as forças da ocupação sionista, um acordo de cessar-fogo foi finalmente anunciado nesta semana no Qatar, trazendo uma centelha de vitória para um povo cuja história contemporânea é marcada por sete décadas de violência e colonização. O plano prevê três fases distintas, que começam a ser implementadas no próximo domingo (19). Contudo, é preciso enfatizar que o cessar-fogo é um respiro temporário e não deve ser visto como a solução definitiva para a questão palestina.

A primeira etapa, com duração de seis semanas, prevê a libertação de 33 prisioneiros em posse da resistência e de mais de mil reféns palestinos detidos por Israel. Além disso, inclui o fim das hostilidades, a retirada das tropas israelenses de áreas povoadas em Gaza e a entrada de ajuda humanitária no território devastado.

Na segunda fase, também de seis semanas, o Hamas deverá libertar os prisioneiros restantes, enquanto Israel se compromete a soltar um número ainda não definido de reféns palestinos. Por fim, a terceira etapa foca na troca de corpos de palestinos mortos, no plano de reconstrução de Gaza e no desbloqueio das fronteiras, permitindo a passagem de pessoas.

O cessar-fogo representa uma pausa crucial no genocídio em curso contra o povo palestino. Essa trégua é vista como uma oportunidade para que a resistência palestina se reorganize e que as organizações humanitárias atuem no socorro às milhares de vítimas. A imposição do acordo à ocupação é, sem dúvidas, uma vitória da campanha de resistência palestina.

Durante todo o período de guerra genocida, não faltaram oportunidades de acordo, que na verdade eram convites à Palestina para a capitulação. Diante desses momentos, a resistência – sob liderança do Hamas – se manteve inflexível às tentativas de rebaixar os termos, e condenar gerações inteiras de palestinos ao cárcere em troca das falsas promessas do inimigo.

Além disso, ao contrário das posições do inimigo ocupante, opositor por princípio a negociar termos de paz em muitos momentos, a coalizão das forças palestinas, em toda a duração do conflito, jamais se fechou da possibilidade de um acordo que reconhecesse suas reivindicações e fizesse cessar a guerra. Isso mesmo lutando sob as mais desiguais condições contra um inimigo massivamente apoiado pelas forças imperialistas hegemônicas, recentemente financiado em oito bilhões de dólares pelo governo americano.

Entretanto, o cessar-fogo não é garantia de paz, como demonstra o ataque de Israel a Gaza horas depois de seu anúncio. Benjamin Netanyahu já prorrogou a discussão no gabinete ministerial sobre o acordo de cessar-fogo anunciado no Qatar, sob a então ameaça de que dois de seus onze ministros – Bezalel Smotrich, Finanças, e Itamar Ben Gvir, Segurança Nacional – renunciariam do gabinete de segurança caso assinado o acordo. Os ministros fascistas, que estão à direita de Netanyahu, tratam a limpeza étnica palestina como ponto absolutamente não negociável, e sua saída do gabinete entregaria o colapso do governo Netanyahu à oposição sionista – o que provavelmente teria como desfecho a sua prisão.

Da ameaça dos ministros, consumou-se no sábado (18) a demissão de três deles do gabinete Netanyahu. O primeiro deles foi o Ministro da Segurança Interna de Israel, Itamar Ben-Gvir. Os outros dois foram Yitzhak Wasserlauf, ministro do Negev, Galileia e Resiliência Nacional (uma espécie de “Ministério do Interior”), e Amichai Eliyahu, ministro do Patrimônio – todos do partido de extrema-direita Otzma Yehudit (“Poder Judaico”). Smotrich continua compondo a base ministerial do primeiro-ministro, em recomposição na qual a coalizão de Netanyahu, que conta com 68 parlamentares, ainda não se encontra em risco de derrubada pela oposição.

Ademais, o histórico da ocupação israelense demonstra que ataques velados e operações militares a portas fechadas podem persistir, mesmo sob acordos formais, que nunca foram cumpridos pela entidade sionista. Nunca é demais ressaltar que a própria Operação Tempestade Al-Aqsa se inicia motivada pelos ataques velados israelenses às mesquitas palestinas, sobretudo a Mesquita de Al-Aqsa. Além disso, as condições impostas para a trégua evidenciam que a ocupação e o cerco à Gaza estão longe de serem resolvidos.

Outro aspecto sensível do acordo é o papel da Autoridade Palestina, governante da Cisjordânia, tratada pelos Estados Unidos e outros agentes internacionais como a legítima representante do povo palestino, em detrimento do Hamas, que hoje governa Gaza. Com uma trégua estabelecida, é possível que questões internas entre a Autoridade e grupos da resistência armada ganhem maior protagonismo.

Isso porque, nos últimos anos, Israel intensificou a anexação de terras na Cisjordânia ocupada, ao mesmo tempo em que minava as conexões entre as forças de segurança da Autoridade Palestina e grupos de resistência locais. Isso criou um ambiente em que a AP, sob a liderança do presidente Mahmoud Abbas, passou a assumir uma postura hostil à resistência, e ordenar uma série de operações de repressão armada contra grupos de resistência, como as Brigadas de Jenin.

A operação, conduzida por forças treinadas pelos EUA no ínterim do chamado “Plano Fenzel”, gerou divisões dentro da própria liderança da AP, com muitos oficiais vendo-a como uma estratégia arquitetada pelos EUA e por Israel. Líderes palestinos, como Mahmoud Mardawi, do Hamas, condenaram as ações da AP, argumentando que elas alinhavam a liderança palestina à narrativa israelense de deslegitimar a resistência.

Durante a operação, forças da AP cercaram o campo de refugiados de Jenin, cortando água, eletricidade e impondo um toque de recolher que deixou moradores sem acesso a alimentos e serviços básicos. A operação resultou em várias baixas civis, incluindo a morte de Rebhi Shalabi, um adolescente, e de Yazid Ja’ayseh, um comandante das Brigadas de Jenin. A ONU acusou a AP de utilizar partes do Hospital Governamental de Jenin para fins militares, o que aumentou as críticas internacionais.

A crise expôs um dilema em relação à Autoridade Palestina que persiste até hoje: sua busca por controle e apoio internacional a colocou em oposição direta ao crescente movimento de resistência, que é amplamente apoiado pela população palestina, inclusive na Cisjordânia. Pesquisas recentes mostram que 90% dos palestinos desejam a renúncia de Abbas, refletindo uma profunda insatisfação com a liderança da AP, vista como entreguista e ineficaz.

Ao mesmo tempo, o cessar-fogo, em um contexto em que Israel acelera sua expansão de assentamentos e a violência contra palestinos, enquanto a economia da Cisjordânia se deteriora, pode aflorar essa contradição aberta na sociedade palestina.

Embora o cessar-fogo traga um momento de esperança, não se deve cair na ilusão de que “a paz venceu”. Muitos reféns e prisioneiros palestinos seguirão detidos, e a ocupação colonial da terra palestina permanece intacta, impune e amplamente financiada – inclusive pelo Brasil. Além disso, o plano de reconstrução de Gaza e a abertura das fronteiras dependem de negociações futuras que podem ser facilmente sabotadas por interesses políticos ou estratégicos.

O foco deve ser colocado no longo prazo, em como este período de trégua pode ser usado para reforçar a luta pelo fim da ocupação e a autodeterminação do povo palestino. O cessar-fogo não pode ser visto como o fim da questão palestina, mas como uma pausa para reorganizar as forças e buscar uma solução justa e duradoura, considerando a dificuldade extrema de reconstruir toda a região, sobretudo após os esforços da ocupação de expulsar agentes humanitários do território palestino, em sua campanha de limpeza étnica sem limites.

Assim, enquanto o acordo marca um passo importante, ele também deixa claro que o caminho para a paz definitiva ainda é longo e repleto de obstáculos. O mundo observará atentamente os próximos movimentos na região.