USP ameaça de expulsão estudantes que se solidarizaram com o povo palestino
Todo o processo abre portas para uma perigosa prorrogativa: a utilização do Regimento Disciplinar remanescente da Ditadura Empresarial-Militar originário do decreto-lei 52.906/1972 para a defesa de interesses de atores externos ao corpo universitário
Por Redação
No ano de 2023, a greve paralisou pela primeira vez o curso de Ciências Moleculares da USP, tensionando as relações entre a coordenação do curso e os alunos grevistas. O corpo estudantil reivindicava a contratação de professores devido à grave falta de docentes que assola múltiplos cursos da universidade, após a perda de 818 professores.
Em meio à greve, se deu o início da retaliação nefasta israelense à contra-ofensiva da resistência palestina de 7 de outubro, intensificando a expulsão e genocídio do povo palestino, iniciado na segunda metade do século XX. Após um discente promover a doação de insumos ao Exército de Israel, o Centro Acadêmico de Ciências Moleculares, que apoiava a greve dos estudantes, convidou o Núcleo de Estudantes em Solidariedade do Povo Palestino (ESPP-USP) para um debate, com o intuito de contextualizar os acontecimentos em Gaza. Foi aberta a pauta, decorreu o debate, sem nenhuma demonstração ou apresentação da oposição no evento, o debate foi registrado em ata.
Poderia consistir em apenas mais uma de muitas dinâmicas promovidas pelo movimento estudantil dentro das universidades brasileiras, que colaboram para a formação política e civil dos alunos. Contudo a Portaria PRG 004, emitida em 30 de novembro de 2023 pelo pró-reitor adjunto Marcos Garcia Neira, no exercício da Pró-Reitoria de Graduação (PRG), instaurou processo administrativo disciplinar (PAD) contra cinco estudantes acusados de “apologia ao ódio” a partir deste evento. Dessa forma, em 2024 a Reitoria da USP segue prosseguindo, processando e ameaçando expulsar cinco estudantes cujo crime foi protestar contra o genocídio em Gaza.
É importante atestar que a reitoria de Carlos Gilberto Carlotti, em 2022, soltou apenas uma nota dizendo que “não admite qualquer forma de apologia ao nazismo e ao preconceito racial em suas dependências” quando o Diretório Central dos Estudantes foi alvo de um ataque nazista, tendo suásticas pichadas em suas paredes, no campus Butantã, zona oeste da capital paulista. A apuração da universidade não foi capaz de identificar, tampouco responsabilizar os autores. A postura é completamente diferente daquela adotada pela direção do curso de Ciências Moleculares e reproduzida pela Pró-Reitoria de Marcos Garcia Neira, que interrompeu as negociações com os discentes frente a organização da greve "por não negociar com antissemitas".
No contexto do processo disciplinar tramitar ao longo da burocracia da USP, a Procuradoria-Geral da USP, representada por Cátia Sandoval Peixoto, orientou em seu parecer a sujeição dos alunos à pena de desligamento de acordo com os artigos. 249 e 250 do Regimento Disciplinar da USP. Tal Regimento Disciplinar remonta a legislação remanescente da Ditadura Empresarial-Militar, sendo originário do decreto-lei 52.906/1972. O Diretório Central dos Estudantes vem denunciando o episódio de perseguição desde fevereiro de 2024, enquanto o sindicato Adusp apresenta apoio à posição dos estudantes. “Trata-se, na realidade, de uma perseguição política advinda da prática de silenciamento sionista que também se coloca contra o direito de greve dos estudantes. Este é mais um ataque à liberdade política dos estudantes, que, no caso dos estudantes de Ciências Moleculares, já foram sancionados de forma autoritária pela USP por manifestar-se dentro do Inova em 2023”, diz o DCE-Livre, que aponta vínculos entre a universidade e suas congêneres israelenses, inclusive “espaço físico dedicado a Israel” na Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (Aucani).
A USP atualmente conta com diversos vínculos entre a universidade e Israel. Além da Aucani, que, segundo o site da universidade “tem como missão fortalecer a integração da USP com instituições universitárias, órgãos públicos e a sociedade, promovendo e apoiando a cooperação acadêmica em ensino, pesquisa, cultura e extensão, tanto no cenário nacional quanto internacional”, também mantém acordo com a Universidade de Ariel, localizada dentro de um assentamento ilegal em território palestino.
É importante ressaltar que tais vínculos da USP com Israel remontam a década de 1980. Desde 1984 a Universidade de São Paulo tem relações com instituições israelenses. O primeiro a ser firmado foi com a Universidade de Tel Aviv, seguido da Universidade Hebraica de Jerusalém, a Technion – Instituto de Tecnologia de Israel, a Universidade de Haifa e a Universidade de Ariel. Há também acordos de cooperação acadêmica, como é o caso do acordo de 2010 entre o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação de São Carlos, da USP e a Universidade de Ariel – Center of Samaria, que está situada dentro de um assentamento israelense na Cisjordânia – ou seja, território ocupado, como aponta a Jacobina.
Retomando a perseguição dos discentes que se manifestaram críticos ao Estado colonialista de Israel, os cinco estudantes que estão sendo ameaçados de expulsão são estudantes ligados ao movimento estudantil, que já haviam dirigido mobilizações contra a coordenação do curso. Embora o processo atual estivesse em curso desde novembro de 2023, os alunos só foram informados em janeiro deste ano, tendo sido impedidos de apresentar uma defesa, a fim de questionar o processo legal. Os discentes foram intimados a apresentar testemunhas, o que fizeram conjuntamente a entrada de um advogado de defesa no processo. Dessa forma, foi indicado um conflito de interesse da comissão processante, que precisou ser reconfigurada, sendo paralisado pontualmente o PAD. Atualmente, uma nova composição da comissão foi indicada, contudo não foi informada. Com isso, os atuais responsáveis por julgar o processo sequer estiveram presentes nas oitivas de acusação e defesa. Isto é, quem está responsável pelo julgamento do processo o fará apenas com o acesso aos depoimentos por meio de gravações. As últimas atualizações do processo apresentam uma nova convocação das testemunhas para oitivas, de maneira que as oitivas das testemunhas de acusação estão previstas para 13/11 e as de defesa para 14/11. De toda forma, o processo ainda conta com a apresentação das alegações finais e o parecer da comissão julgadora.
Todo o processo abre portas para uma perigosa prorrogativa: a utilização do Regimento Disciplinar remanescente da Ditadura Empresarial-Militar originário do decreto-lei 52.906/1972 para a defesa de interesses de atores externos ao corpo universitário. A solidariedade ao povo palestino não se configura como antissemitismo e é inadmissível a postura da Reitoria da USP, que persegue o seu corpo discente em defesa da manutenção de laços com o sionismo e o Estado colonialista de Israel.