'Cafarnaum da escória: resíduos e detalhes na história do movimento comunista' (Pedro Mendes)

A revolução é a abertura fundamental para superação de todas as formas de opressão necessárias para reprodução do capital. Entretanto, pouco nos perguntamos: é possível o fim do capitalismo sem o fim da LGBTfobia?

'Cafarnaum da escória: resíduos e detalhes na história do movimento comunista' (Pedro Mendes)
"As regressões nas relações de gênero e sexualidade são vistas como uma nota de rodapé em meio a história “gloriosa” da URSS; assim como as “pautas identitárias” são vistas como um apêndice em meio ao “universal” representado pelo movimento operário, o que perpetua, inevitavelmente, o trabalhador branco, cis, hétero, masculinista como prioridade, e deixa de extrair o que há de mais radical na luta das “identidades”."

Por Pedro Mendes para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

O tópico “Sobre o movimento LGBT” das pré-teses congressuais afirma que o fim da LGBTfobia “apenas será alcançado com o fim do próprio capitalismo em uma revolução socialista.”. De fato, a revolução é a abertura fundamental para superação de todas as formas de opressão necessárias para reprodução do capital. Entretanto, pouco nos perguntamos se o inverso de tal afirmação seria também correto: é possível o fim do capitalismo sem o fim da LGBTfobia?

A pouca aparição desse questionamento ocorre porque 1: o senso comum propagado pelo marxismo vulgar considera as chamadas “pautas identitárias” como mero apêndice do movimento operário (economicista), de importância secundária, pertencentes apenas a esfera da superestrutura; este erro desconsidera de sua análise que a formação dessas identidades, assim como o sistema de gênero, participam da gênese do capital[1].  2: oportunistas e saudosistas das experiências históricas do socialismo negam a crítica impiedosa aos erros e regressões que ocorreram na esfera do gênero e sexualidade, que levou a perpetuar nesses sistemas a LGBTfobia, a defesa família e a divisão binário-generificada do trabalho e da humanidade.

Quando é posto a crítica a LGBTfobia nas experiências socialistas, como na URSS, por exemplo, não poucas vezes a inércia do pensamento contrapõe-se com fraseologias como “eram as contradições do tempo que viviam” ou “as contradições da sociedade capitalista ainda permanecem no socialismo”. O que não explica nada e foge da análise materialista. Quando falamos que na URSS persistia a LGBTfobia não estamos falando do “Seu Josévitch”, soviético metafórico vindo do campo nos anos 1930 que não se “desconstruiu” de sua homofobia; estamos, na verdade, falando de uma política de Estado institucionalizada.. Assim, é necessário analisar quais condições materiais e históricas possibilitaram os avanços promovidos a partir de 1917, e quais possibilitaram seu posterior desmantelamento. 

As regressões nas relações de gênero e sexualidade são vistas como uma nota de rodapé em meio a história “gloriosa” da URSS; assim como as “pautas identitárias” são vistas como um apêndice em meio ao “universal” representado pelo movimento operário, o que perpetua, inevitavelmente, o trabalhador branco, cis, hétero, masculinista como prioridade, e deixa de extrair o que há de mais radical na luta das “identidades”. 

Mas é justamente a partir do que hoje é tratado historicamente no movimento comunista como “detalhe”, “resíduo”, que podemos ver o que foi recalcado e, assim, continua a durar no presente. Precisamos dar uma nova face as esperanças frustradas.

1- Quais condições materiais e históricas possibilitaram os avanços promovidos a partir de 1917 e seu posterior desmantelamento  

Baseado no texto de Ana Barradas[2], não pretendo encerrar o debate com esse trecho, mas sim levantar brevemente alguns pontos que ajudam a refletir sobre o questionamento: é possível o fim do capitalismo sem o fim da LGBTfobia?

A atrofia gradual da economia individual fechada iniciada pela revolução de 1917 criou condições que permitiram maior liberdade para a mulher soviética das tarefas domésticas improdutivas e o início da desagregação da família. Como mostra Ana Barradas:

 “Popularizou-se o alojamento comunitário em 1920 em Moscou, em 23.000 fogos havia mais de 8.000 fogos comuns, ou seja, 40 % eram lares comunitários: cozinha comum, lavanderia central, empregadas de limpeza profissionais, luz e combustível assegurados, e até, em alguns casos, creche e jardim de infância.”   

Além disso, nos primeiros anos da revolução, o controle da produção e do consumo possibilitou a “instituição da alimentação coletiva, através das cantinas municipais, e refeições gratuitas para as crianças.”,  o aborto foi legalizado e o divórcio tornou-se acessível para operários e camponeses. Criou-se uma rede de proteção à maternidade e de educação social e fazia-se propaganda ativa do amor livre. 

Ficou célebre o lar de crianças fundado em 1921 por Vera Schmidt [5], concebido como estabelecimento piloto para uma nova forma de puericultura não autoritária e permitindo a afirmação sexual da criança.

O instinto maternal passou a assumir valor coletivo com o lema “Sê uma mãe, não só para o teu filho, mas para todos os filhos dos operários e camponeses”. A maternidade deixou de ser um assunto privado, para passar a ser um dever social. Começava a cair por terra o mito da mamãe individualista, transbordante de amor pelo seu filho. Os hábitos coletivos inculcavam-se desde o berço e começava-se a modelar um novo tipo de cidadão.

Entretanto, tais avanços encontraram resistência por parte dos setores mais conservadores do partido: “Começa-se a falar do “caos sexual”, defende-se o conceito de que a sexualidade é incompatível com a entrega às tarefas sociais.”

Em 1923 é pautada a “teoria da “sublimação revolucionária” e da “conservação da energia”, afirmando que a sexualidade retira energia ao esforço socialista, à revolução e ao proletariado, e por isso deve ser contida e sublimada.”

Entre 1932 e 1944 ocorreu a contrarrevolução sexual,  impondo a maternidade, desejada ou não, como dever social. Nesse período desmantelou-se por completo o que haviam conquistado de mais frutífero em 1917. Sobre as mulheres,“resumiu-se o problema da sua emancipação a um único fator: a integração nas tarefas produtivas, que passou a ser apontada como condição única dessa emancipação.” Em 1934 a homossexualidade é penalizada, constitui-se a condenação de 3 a 8 anos de prisão; com ampla propaganda de condenação na imprensa e repressão em massa. Além disso, havia forte propaganda contra o aborto e pela defesa da família.  

Ana Barradas aponta que tais retrocessos partem da situação objetiva da ameaça da guerra, era necessário organizar a sociedade sob este imperativo. Assim, as funções antes estabelecidas ao Estado, retornaram à família. Mas faz a ressalva que não é possível justificar todas as medidas regressivas por causa da guerra, pois já havia grandes tendências conservadoras no partido antes mesmo do fortalecimento da ameaça nazista. 

Fato é que a economia de guerra criou aberturas desastrosas para URSS, como mostra Kurz:

 “O partido, ao fundir-se com a economia de guerra burocrático-estatista, em parte já existente, em parte por ele criada, podia justificar, como vigário da classe trabalhadora na Terra, praticamente todas as suas ações, até as mais absurdas, sangrentas e repressivas. O partido que "sempre tem razão" criou assim uma nova sociedade socialista de acordo com sua autoconcepção, que na verdade nada mais é que o recrutamento coativo recuperador de uma classe trabalhadora moderna, sob a direção do Estado.”[3]

Sim, as contradições da sociedade capitalista ainda permanecem no socialismo, mas no caso da URSS, muitas das “contradições” na esfera do gênero e da sexualidade já estavam superadas ou, em muitos casos, rumando para serem superadas, na teoria e na prática, como mostram as experiências na socialização do trabalho reprodutivo. Em última instância, a regressão que ocorreu correspondia a necessidade de disciplinar a classe trabalhadora para o mundo moderno do trabalho e da produção de mercadorias.

O que foi recalcado e o que continua a durar no presente? Um debate político programático com as pré-teses.

Mario Mieli diz em seu seu texto “Os ‘Protetores de Esquerda”:

[as organizações revolucionárias] sustentam uma imagem da revolução grotescamente preconceituosa e repressiva, fundada em sacrifício e na infernal família proletária, e caricaturalmente viril, baseada no trabalho produtivo-reprodutivo e na brutal violência militarizada, enquanto saúdam o modelo de países que se definem como socialistas, mas que liquidam os homossexuais em campos de concentração ou em “institutos de reeducação”, como em Cuba ou na China, por exemplo. Não é surpreendente, então, que as pessoas gays vissem apenas o próprio sistema como sua “salvação”.[4]

A absorção da população (e da pauta LGBT) nas organizações comunistas, após um longo período histórico de rejeição, se deu, em uma tentativa de disputa atrasada com os liberais, marcada pelo paternalismo e pela concessão de pequenos espaços dentro da organização. Nesse sentido, em minha tribuna com Carlos Sagarana [5] busquei mostrar como esses erros existiam na relação do PCB-CC com os coletivos; estes que em sua forma e conteúdo eram subordinados ao PCB de forma paternalista e considerados de importância secundária ao que eles entendiam sobre a centralidade da contradição capital-trabalho. Daí decorre o caráter estrutural e político do isolamento dos coletivos, seus militantes e pautas dentro da forma organizativa do PCB-CC, não sendo fruto apenas da vontade individual de dirigentes mandonistas, racistas, misóginos e LGBTfóbicos. Daí decorre também um dos motivos da direção ser ocupada em sua maioria por homens, brancos, héteros, de classe média.

Os mesmos erros persistem em nossas pré-teses. No tópico “Sobre o movimento LGBT”, para explicar o distanciamento da população LGBT das organizações comunistas, é denunciado a “tática do advocacy”: “Neste contexto, os comunistas devem combater a centralidade da tática do advocacy e demais tipos de lobby no movimento LGBT.”

Reduzindo o Movimento LGBT a pobres ingênuos que não sabem que estão sendo enganados e precisam colocar-se sob nossa direção. O tom paternalista é alarmante. É um erro grosseiro prosseguir com essa tese sem tecer ao menos uma autocrítica sobre o histórico discriminatório e persecutório do movimento comunista e das experiências socialistas com o movimento LGBT. O advocacy trouxe sim ganhos imediatos e institucionais, ainda que limitados. E o que nós conseguimos? Todos setores da sociedade estão em disputa, diversos grupos “iludem” as massas nas mais diversas pautas e locais de atuação,  mas somente neste tópico o tom paternalista é colocado com tanta veemência para denunciar a cooptação do movimento.  Além disso, como disse Mieli, dado o histórico do movimento comunista “Não é surpreendente, então, que as pessoas gays vissem apenas o próprio sistema como sua “salvação”.

No parágrafo 107 do mesmo tópico é pontuado: “Por fim, os comunistas devem ser propositivos na formulação, junto ao seio das LGBTs trabalhadoras e da classe como um todo, de estratégias e táticas que visam a alcançar vitórias concretas nas bandeiras do movimento LGBT.” Quais são essas estratégias e táticas? Não é falado. É um dos tópicos menos propositivos das pré-teses, um verdadeiro deserto. Perdemos a disputa e continuaremos a perder enquanto não passarmos a limpo a história do movimento comunista. 

Muito é questionado o quanto Marx está atual para o presente, mas devíamos nos perguntar o que o presente representa diante as contribuições de Marx.  Em que conseguimos avançar em relação às expressões da determinação da classe e das relações de trabalho? Em relação a gênero e sexualidade, o avanço nos partidos marxistas-leninistas é nulo por parte dos saudosistas da URSS stalinista. Observa-se isso quando a organização das prostitutas não é pautada e desperta o conservadorismo em grande parte da esquerda. Observa-se isso quando um dirigente nacional do RR diz que o coservador e LGBTfóbico partido KKE é o PC mais avançado do MCI porque tem “forte inserção nas massas”; como se o programa comunista pudesse avançar em detrimento de qualquer camada oprimida da sociedade; inserção nas massas a troco de que e de quem? Por liderarem um forte sindicato (e terem inserção nas pautas econômicas), a LGBTfobia  pode ser relevada e a família defendida? Estão anteriores ao Manifesto Comunista. Observa-se isso quando nossa formação é separada por setores, e exigem da UJC pouca literatura sobre feminismo e antirracismo. Desse modo, não é estranho que em nenhum momento das pré-teses apareça o fim da família, do patriarcado, da divisão binário-generificada da humanidade. 

Sem passar a limpo a história do movimento comunista, com uma rigorosa crítica e autocrítica, continuará a durar no presente os mesmos erros, como nos mostra as pré-teses e o KKE, por exemplo. 

Por fim, agradeço a todes camaradas do núcleo pelo excelente debate na etapa congressual 👏


Referências:

[1] https://traduagindo.com/2022/11/08/amanda-palha-transfeminismo-e-construcao-revolucionaria/

[2] Ana Barradas – A Família na União Soviética – TraduAgindo

[3]O Colapso da Modernização (marxists.org)

[4]Mario Mieli – Os “Protetores” de Esquerda – TraduAgindo

[5] 'Depois da tempestade, haverá um arco-íris?: para uma crítica da LGBTfobia no Movimento Comunista Internacional' (Mendes e Sagaranam) (emdefesadocomunismo.com.br)