A Ditadura militar e o reboquismo do PCB

A questão mais importante, a fundamental, é a questão do poder. Os revolucionários no Brasil não se podem propor a outra coisa senão à tomada do poder, juntamente com as massas. Não há por que lutar para entregar o poder à burguesia, para que seja constituído um governo sob a hegemonia da burguesia.

A Ditadura militar e o reboquismo do PCB

Por Carlos Marighella

Excerto da Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista Brasileiro, de 1 de dezembro de 1966, transcrito a partir de marxists.org.


A Circulação das ideias

Uma das questões em que a Executiva se mostra temerosa e conservadora é quanto ao aparecimento de livros e à circulação de ideias.

Há cerca de um ano e meio publiquei o livro Por que resisti à prisão.

A experiência das lideranças passadas, em matéria de lançamento de livros, não é boa. As direções executivas dificultavam ou impediam tal coisa por meio de subterfúgios, retendo originais ou exercendo a censura prévia.

Os camaradas da Executiva atual reclamam, entretanto, que só a posteriori tomaram conhecimento do livro mencionado.

Mesmo assim, não o discutiram; sobre ele não emitiram nenhuma opinião, apesar de interpelados por militantes e outros dirigentes.

Agora, passado mais de um ano, os companheiros fazem autocrítica pela omissão e opinam sobre o livro, considerando boa a primeira parte (que faz o relato da prisão). Não concordam, porém, com a segunda parte (que expõe os assuntos ideológicos e políticos), porque esta – segundo pensam – é contra a atual linha do Partido.

Parece estranho condenar uma parte do livro e não condenar igualmente a outra.

As duas partes são indivisíveis. Uma é decorrência da outra. Há uma interação entre elas, uma relação de causa e efeito. A resistência à prisão não teria havido se os motivos políticos expostos no livro não a justificassem.

Os companheiros, porém, não atentam para essa evidência. Entram pelo terreno da abstração e do agnosticismo kantista e separam coisas inseparáveis.

E vão mais além, sustentando a tese de que um membro da liderança não pode escrever, publicamente, discordando.

A tese é stalinista, mas aí a temos de volta.

Ora, a discordância nunca é um fato repentino, mas o amadurecimento de um processo contraditório, facilitado sempre que se abre o debate, sobretudo quando o último foi travado seis anos atrás.

E é exatamente neste momento – com os debates abertos – que os companheiros afirmam a impossibilidade da discordância pública.

Recai-se, assim, na “teoria da unanimidade”, que tanto prejuízo trouxe no passado. Volta-se à concepção antimarxista e antidialética do “núcleo dirigente” monolítico, superposto ao coletivo. Em suma, trata-se de uma tentativa de intimidação ideológica, o recurso a uma forma de coação para evitar a circulação de ideias que são temidas.

Entretanto, revelar as contradições é uma forma e até mesmo um método para superá-las, desde quando as ideias entram em confronto umas com as outras e a prática é tomada como critério para testar a verdade.

De onde vêm as discordâncias

Nossas discordâncias não são de agora. Vêm de muito antes. Cresceram a partir dos acontecimentos subsequentes à renúncia de Jânio, quando o nosso despreparo político e ideológico ficou demonstrado.

Em 1962, perante o coletivo do Partido, critiquei os métodos não marxistas, os remanescentes do individualismo na direção e a falta de tomada de posição ideológica em face ao nosso despreparo.

O golpe de abril – vitorioso sem nenhuma resistência – mostrou mais uma vez que política e sobretudo ideologicamente estávamos mesmo despreparados.

A resistência à prisão e o livro que tratou do assunto significavam aquela tomada de posição ideológica face ao despreparo e à perplexidade geral.

O despreparo ideológico e político da Executiva – segundo penso – revela-se em suas concepções, já agora postas em dúvida por muitos militantes.

São concepções imbuídas do fatalismo histórico de que a burguesia é a força dirigente da revolução brasileira. A Executiva subordina a tática do proletariado à burguesia, abandona as posições de classe do proletariado. Com isto, perde a iniciativa, fica à espera dos acontecimentos.

O livro que publiquei sob o título A Crise brasileira (Ensaios políticos) é exatamente uma contribuição ao debate aberto em torno das posições da liderança, posições que venho combatendo publicamente, amparado no princípio da livre discussão. Não vejo mal em combater tais posições, pois o que todos desejamos é uma Executiva em condições de ir para a ação e manejar o método dialético-marxista.

As Ilusões de classe

As ilusões da Executiva – perdoem-me os companheiros – permanecem intactas. Daí por que as vimos refletidas nas ilusões de uma boa parte dos dirigentes e militantes que acreditavam em líderes burgueses, como Juscelino, Jânio, Adhemar, Amaury Kruel, Justino Alves e outros, e tinham esperança na resistência que prometiam fazer contra a ditadura. O episódio da cassação de Adhemar não foi, porém, a última decepção.

Temos agora o caso da Frente Ampla. A Executiva manifestou-se com inequívocas simpatias pela Frente Ampla, renunciando a criticá-la e a esclarecer as massas sobre o seu significado.

Lacerda – líder fascista – quer fazer seu próprio partido, exibindo-se como popular e reformista.

A Executiva acha tudo isto um “fato político positivo” (Voz Operária, nº 22, novembro de 1966), admitindo que a Frente Ampla venha a ter a capacidade de lutar contra a ditadura, pelas liberdades e os interesses reais do povo brasileiro.

A jogada de Lacerda é abrir novos caminhos para servir ao imperialismo norte-americano e evitar a libertação nacional de nosso povo. Lacerda é incapaz por sua situação de classe de lutar realmente pelo povo, contra o latifúndio e o monopólio da propriedade privada da terra, em favor dos camponeses e em favor da classe operária. O que Lacerda pretende segundo se deduz dos fatos é a colaboração de classes, é a conciliação que leva ao apoio a Costa e Silva.

A Executiva silencia sobre isto, ajuda a semear ilusões.

As ilusões são justificadas em nome da propalada política ampla, em nome do combate ao sectarismo e ao esquerdismo, enquanto se despreza a luta em favor da ideologia do proletariado. Esquece-se o papel do Partido marxista, da sua independência de classe, e cai-se no reboquismo ante a burguesia.

Em vez de combater as ilusões, apressou-se a Executiva a combater o revanchismo – adotando uma posição burguesa como se não devêssemos ajustar contas com a ditadura à maneira proletária – ou seus crimes e chamar seus autores à responsabilidade. Como se não devêssemos apontar ao proletariado os criminosos golpistas, denunciar “à maneira plebeia”, segundo diria Marx em seu tempo.

Caminho eleitoral ou caminho armado

A Executiva ainda pensa em infligir à ditadura derrotas eleitorais capazes de debilitá-la. E dá grande importância ao MDB, apontado como capaz de permitir a aglutinação de amplas forças contra a ditadura. Ou então apoia a Frente Ampla do Lacerda.

Não é isto querer desfazer-se da ditadura suavemente, sem ofender os golpistas, unindo gregos e troianos?

Em vez de uma tática e estratégia revolucionárias, tudo é reduzido – aberta ou veladamente – a uma impossível e inaceitável saída pacífica, a uma ilusória redemocratização (imprópria até no termo).

Parece não se ter compreendido Lênin, quando em Duas táticas afirma que “os grandes problemas da vida dos povos se resolvem somente pela força”.

Em outra parte, falando sobre a vitória, acrescenta Lênin que esta “deverá apoiar-se inevitavelmente na força armada das massas, na insurreição”, e não em tais ou quais instituições criadas “por via legal” e “pacífica”.

Depois de tanto se ter falado que à violência das classes dominantes se responderia com a violência das massas, nada foi feito para que as palavras coincidissem com os atos. Esquece-se o prometido e continua-se a pregar o pacifismo.

Falta o impulso revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta.

A saída do Brasil – a experiência atual está mostrando – só pode ser a luta armada, o caminho revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as consequências e implicações que daí resultam.

É verdade que nossa influência, a dos social-democratas (quer dizer, a dos comunistas), sobre a massa do proletariado ainda é muito insuficiente; a influência revolucionária sobre a massa camponesa é insignificante; a dispersão, a falta de desenvolvimento, a ignorância do proletariado e sobretudo dos camponeses, ainda são terrivelmente enormes.

A revolução, porém, aglutina as forças com rapidez e as instrui com a mesma velocidade. Cada passo dado no seu desenvolvimento desperta a massa e a atrai com uma força irresistível para o programa revolucionário, o único que exprime de modo consequente e completo os seus verdadeiros interesses, e seus interesses vitais.

Há no Brasil forças revolucionárias internas capazes de resistir à ditadura e ir à luta. E é verdade que o pensamento leninista brota por toda a parte onde o proletariado faz sentir sua influência.

Razões irreversíveis

A Executiva crê na liderança da burguesia e este fato é decisivo na tomada de posições. Conforme o ponto de partida a propósito desta questão, as demais questões serão resolvidas de uma forma ou de outra.

A questão mais importante, a fundamental, é a questão do poder. Os revolucionários no Brasil não se podem propor a outra coisa senão à tomada do poder, juntamente com as massas. Não há por que lutar para entregar o poder à burguesia, para que seja constituído um governo sob a hegemonia da burguesia. Foi o que se pretendeu com o governo nacionalista e democrático. É o que se pretende agora, propondo-se a conquista de um “governo mais ou menos avançado”, eufemismo que traduz a esperança num governo sob hegemonia burguesa, fadado a não resolver os problemas do povo.

Isto significa a renúncia à luta pelo poder através da ação revolucionária, a confiança no caminho pacífico e eleitoral, a capitulação ante a burguesia.

A Constituição fascista, autoritária, que elimina o monopólio estatal, que sustenta a atual estrutura agrária retrógrada, que assegura a total entrega do país aos Estados Unidos, que reduz o Parlamento e a Justiça a instrumentos dóceis do Poder Executivo, tal Constituição não permitirá nenhum governo democrático por via eleitoral.

É preciso pôr abaixo tal Constituição, derrubar a ditadura, estabelecer um governo apoiado em outra base econômica, em outra estrutura. Fora disso, é permanecer mais dez, vinte anos, fazendo acordos eleitorais, ajudando as classes dominantes e o imperialismo norte-americano a manter o Brasil como uma ditadura institucionalizada, a serviço da repressão ao movimento de libertação dos povos latino-americanos.

A conclusão não pode ser diferente, sobretudo em face de vinte anos de acordos eleitorais feitos no passado, acordos eleitorais sem princípios, que nos desacreditaram e desgastaram ante as massas.

São tentativas inviáveis, prática e teoricamente, pois a época das revoluções democráticas e liberais já está ultrapassada.

Temeroso da Revolução Cubana, o imperialismo norte-americano, agora apoiado nas forças armadas convencionais latino-americanas, não vacila em desencadear os golpes militares ao menor sinal de um avanço no caminho da libertação dos povos de nosso continente. E nem mesmo desiste ou recua do emprego da guerra de agressão mais brutal, como no Vietnã.

A luta pelas reformas de base não é possível pacificamente, a não ser através da tomada do poder por via revolucionária e com a consequente modificação da estrutura militar que serve às classes dominantes.

O abandono do caminho revolucionário leva à perda de confiança no proletariado, transformado, daí então, em auxiliar da burguesia, enquanto o Partido marxista passa a ser apêndice dos partidos burgueses.

A subordinação e a perplexidade ante a burguesia e sua liderança impelem ao menosprezo do campesinato na revolução brasileira.

Daí a causa por que o trabalho no campo jamais constitui atividade prioritária, chocando-se os esforços nesse sentido com a indiferença e a má vontade da Executiva.

Entretanto, o camponês é o fiel da balança da revolução brasileira, e sem ele o proletariado terá que gravitar na órbita da burguesia, como acontece entre nós, na mais flagrante negação do marxismo.

Sem o camponês, o Partido não fará outra coisa senão acordos políticos e acordos eleitorais de cúpula, para não falar em barganhas.

São razões que não podem deixar de contribuir para o meu pedido de demissão [da Comissão Executiva], tornando-se impossível aceitar qualquer conciliação ideológica.