A cruzada de Trump contra a identidade de gênero

Desde o primeiro dia de mandato, Trump cumpre promessa de campanha de avançar com políticas que reforçam os pânicos morais, podendo causar o aumento de mortes na população transgênero.

A cruzada de Trump contra a identidade de gênero
Presidente Trump na Casa Branca. Foto: AP/Creative Commons.

Por Redação

No dia 20 de janeiro, logo após a sua posse, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou a ordem executiva Defending Women From Gender Ideology Extremism And Restoring Biological Truth To The Federal Government (em tradução livre: Defendendo mulheres da ideologia de gênero extremista e restaurando verdade biológica no Governo Federal). A ordem executiva traz consigo uma normativa do Governo Federal estadunidense caracterizado pelo que o republicano chama de “proteção das mulheres do extremismo da ideologia de gênero”, o que consiste na perseguição de pessoas transgênero e no prenúncio do cerceamento dos direitos de todas as mulheres.

A ordem executiva alega se tratar de uma reação contra “ideólogos de gênero” que usariam de medidas coercitivas legais e sociais para permitir que “homens que se auto-identificam como mulheres” acessem espaços e atividades exclusivos para mulheres, citando como exemplo centros de acolhimento para vítimas de violência doméstica e chuveiros femininos nos locais de trabalho.  A ordem aponta que “esforços para erradicar a realidade biológica do sexo” ataca os direitos e a segurança das mulheres, evocando claramente o pânico moral, trazendo a materialidade da violência sexual, para estigimatizar pessoas transgênero. Dessa forma, Trump e seu governo se colocam como protetores das mulheres “biológicas” ao perseguir pessoas trans, especialmente mulheres trans.

A ordem executiva se contextualiza num contexto de contrarrevolução cultural frente aos avanços conquistados pelos movimentos feminista e LGBTI+ dentro do social-liberalismo, especialmente na década de 2010. Historicamente, foi um momento caracterizado não apenas pelo debate cultural dentro da sociedade, como também por avanços legais, como é o caso do casamento homoafetivo e a criminalização da homofobia. Todo esse processo foi  cooptado pelo social-liberalismo, de modo que as questões econômicas, estruturais e materiais das opressões ficaram em segundo plano. Observa-se, assim, um capitalismo colorido, repleto de pinkwashing e purplewashing, em que pautas identitárias passaram a ser mercantilizadas e cooptadas pelo capital.

O aspecto cultural é  central  na proposta política de Trump. O documento cita o “apagamento do sexo na linguagem e em políticas”, assim como o ataque contra o conceito “científico” de “sexo biológico”. A proposição é que o fracasso das políticas de proteção contra violência de gênero se dá pela implementação de um conceito “interno, fluido e subjetivo” de gênero, mas por todo o sistema político estadunidense. O objetivo da ordem, então, é o de retomar a “verdade científica”, a segurança pública, a moral e a confiança no governo, afirmando o compromisso da administração trumpista de defender os direitos das mulheres e proteger a liberdade de consciência ao utilizar uma linguagem clara e identificar corretamente mulheres.

Importante, contudo, ressaltar que o presidente estadunidense, no que se refere a outras pautas de direitos das mulheres, como o aborto, não apresenta a mesma postura de “assegurá-las de seus direitos”. Foi a partir de suas indicações ao Supremo que houve a revogação da jurisprudência nacional de Roe versus Wade, um caso judicial da Suprema Corte dos EUA que legalizou o aborto no país em 1973. Atualmente, a legalização do aborto nos EUA cabe a cada estado independentemente, sem uma legislação nacional para regê-lo.

A ordem executiva alega se tratar de uma reação contra “ideólogos de gênero” que usariam de medidas coercitivas legais e sociais para permitir que “homens que se auto-identificam como mulheres” acessem espaços e atividades exclusivos para mulheres, citando como exemplo centros de acolhimento para vítimas de violência doméstica e chuveiros femininos nos locais de trabalho.   A ordem aponta que “esforços para erradicar a realidade biológica do sexo” ataca os direitos e a segurança das mulheres, evocando claramente o pânico moral, trazendo a materialidade da violência sexual, para estigimatizar pessoas transgênero. Dessa forma, Trump e seu governo  se colocam como protetores das mulheres “biológicas” ao perseguir pessoas trans, especialmente mulheres trans.

Em termos práticos, a ordem inicia definindo sexo, mulher, homem, fêmea, macho, ideologia de gênero e identidade de gênero, esta última sendo de especial destaque, pois impede a utilização da identidade de gênero para a designação de políticas públicas e permanência em espaços. Isso porque o texto da normativa afirma que a identidade de gênero “não fornece uma base significativa de identificação e não pode ser reconhecido como um substituto para sexo”. Também determina que o financiamento federal não pode ser utilizado para promover a “ideologia de gênero” e que o Procurador-Geral deve apresentar uma normativa que assegure a liberdade de expressão do caráter binário do sexo e garanta o direito a espaços segregados por sexo “biológicos” nos locais de trabalho assim como e em entidades financiadas federalmente.

A ordem executiva de Trump também prescreve uma normativa pelo secretário da saúde e serviços humanos para trazer para outras áreas do governo a institucionalização de medidas baseadas no sexo “biológico”. Dessa forma, será imposto a todas as agências e funcionários federais a linguagem “biológica” de gênero de Trump e outros conservadores. Isso implica no impedimento da utilização de identidade de gênero, além de impor que qualquer  documento de identificação deve conter um campo para “sexo”, de acordo com a definição apresentada.

Esta última mudança é semelhante à nova Carteira de Identificação Nacional, proposta por Bolsonaro e mantida por Lula no Brasil. Mesmo com promessas no período eleitoral e com  a liminar da justiça federal  determinando a exclusão do campo “sexo” e fim da distinção entre nome social e nome civil, o governo petista não suspendeu a decisão do mandato anterior. Esse tipo de medida serve para a identificação de pessoas trangênero, sendo parte de um pânico moral maior que lega à marginalização e ao genocídio dessa população.

A ordem executiva de Trump não se limita à burocracia de seu regimento. Ela também determina que mulheres trans deverão ser encarceradas em prisões masculinas, suspendendo seu atendimento médico especializado em sua identidade de gênero, de modo a destransicionar essas detentas contra sua vontade. É sabido que as prisões infelizmente acabam sendo espaços com elevados níveis de violência sexual, forçar mulheres trans a serem encarceradas junto à homens cis é submeter sabidamente esta população à violência e ao abuso contínuo. Esse cenário, junto à falta de amparo médico e à destransição forçada, certamente resultará em elevadas taxas de suicídio para a população trans encarcerada, especialmente para as mulheres trans. Por fim, a ordem determina um prazo de 120 dias para que cada agência deve fazer um relatório sobre a implementação da ordem.

Em termos práticos, a ordem vai no sentido de avançar na implementação do genocídio da população trans nos Estados Unidos, representando um salto qualitativo deste processo. Até então, o que estava posto era um avanço, apenas a níveis estaduais, da segregação social de pessoas trans, que legalmente tinham seus direitos cerceados em campos como educação, saúde, entre outros. Agora, a ordem busca implementar a nível federal políticas voltadas para o pânico moral, estigmatizantes para as populações transgênero. 

A ordem atinge com especial violêncial a população encarcerada, que não só será submetida à extremo risco de violência sexual mas também forçadamente destransicionada, aumentando os já elevados índices de suicídio da população trans. As prisões são o instrumento final de controle social e repressão no capitalismo, e a implementação dessas medidas faz com que as pessoas trans que venham a ser encarceradas tendem a ter como fim sua morte, sendo uma prática fascista de limpeza social.

O governo estadunidense de Donald Trump está trazendo a pauta de gênero como prioridade. Como afirma membros da administração: “Essa foi realmente uma questão decisiva da campanha. O presidente vai cumprir as promessas que fez durante a campanha”. A extrema direita abraça pautas identitárias, instrumentalizando-as a partir dos pânicos morais de maneira a vincular a minorias sociais problemas estruturais ligados à classe.

A realidade que assola os EUA não está muito distante daquela que convivemos no Brasil. Gênero e transgeneridade são alvo de medidas conservadoras promovidas pela extrema direita e negligenciadas pelo social-liberalismo. Pode-se citar o  PL 5275/2023 que “Estabelece o sexo biológico como critério único de definição de "sexo" para fins de definição, coordenação e execução de políticas públicas, altera o art. 38 da lei 14.600, de 19 de junho de 2023, e estabelece outras providências”, assim como o PL 5769/2023, que “Estabelece o sexo biológico como critério de classificação em qual estabelecimento penal o condenado, o submetido à medida de segurança, o preso provisório e o egresso serão recolhidos”, ou ainda o PL 4682/2023, que “Disciplina o uso de banheiros e sanitários em ambientes Privados e Públicos no Brasil” e o PL 1569/2023, que “Altera o item primeiro do art. 70 da Lei Ordinária nº 6.015 de 1973 para incluir o sexo de nascença dos cônjuges”. Além disso, é importante ressaltar o papel conservador pautado no pânico moral da nova Carteira de Identidade Nacional, mantida pelo governo petista.

Somente no ano de 2023, é perceptível um aumento em 177,5% quando comparado ao período entre 2019 e 2022 de projetos de lei que visam cercear pessoas trangêneros e pautar transgeneridade de modo a combatê-la. Dados da Folha de São Paulo de março de 2023 apontam 69 projetos de lei até aquele momento. A maior parte dos projetos vem de deputados da extrema-direita e da direita moderada, de partidos como PL, legenda de Bolsonaro e Nikolas Ferreira, União Brasil, Republicanos, Democracia Cristã e MDB.

Esses projetos buscam tirar direitos da população trans, seja combatendo a linguagem neutra, ou impedindo o acesso de crianças e adolescentes trans aos tratamentos médicos referentes a sua transição. Há projetos referentes à proibição da “ideologia de gênero”, que visam implementar o programa Escola sem Partido em instituições de ensino, levando assim à proibição de temáticas relacionadas à diversidade de gênero em sala de aula. Também há projetos de lei que visam impedir pessoas trans de participar de competições esportivas e proibir a instalação de banheiros unissex em estabelecimentos públicos e privados.

Dessa forma, são inegáveis as similaridades entre as demandas da extrema-direita seja no Brasil, seja nos EUA. Culpabilizando populações estigmatizadas e minorias, como pessoas transgênero ou imigrantes, pelas mazelas do capitalismo, busca-se desmobilizar a classe trabalhadora, impedindo-a de perceber as estruturas e as elites responsáveis pelo seu mal-estar civilizatório.