'Anti-MUP 2: os movimentos de massas e as organizações de massas' (L. Queen)
A luta por uma Universidade Popular é uma luta que só será realizada plenamente após o socialismo. Somente após a revolução é que as condições objetivas e subjetivas para a criação deste modelo de universidade estarão colocadas.
Por L. Queen para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, volto a escrever sobre este mesmo tema como um complemento à minha tribuna anterior (https://emdefesadocomunismo.com.br/abandonemos-o-mup-para-construir-a-universidade-popular-socialista/), já que acredito que alguns pontos ficaram soltos. Conversei com alguns camaradas sobre este último escrito e alguns me apontaram sobre a necessidade de abordar o MUP sob a ótica do movimento de massas e falar sobre a incompreensão que possuímos a respeito deste tema, em especial no que diz respeito à nossa atuação junto ao MUP. Acho que outros temas também podem se beneficiar de uma maior compreensão do que são os movimentos de massas, qual seu histórico no Brasil e como se desenvolvem.
Começo este texto, tal qual o anterior, reproduzindo outro senso comum entre nossos camaradas a respeito do MUP: a de que o MUP é (ou deveria ser) um movimento de massas que luta pela Universidade Popular e que é dirigido pela UJC e pelo PCB. Vi esta avaliação ser feita diversas vezes por diversos militantes para explicar para outros militantes mais novos a relação que tentamos construir entre MUP e UJC, relação esta que até hoje permanece confusa e que foi uma polêmica bastante quente entre a militância da UJC no último congresso. É também um ponto polêmico muito pouco esclarecido, visto que na etapa estadual de São Paulo do IX CNUJC, após um longo e confuso debate sobre o caráter do MUP (ao que me recordo, se deveria ser um movimento ou uma organização), a mesa inverteu a ordem dos pontos defensores e aparentemente ninguém no espaço foi capaz de afirmar com certeza qual ponto defendia para corrigir a mesa (eu mesmo, mesmo tendo percebido que a mesa havia trocado os pontos, não questionei por que cheguei à conclusão de que não entendia a diferença entre as duas coisas). Parecia haver uma confusão extrema entre o que difere um movimento de massas e uma organização de massas e qual a relação entre estas duas coisas.
Ai acredito que reside outro importante problema dessa excrecência que chamamos de MUP.
Na tribuna anterior busquei abordar a questão de um ponto de vista mais programático, realizando a crítica ao programa e tentando explicar o porquê considero um erro termos o MUP como nossa tática dentro do movimento estudantil (a saber e de maneira breve, porque é uma tática etapista, que coloca a agitação pela Universidade Popular na frente da agitação pela Revolução Socialista, sem de fato se aprofundar em qual o caráter da Universidade Popular, a rebaixando a um programa de defesa de uma universidade burguesa e não apontando quais mecanismos de luta poderiam fazer avançar na construção do duplo poder proletário). Aqui, contudo, irei me dedicar aos aspectos organizativos do movimento de massas e as confusões que imperam em nosso partido acerca do tema.
Quando se diz que o MUP é um movimento de massas dirigido pela UJC se cai em três erros. O primeiro e mais óbvio é que o MUP está longe de ser um movimento de massas - não há massas para serem dirigidas. Em muitos casos os militantes do MUP se resumem aos militantes da UJC. Quando há militantes do MUP ‘independentes’ eles são poucos, o que causa o estranho fenômeno de um suposto movimento de massas cuja vanguarda dirigente é maior que as massas. Espero que isto seja ponto pacífico entre meus camaradas.
O segundo erro é considerar que o MUP é um movimento. O MUP é uma organização que possui Movimento em seu nome, mas não se trata de um movimento. Da mesma forma que o MST se chama Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mas não é em sua integridade o movimento dos trabalhadores rurais sem terra, já que temos diversas outras organizações que organizam a luta dos trabalhadores rurais pela terra (como a OPA, a LCP, o MPA, etc). Seria mais justo chamar o MST de uma organização de massas. Portanto, começamos aqui a entender que um movimento de massas é muito maior que as organizações que a compõem. Mesmo assim, uma organização de massas bem estruturada tem uma capacidade enorme de movimentar as massas (porque sua composição orgânica já representa uma enorme parcela do movimento), o que por vezes acaba por causar uma confusão entre as duas coisas. Mas o movimento de massas é uma coisa, uma organização de massas é outra.
O terceiro erro é o mais discreto e está relacionado à noção de que dirigimos este movimento. Certamente dirigimos o MUP, no sentido de que “somos nós quem manda”. Mas por trás desta afirmação existe uma incompreensão do que significa dirigir um movimento de massas, que nos leva a repetir na prática nossos velhos erros mandonistas e burocráticos.
1. O movimento, as massas e a organização
Certo, então o que é o movimento de massas e quais suas particularidades? Ademar Bogo, militante e intelectual do MST, escreve em seu livro “Organização Política e Política de Quadros” o seguinte:
Primeiro, o conceito de “espontaneidade das massas” é o reconhecimento, por parte das forças conscientes, de que as massas possuem uma dinâmica própria para se motivarem e se mobilizarem e, através dela, produzem seu próprio aprendizado.
Isso não significa dizer que os instrumentos de organização política sejam indispensáveis e que as massas por si só farão as transformações, mas, se não houver motivação entre as massas, os instrumentos não conseguirão propagar suas ideias e propostas entre elas, pois faltará justamente o movimento das forças que puxe a revolução e envolva a maioria da sociedade no processo de mudança. “Quanto ao apelo dirigido às massas para a ação, surgirá por si mesmo, sempre que houver uma enérgica agitação política e denúncias vivas e ressonantes” [LENIN apud BOGO. Que fazer? Questões candentes do nosso movimento.] As revelações políticas se somam à vontade das massas de se envolverem nas lutas, por estas sentirem que chegou a sua vez. As organizações cumprem o papel de dar conteúdo à vontade, ampliando o alcance e a profundidade das intenções. Quando ocorre o encontro da vontade com a consciência, proporcionado pelo desenvolvimento das experiências da participação, as lutas se tornam consequentes e duradouras. (BOGO, 2017, p. 17-18)
Assim, o movimento de massas é nada mais que a própria movimentação política das massas trabalhadoras e populares rumo a um objetivo comum. Há de se haver uma motivação e uma mobilização, ou, um programa comum e a organização das massas (entendido aqui não como uma entidade institucional, uma Organização Das Massas – ODM, mas como o processo de organizar as massas). Bogo e Lenin acreditam que as massas possuem capacidade de se levantar de maneira espontânea, mas que há um limite de atuação para esta movimentação, de forma que cabe às organizações políticas dar sentido e conteúdo às reivindicações. E até mesmo este levante espontâneo das massas precisa ser precedido de uma “enérgica agitação política e denúncias vivas e ressonantes” para que as massas trabalhadoras entendam que seus problemas são compartilhados com os demais indivíduos da classe, para que a classe como um todo entenda quais são suas pautas, ou cairemos em movimentos de massa que podem facilmente ser cooptados por sentimentos da direita (como pretendo mostrar adiante).
Podemos observar o percurso que o movimento pela terra tomou ao longo da história brasileira até os dias de hoje para compreender como o MST (e as demais organizações de luta pela terra) se formou enquanto uma organização de massas. As origens dos conflitos pela terra estão no começo da colonização, mas vou traçar uma importante linha no ano de 1850, quando é promulgada a Lei de Terras no Brasil, um instrumento importante para a instauração e estruturação do capitalismo dependente brasileiro como se encontra hoje:
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara. (...)
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. (...)
Portanto, o primeiro artigo da lei já impões que a única forma de adquirir a posse da terra era por meio de compras – o que iria colocar a enorme massa de ex-escravos, que seriam libertos em 1888, numa posição complicada. Sem terra, sem dinheiro, esta população teve que se sujeitar ao trabalho assalariado em condições deploráveis (quando tal, considerando que diversas formas de escravidão se perpetuam no Brasil até os dias de hoje). Esta lei também foi fundamental para perpetuar o latifúndio como forma predominante de propriedade no campo, o ‘grande vilão’ da luta pela terra e expressão maior dos interesses da burguesia agrária.
A partir deste momento vimos surgir diversas lutas pela terra em suas expressões regionais, (por exemplo, o movimento de Canudos (1896-97) e a revolta do Contestado (1912-16)), ainda sem uma característica de luta política (no sentido leninista do termo), muito menos revolucionária. Seria apenas depois da metade da década de 1920 que o recém fundado PCB tentaria organizar o movimento camponês no país. Em 1928, no campo, o Partido buscava organizar principalmente o “operário agrícola (jornaleiro, assalariado, ambulante)” e o “pequeno lavrador sem terras (rendeiro ou arrendatário, meeiro, terceiro)”, mas também o “pequeno proprietário que não vive do trabalho alheio” (SANTOS, 2021). Aqui as reivindicações mesclavam reivindicações salariais, fornecimento de matérias primas sem imposto para o “pequeno lavrador sem terras”, combate “às reminiscências da escravidão”, a alfabetização de camponeses (vale lembrar que nesta época somente os cidadãos alfabetizados possuíam direito de voto), a construção de cooperativas, etc. Em 1929 a I Conferência Comunista da América Latina indicou que as tarefas imediatas do movimento pela terra eram a lutas
contra os grandes proprietários, contra as sobrevivências feudais, contra as imposições fiscais, contra as empresas imperialistas que monopolizavam o comércio e exploravam os camponeses, contra toda a “trava” a seu desenvolvimento, pela devolução de terras às comunidades, pela abertura de créditos agrícolas e pela criação de organizações para a distribuição e circulação de seus produtos (SANTOS, 2021).
Aqui a questão da luta contra o latifúndio começava a se desenvolver num programa para o movimento camponês. Cabe, porém, ressaltar que as revoltas e movimentações espontâneas da classe camponesa já existiam, que a luta pela terra já era uma luta real, com uma reivindicação real. O que começava a se constituir é efetivamente um programa de lutas, reivindicações unificadas. Entre 1945 e 1947 o Partido organizou as primeiras ligas camponesas, ainda de forma muito localizada, em Pernambuco. Vemos aqui que já existia uma série reivindicações das massas populares para a questão agrária, embora não existisse propriamente um movimento organizado no país como um todo. Esta movimentação foi parada quando o Partido foi colocado na ilegalidade novamente em 1948.
Contudo, somente a partir de 1955 com o surgimento da Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco, também chamada de Liga da Galiléia, que o movimento que ficou efetivamente conhecido como Ligas Camponesas[1] começou a se formar. Em 1958 temos o Primeiro Congresso de Foreiros e Proprietários e o debate da reforma agrária passa a tomar corpo e se organizar de forma menos localizada. Diversas outras ligas foram organizadas ao redor do país, inclusive sem a ajuda do PCB, até 1964, quando a ditadura empresarial-militar tratou de perseguir vorazmente o movimento camponês no país.
Nos anos 70 há uma retomada dos movimentos pela terra através das ocupações rurais, uma antiga tática de luta. O movimento volta a tomar corpo e, em 1981, camponeses no Rio Grande do Sul começam a publicar o jornal Sem Terra, um “boletim informativo da campanha de solidariedade aos agricultores sem terra”[2]. Neste momento pipocavam lutas pela terra no país, impulsionadas por diversos grupos e forças progressistas, partidos políticos e uma certa ala progressista ligada à igreja Católica e à pastoral da terra.
Em 1984 o jornal Sem Terra passa a agitar, junto com outras organizações, pelo que viria a ser o 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, onde foi criado o MST.
Camaradas, vejamos, portanto, que a maior organização de luta pela terra no país foi criada após décadas de mobilização e agitação das ideias em prol da reforma agrária. O programa e a organização do MST possuem como antecedentes um enorme acúmulo político, científico e organizativo. A organização de massas não foi criada e depois as massas aderiram por sua identificação à linha política para se criar um movimento, essa é uma forma de pensar que assume uma posição vanguardista e pouco conectada com as demandas da classe trabalhadora. Muito pelo contrário, a organização só foi capaz de ser criada após a criação de uma consciência comum às massas camponesas que apontava para o latifúndio como um problema estrutural do capitalismo brasileiro (por mais que a luta do MST seja uma luta reformista, a tese está correta) e para a necessidade de uma reforma agrária popular. E mais, um jornal foi fundamental para o início da organização do MST.
Aqui, temos algumas considerações:
- Existiu um movimento espontâneo das massas, mas foi necessária a ação de partidos (de início o PCB, mas não só) e outras organizações para elevar o nível de consciência das necessidades da luta e de suas possibilidades de organização e desenvolvimento.
- Foi um longo processo histórico de agitação entre as massas populares que possibilitou a criação do MST, que uso como exemplo por ser a maior organização política de massas da América do Sul.
- Essa agitação acompanhou inúmeras experiências localizadas de luta pela terra, que foram se convertendo em acúmulo organizativo e programático. Essas diversas formas de luta foram aprimoradas e compartilhadas entre as diversas regiões do país.
- Quando as reivindicações pela terra já encontravam eco em todo o país de maneira mais ou menos organizada e possuíam um programa mais ou menos unificado, foi possível unificar os trabalhos em uma organização de massas.
Portanto, antes de sequer ser possível a criação de uma organização de massas, é preciso ter massas dispostas a lutar e um programa estratégico unificado. Para as massas terem a disposição da luta, este programa deve estar em consonância com seus anseios, mas também deve partir das próprias massas, através de suas experiências organizativas (“Das massas, para as massas”). Há ainda um último elemento, é necessário forças sociais que estejam dispostas a ser a vanguarda desse processo, que estejam dispostas a organizar as massas em um sentido prático (a criação de um jornal, a organização de congressos, a realização do chamado para que populações de trabalhadores sem terra se juntem ao movimento, o estudo jurídico, etc) e ideológico. Pode ser um Partido (como foi o caso de certas ligas camponesas organizadas pelo PCB), mas pode ser um conjunto de forças sociais (como foi o caso da formação do MST).
O que espero ter demonstrado aqui é que não se cria uma autointitulada organização de massas esperando que as massas venham até ela. O processo deve começar com a agitação e propaganda constante entre as massas para que estas se movimentem em torno de um objetivo comum e para que construam os acúmulos políticos, organizativos e programáticos necessários para a criação de uma organização. O Partido deve servir como esse catalizador inicial da agitação e propaganda (como foi no passado), mas também como um organizador que busque unificar ideológica e organizativamente as diversas lutas localizadas e os diversos elementos da classe que se colocam em movimento. E este processo precisa ser constante e de longo prazo. É isso que significa dirigir um movimento de massas, é ser capaz de influenciar na sua movimentação através do espalhamento e da justeza da linha política.
Outro exemplo para pensarmos o movimento de massas é o que ficou conhecido como as Jornadas de Junho de 2013. Alguns podem se lembrar que as jornadas não começaram em 2013, muito menos em Junho. Pelo menos desde 2011 em minha cidade natal, Vitória (ES), já ocorriam movimentações, principalmente entre os estudantes, pelo passe livre. Eu lembro que em 2011 o grêmio estudantil do IFES (onde estudava), dirigido pela UJS[3], levou os alunos do primeiro ano (minha turma) para uma conversinha com o secretário de transporte da cidade (pasmem), na tentativa de apaziguar os ânimos dos calouros que haviam acabado de chegar na escola e começavam a se deparar com movimentações políticas em torno do MPL. Nesta conversa um membro da secretaria de transporte tentou, por meio de números e tabelas, nos provar que o aumento das passagens não só era justo, como inevitável. A despeito disso, não nos convencemos. O movimento cresceu e em 2013 tivemos diversas manifestações anteriores a junho em torno da pauta – todas relativamente pequenas.
Em junho, contudo, as coisas degringolaram. Jornalistas foram atacados pela polícia em SP, o que causou uma indignação seletiva nos meios de comunicação e que levou à massificação das lutas (em grande parte pela ação da própria mídia burguesa). Fernando Haddad deu aquela triste declaração contrária à diminuição do preço das passagens ao lado do nosso hoje vice-presidente, Geraldo Alckimin. A mídia burguesa começou a converter o sentimento anti-institucional que surgia ali em um sentimento antipetista em particular e antiesquerda num geral (com uma decepcionante ajuda do PT). Com base no afastamento da esquerda institucional das massas (exemplificado na declaração do Haddad, mas anterior a esse fato), a mídia burguesa ressaltou como o movimento era apartidário (no caso, o próprio MPL se declara orgulhosamente apartidário), como que os próprios manifestantes estavam expulsando partidos das manifestações, instaurando a noção de que os partidos de esquerda num geral não representam o povo (o que não deixava de ser verdade, vide a atuação do PT e da UJS, por exemplo) e que eles não se faziam presente nesses espaços (escanteando a presença de partidos da esquerda radical).
E precisamos aqui novamente criticar o campo democrático popular. Eles de fato não estiveram presentes nesses espaços e até mesmo lutaram contra o acirramento destas lutas, como foi o caso do Haddad, mas também do grêmio estudantil da minha escola à época, que fez de tudo parar barrar o avanço do MPL dentro do campus. Quando os movimentos cresceram, um tal de Fábio Lúcio, dirigente informal do grêmio (mas dirigente de facto) e militante da UJS, decidiu se juntar e tentar liderar a mobilização. Ele foi execrado publicamente pelos estudantes nas manifestações e ficará para sempre lembrado como um oportunista da pior espécie por aqueles que estiveram presentes nas mobilizações pelo passe livre no IFES de Vitória à época.
Portanto, podemos observar que a agitação em torno da pauta do passe livre foi anterior à Junho de 2013. Em Junho de 2013 que o MPL se perdeu e foi engolido pela direita. Nenhuma organização de esquerda conseguiu tomar a frente do movimento e organizá-lo. As pautas que inicialmente giravam em torno do passe livre se converteram em gritos iniciais de Fora Dilma e o MPL, enquanto antiga direção do movimento, foi subsumido por seu caráter “apartidário”, um enorme favor realizado à mídia burguesa. O MPL não foi capaz de dar o salto organizativo, não teve a firmeza ideológica necessária, não houve a penetração da linha política nas massas o suficiente, não havia uma direção política clara, havia uma desconfiança (justa, mas em partes equivocada) com os partidos de esquerda. Bastou um erro tático da esquerda institucional e a mídia burguesa não só acabou com o movimento e a sua direção (o MPL), mas viu ali a possibilidade de gestar outro por seus escombros, que tomaria força com o começo do governo Dilma 2. As massas que se levantaram em Junho foram sim catalisadas pelo MPL (e outras reivindicações locais específicas), mas não foram organizadas, nem tiveram sua consciência elevada. Na hora do “vamos ver” a esquerda capitulou, se eximiu de elevar o programa do movimento a outros patamares e não organizou a insatisfação e as reivindicações das massas. As direções do MPL também cometeram erros (como o apartidarismo anarquista, que acaba por cair para o liberalismo), mas que considero menores se comparados ao tamanho da força dos partidos da esquerda institucional à época.
Aqui o movimento fracassou e o MPL hoje é praticamente uma relíquia do passado. Houve um movimento de massas que a esquerda não conseguiu converter em organização das massas e as pautas se perderam.
Antes de seguir para a crítica ao MUP, quero dar ainda outro exemplo, mais local, que pode nos ajudar a entender a prática necessária aos nossos camaradas na construção do movimento de massas. O exemplo é da recente greve dos estudantes na Universidade Estadual de Campinas, onde fiz graduação e onde hoje termino meu mestrado.
A greve estudantil deflagrada este semestre (que teve duração de três semanas e resultou em conquistas importantes) começou no dia em que um professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica – IMECC tentou esfaquear um aluno, num dia de paralização. Já havia uma assembleia estudantil marcada para o dia, mas o ataque do professor foi essencial para inflar os alunos e encher a assembleia (que não se via tão cheia assim desde 2016, à época da greve estudantil que garantiu as cotas para pessoas negras na universidade). A partir deste fato, que gerou uma enorme comoção nas redes sociais dos estudantes, o DCE, as forças políticas e os movimentos sociais (que acabaram depois por compor o Comando de Greve) trataram de criar um conjunto de reivindicações importantes e de longa data. A direção do movimento estudantil soube aproveitar do fato do ataque do professor, mas a greve não teria sido aprovada somente por isso. A greve só pode se consolidar como um movimento de massas dentro da universidade porque havia uma série de reivindicações de longa data que estavam em discussão na universidade, o fato do ataque, que levou a uma assembleia lotada de estudantes (porque com o ataque, que percorreu as redes com uma velocidade até por ação da mídia burguesa, os estudantes ficaram sabendo da assembleia), não é suficiente para explicar a opção que a maioria dos estudantes presentes tiveram pela greve. Houve também um núcleo duro dirigente, representada no Comando de Greve (que possuía participação dos movimentos sociais, centros acadêmicos e outras entidades estudantis – além dos partidos, representando alguns destes setores citados), mas que já agitavam em torno destas pautas até mesmo antes.
Destaco duas das reivindicações mais importantes da greve. A primeira foi a reivindicação de que o bandejão fosse aberto aos finais de semana para que os alunos pudessem se alimentar. A segunda é a implementação das cotas trans no vestibular. As duas reivindicações foram aceitas pela reitoria, que se comprometeu a efetivar o bandejão aos finais de semana até o final do ano e a começar os estudos para implementação das cotas trans no vestibular (vejamos a fidelidade das promessas da reitoria no futuro).
Estas duas reivindicações também foram precedidas por uma enorme mobilização na universidade. O bandejão aos finais de semana é uma pauta histórica do movimento estudantil da Unicamp – ouço a respeito disso desde que ingressei na graduação em 2015. No último ano, 2022, houve um renovado interesse sobre a questão do bandejão, com a contratação da empresa Soluções para realizar o serviço de alimentação do bandejão. Este processo causou demissões em massa, diminuição dos salários e benefícios dos trabalhadores e até mesmo a morte de uma funcionária. Todos estes problemas causaram uma enorme comoção e resultaram em algumas manifestações bem cheias. O bandejão foi a grande pauta do movimento estudantil em 2022, muito embora a reivindicação específica da abertura aos finais de semana tenha surgido de forma lateral a princípio, enquanto o mote principal inicialmente era pelo fim do contrato com a Soluções.
Acho que no fim de 2022 ou começo de 2023 (não me lembro precisamente da data) os moradores da Moradia Estudantil começaram a organizar um almoço coletivo aos finais de semana, como protesto à não abertura dos bandejões aos finais de semana. Isso causou uma enorme comoção, até mesmo alunos que não eram moradores da Moradia Estudantil começaram a frequentar o espaço para se alimentar. A palavra de ordem pelo bandejão aberto aos finais de semana já estava sendo agitada desde 2022. Agora um “bandejão alternativo” dos alunos estava sendo organizado, com bastante visibilidade da comunidade universitária. Com o estouro da greve, a pauta estava quente e visível, os alunos organizaram também a alimentação dentro da ocupação que foi feita no IMECC. Com uma ajudinha da conjuntura (tentativa de ataque de um professor, disputas internas dentro da reitoria, greves em outras universidades, greves na SABESP, metrô, etc) conseguimos arrancar essa vitória a partir da organização dos estudantes em torno destas pautas antigas.
O segundo caso é bem similar. O Núcleo de Consciência Trans da Unicamp é um coletivo politicamente muito bem mobilizado há alguns anos. E há alguns anos eles vêm realizando este debate sobre cotas trans, de forma que alguns institutos da universidade já aplicam as cotas trans em programas de pós-graduação, onde os institutos possuem autonomia maior para a seleção de seus estudantes, como é o caso do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH. Houve algumas mobilizações em torno do tema em 2022 também, a qual destaco a discussão sobre banheiros trans nos institutos de economia e de artes (são os que eu tenho conhecimento, mas pode ter havido outros). No Instituto de Artes esta questão surgiu com o desaparecimento repentino das placas identificadoras de gênero na porta dos banheiros, o que causou um debate, levado à cabo por movimentos sociais e pelo Centro Acadêmico, e resultou na implementação de banheiros sem gênero. Um excelente exemplo de agitação performática, que casa muito bem com o espírito de um Instituto de Artes, seguido de uma organização consequente do CA, que soube utilizar a conjuntura muito bem e dialogar com as direções do Instituto.
Vejam bem, camaradas, antes de ambas as pautas se tornarem um movimento de massas e se configurarem também como uma organização de massas (mesmo que localizada como uma greve) foi necessária uma ampla agitação e propaganda na universidade. A conjuntura geral ajudou, mas essas duas reivindicações eram as reivindicações mais avançadas, bem desenvolvidas e que encontraram eco entre os estudantes de maneira mais forte. Foram o carro chefe da greve. Por outro lado, as forças sociais em disputa conseguiram (à duras custas) manter uma unidade ideológica e de ação mínima para fazer os trabalhos da greve e da ocupação avançarem.
A despeito das limitações destes exemplos, procurei demonstrar que a criação de um movimento de massas é um processo longo de disputa ideológica, que precisa converter-se em qualidade organizativa para que o movimento seja bem-sucedido, mas que precisa também ressoar nas massas. As formas que esta organização pode adotar são variadas, desde a instituição de uma Organização de Massas propriamente dita (como é o caso do MST), até a criação de fóruns comuns entre as forças sociais que a compõe (como era o caso do Comando de Greve). E mesmo no caso da criação de uma Organização de Massas, esta dificilmente estará sozinha e terá que participar de fóruns com outras forças. A direção do movimento, por outro lado, não é exercida pelos mandos e desmandos ou pela imposição burocrática, mas pela capacidade que uma determinada força política tem de fazer a sua linha ser adotada pelas massas e pelas demais forças.
2. MUP: sem massa, sem programa, sem organização, sem nada.
Portanto, temos aqui que, para que um movimento de massas seja bem-sucedido e se converta em organização das massas (podendo resultar ou não na criação de uma Organização de Massas propriamente dita), é necessária uma penetração de determinadas ideias para que se crie uma unidade ideológica entre os membros da classe trabalhadora (ou de setores da classe) e as forças sociais envolvidas, geralmente conformada em um programa comum de reivindicações. Essa unidade ideológica é o que leva as massas a tomar a questão em mãos próprias, mas é necessária uma direção ao movimento (seja um partido ou um conjunto de movimentos sociais), que consiga organizar as massas nos momentos de descenso e ascenso das lutas, que consiga aprofundar e dar concretude ao programa comum, que consiga agitar as pautas e as formas de organização necessárias entre as bases do setor que se pretende organizar.
Dito isso e olhando para o nosso MUP, minha conclusão não pode ser outra: o MUP nasceu para morrer.
Antes de mais nada, é uma suposta organização de massas que precede a um movimento de massas e que, portanto, não possui massa alguma. É uma organização cujo programa é confuso e rebaixado (como tentei provar na minha última tribuna sobre o tema) e que, portanto, não tem possibilidade alguma de ressoar entre as massas, a menos que seja mais bem desenvolvido. Como consequência desse rebaixamento de linha, do etapismo e da confusão programática, os militantes dedicados a agitar e propagandear essas ideias não conseguem dar consequência às palavras de ordem, nem apontar para as contradições fundamentais da universidade brasileira, nem pensar em iniciativas verdadeiramente revolucionárias para a construção do duplo poder dentro da universidade (já que o programa não versa sobre isso). Por fim, não há sequer uma organização propriamente dita, apenas inúmeras iniciativas locais, distintas em suas reivindicações, programas e formas organizativas, que não se conversam e não conseguem criar mesmo entre si uma unidade ideológica.
É um movimento às avessas: é uma organização que luta pela Universidade Popular, que é um conceito vago e pouco definido pela própria organização e pelo partido que a dirige; é uma organização que pretende se tornar um movimento de massas, realizando o caminho inverso das organizações de massas conhecidas, partindo de uma organização abstrata para depois ter as massas; e enquanto organização também não existe, dado a falta de unidade organizativa que o MUP possui. No fim das contas, o MUP é só uma bandeira vaga, confusa e inconsequente que teimamos em querer tratar ora como movimento (geralmente no discurso), ora como organização (geralmente na prática).
Para além disso tudo, existe uma incompreensão sobre quem são as massas que devem ser organizadas para a construção de um movimento como o MUP. São os estudantes (e às vezes funcionários e professores) das universidades, como temos feito até então? Se lutamos por um projeto de universidade nacional, voltado para o povo e contra-hegemônico, não serão apenas os membros da comunidade universitária pública que o construirão. Deveríamos tentar mobilizar ao máximo todos os setores da classe trabalhadora em prol de um movimento como esse, se assim o quiséssemos, buscando mobilizar também funcionários públicos, professores e alunos de escolas públicas, pais e mães da classe trabalhadora e outros setores que também são mais ou menos afetados pela dinâmica universitária atual.
Primeiro deveríamos coletar os acúmulos, promover o debate com outras forças sociais, resgatar as experiências históricas e definir com maior precisão o que significa Universidade Popular. Depois disso, teríamos que nos dedicar à mais profunda agitação entre as massas – muito para além das massas estudantis, como atualmente tem sido feito.
Poderíamos isso, poderíamos aquilo, mas é realmente isto que queremos?
Certamente eu quero que universidade brasileira seja popular e esteja à serviço da classe trabalhadora, mas é este o nosso objetivo estratégico? É essa a nossa estratégia? Como tentei provar desde a minha última tribuna, o atual programa MUP é uma tática etapista, quando não defensora de uma concepção de universidade burguesa, e levá-la à cabo exigiria de nós um tremendo esforço organizativo e político. Se conseguíssemos construir um verdadeiro movimento de massas pela construção de um modelo de universidade popular para o país, o que nos impediria de fazer a mesma coisa tendo em vista a revolução socialista? E se nada nos impede, por que dedicar tanto esforço para lutar meramente pela Universidade Popular? E, vejamos, mesmo que fôssemos capazes de construir um movimento deste tipo para lutar pela Universidade Popular, seríamos engolidos pelos limites do Estado burguês, da mesma forma que o MST.
O MST, por seu programa e estratégia reformista não conseguirá jamais concretizar uma reforma agrária sistemática e estrutural no país. Não enquanto o poder da burguesia permanecer forte e firme como hoje está. Isto também não significa desprezar a força e o potencial que o MST possui. Inclusive, acredito que o movimento pela terra é uma das “reservas diretas” que possuímos para o processo revolucionário e que precisamos nos conectar de maneira mais profunda ao movimento e suas organizações.
Da mesma forma, a luta por uma Universidade Popular é uma luta que só será realizada plenamente após o socialismo. Somente após a revolução é que as condições objetivas e subjetivas para a criação deste modelo de universidade estarão colocadas. Somente após a revolução (ou, no limiar, num momento imediatamente anterior à insurgência) fará sentido empregar este esforço para a construção desta universidade. E, veja bem, mesmo no socialismo certamente encontraremos dificuldades, mesmo que de mais fácil resolução: a velha burocracia universitária, os velhos professores, o manejo de recursos e outras dificuldades imprevisíveis. São dificuldades ínfimas se comparadas ao poder do capital sobre as estruturas do Estado Burguês – por isso que a derrubada deste Estado é a tarefa prioritário se queremos construir uma Universidade Popular.
Podemos agitar dentro da universidade em torno de suas pautas defensivas sim, podemos até mesmo clamar pela criação de uma Universidade Popular (se desde já nos dispusermos a definir melhor o que ela significa), mas sem dotar essas lutas de um caráter revolucionário não conseguiremos ir além do que a institucionalidade burguesa permite.
Quando falo em dotar essas lutas de um caráter revolucionário, digo que devemos através destas lutas agitar e propagandear pela revolução socialista e não apenas agitar em torno das pautas já colocadas, deixando para depois a colocação da necessidade da revolução. Sobre isso, quero ressaltar que nossa militância às vezes parece ser muito tímida para falar de revolução em público, parece que temos medo de que nos colocarão um chapéu de alumínio e nos taxarão de loucos, aventureiros, esquerdistas, vanguandistas. Pode até ser que debochem de nós a princípio, da mesma forma que debochávamos da possibilidade de Bolsonaro ser eleito presidente antes da facada, mas se temos a certeza de que esta é a única possibilidade possível para a salvação do planeta, precisamos desde já começar a agitar pela revolução e colocá-la na boca das pessoas, mesmo que a princípio provoquemos risos e escárnio.
Para além disso, dotar essas lutas de caráter revolucionário significa também demonstrar aos estudantes e trabalhadores como que nós, enquanto classe, temos a capacidade de organizar e tomar conta do que está ao nosso redor. O almoço aos finais de semana na moradia estudantil é um ótimo exemplo de como isso é possível. A organização da ocupação também. Todas estas tarefas são essenciais para a elevação da consciência de classe e para o entendimento da possibilidade de autonomia da classe trabalhadora, mas a vanguarda precisa estar ali para apontar isso e organizar o processo junto à classe. Eu friso que este processo de organização deve ser feito junto à classe para que não caiamos nos erros burocratistas.
Gostaria, por fim, de fazer uma última crítica a uma concepção por vezes corrente na UJC (e que eu mesmo reproduzi no passado), a de que o MUP tem que estar para a UJC tal qual o Correnteza está para a UJR. Por trás disso corre a noção de que o Correnteza é um “movimento” (embora seja organização) de massas por ser mais aberto, com uma seleção menos minuciosa de seus militantes da base, com um programa político mais amplo (rebaixado) e dirigido por uma organização de vanguarda (a UJR). Esta é uma compreensão mecânica do movimento de massas e do que significa dirigir um movimento de massas, como busquei provar aqui anteriormente.
Ela na prática leva a UJR a rebaixar sua agitação para um programa “antifascista”, mas não revolucionário, tal qual ocorre entre o PCR e a UP. Em uma analogia ao que o camarada Danilo disse em uma tribuna presente nos Cadernos de Contribuições Dinarco Reis, o Correnteza é o liquidacionismo da UJR nas universidades. Essa lógica resulta em uma direção autoritária, na constante quebra de quadros, no rebaixamento ideológico, em um fraco trabalho de massas e no oportunismo da UJR – que é a face mais evidente do liquidacionismo neste momento.
Camaradas, volto ao tema do MUP pois julgo ser urgente que abandonemos esta tática. Ela tem travado nossos trabalhos dentro do Movimento Estudantil, confunde nossa agitação, confunde nossas bases, não eleva a consciência de classe e rebaixa nossa agitação dentro da universidade para a construção de uma Universidade Popular mal definida. O MUP, quando menos, se reduz aos militantes da UJC disfarçados e, quando mais, é um enorme duplo trabalho organizativo com poucos resultados políticos concretos. Ele precisa ser abandonado urgentemente em prol de uma agitação e propaganda pela revolução socialista, pois temos pressa! O mundo tem pressa! Abandonemos o etapismo tático, deixemos de ter medo de falar em revolução. Precisamos converter nosso Partido em uma máquina que agita e organiza a classe para a tomada do poder.
A Universidade Popular (só) pode ficar para depois da tomada do poder.
[1] https://www.ligascamponesas.org.br/?page_id=99
[2] https://mst.org.br/nossa-historia/inicio/
[3] Notem, camaradas, que a UJS, uma suposta organização de esquerda, esteve desde o começo ao lado dos monopólios do transporte, pelo menos em minha cidade natal. E ainda, minha experiência e intuição me fazem ter alguma certeza de que este apoio ocorreu a nível nacional.
Referências Bibliográficas:
BOGO, Ademar. Organização Política e Política de Quadros. Expressão Popular. 2011
SANTOS, L. S. dos. As Ligas Camponesas do PCB: a trajetória de um debate (1926-1945). Revista Sem Aspas , Araraquara, v. 10, n. 00, p. e021023, 2021. DOI: 10.29373/sas.v10i00.15874. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/semaspas/article/view/15874. Acesso em: 12 nov. 2023.