'Uma terrível invenção e o Partido: exauridas reflexões' (Mariana Pedroso)

Se a condição “ser” uma pessoa da classe trabalhadora já é extenuante sob o capitalismo, ser uma pessoa da classe trabalhadora racializada não-branca se torna um pior pesadelo muitas vezes.

'Uma terrível invenção e o Partido: exauridas reflexões' (Mariana Pedroso)
"A subjetividade do racializado não-branco é perpassada pelas objetividades que compõem o coletivo do Partido, sendo este majoritariamente composto por pessoas da pequena-burguesia ou classe média e brancos, ainda."

Por Mariana Pedroso para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

“Raça”, conceito que não é biológico e sim social, abriu uma fenda na existência humana, sendo um dispositivo tático imprescindível à estratégia do colonizador. Quando faço uso da palavra “colonizador”, faço jus à raça “branca”, assim autoproclamada e reconhecida, que se diferencia das demais. O branco colonizador chegava a caracterizar os “vermelhos” (povos indígenas da América) como “geniosos, despreocupados e livres”, os “amarelos” (povos asiáticos) como “severos e ambiciosos” e os “negros” (povos africanos) como “ardilosos e irrefletidos”, enquanto eles mesmos eram “ativos, inteligentes e engenhosos”. A “biologização” como justificativa da opressão.

Essa explanação serve para termos noção da caracterização densa das “raças”, que consolidou um sistema de separação entre a “verdadeira” humanidade – ou seja, os brancos – e o “restante”. Com ciclos de violência, destruição cultural e territorial dos povos originários, expropriações, e mais atrocidades já conhecidas em nome do acúmulo de riquezas e recursos naturais, este hoje expresso no capital, nós, pessoas racializadas não-brancas sofremos as consequências desastrosas deste sistema que vigorou “até ontem” no tempo da História, e que apenas acabou por interesses econômicos, e não por “piedade” aos nossos ancestrais.

Nossa base teórica é de que o racismo, ou seja, a expressão explícita e material da dominância, principalmente do branco, sobre as outras raças em forma de opressão e o capitalismo, sistema socioeconômico regido pela classe dominante (burguesia) versus a classe dominada (proletariado), estão intrinsecamente ligados. Apesar de, com o passar do tempo, termos recentes lutas contra o racismo intensificadas e o movimento de resistência dos próprios povos racializados não-brancos ao longo da História, estes ainda não foram suficientes para a extinção do mesmo. A extinção do racismo só virá junto com a extinção do capitalismo – e esta se faz nossa maior e principal tarefa revolucionária.

Os povos racializados não-brancos ainda sofrem um massacre terrível dia após dia, seja literalmente, ao sermos executados por polícias, pessoas de extrema-direita, situações de guerra provocada etc., ou através de ofensas, xingamentos, injúrias e atos violentos no geral, situações que nos ferem psiquicossomaticamente, perpetuando a opressão e coadunando com a exploração capitalista sobre a classe trabalhadora. Se a condição “ser” uma pessoa da classe trabalhadora já é extenuante sob o capitalismo, ser uma pessoa da classe trabalhadora racializada não-branca se torna um pior pesadelo muitas vezes.

Coloco em jogo no debate a questão de ser racializado não-branco dentro das organizações políticas, aqui, obviamente, destacando o PCB. Sob a minha visão, todas as opressões que se desdobram no sistema capitalista também podem e acabam se desdobrando no interior do Partido, já que ainda não vivemos com a bandeira da Revolução Brasileira hasteada, portanto, não é novidade ouvir que um “camarada” reproduziu preconceitos e opressão internamente, explicitando que ninguém está blindado de situações como esta.

A questão aqui não é ser moralista ao ponto de “condenar à guilhotina” quem comete estes “erros” dentro do Partido, mas será que temos o debate tão amadurecido ao ponto de colocar em processo de “cessar-fogo” essas reproduções? Será que os “camaradas” brancos estão realmente se importando com notar seus “deslizes” e de fato corrigi-los e bani-los, ou a verdadeira preocupação é esconder para que ninguém perceba a “poeira debaixo do tapete”? Passamos do tempo de admitir racismo dentro do Partido, mesmo que em suas mais sutis notas.

Ao ler o parágrafo anterior, parece até que “peguei leve” com essa caracterização, já que com a ascensão da luta antirracista nas últimas décadas e o aumento da produção de conteúdo sobre as pautas do Movimento Negro, em maioria, muito tergiversa o debate no interior do Partido, mas pouco, muito pouco, são debatidas com o nível de qualidade e atenção que necessitam. A subjetividade do racializado não-branco é perpassada pelas objetividades que compõem o coletivo do Partido, sendo este majoritariamente composto por pessoas da pequena-burguesia ou classe média e brancos, ainda.

Mas o que de fato imprime na realidade essa composição? Este “quadro” “enfeita” uma “parede” que muito nos interessa que é a classe trabalhadora. A classe trabalhadora é feita de pessoas racializadas, brancas ou não, mas que carregam consigo histórias e vivências dignas de serem ouvidas e acolhidas em meios terapêuticos, mas, principalmente, na coletividade, e a ferramenta Partido Comunista deve ser nisto vanguarda. As pessoas, ou seja, a classe sofre encapsulada, numa escotilha que pode explodir a qualquer momento, provocando ainda mais sofrimento biopsicossocial, tanto para o militante quanto para a família e amigos próximos.

Para evitar esse tipo de movimentação precisamos tecer redes fortes e convictas em prezar pela educação da militância e sobre o letramento racial dos camaradas, franjas e pessoas próximas destes. Precisamos, sim, fortalecer nossa política interna sobre a correção e orientação de procedência com casos de racismo e outras opressões praticadas internamente ao Partido, que ferem a integridade biopsicossocial dos militantes. Sem promover qualquer tipo de “caça às bruxas” tal qual o CC do PCB “formal” fez, também devemos propagandear e agitar sobre o antirracismo anticapitalista.

Com essa contribuição, espero poder alertar os camaradas e focar que, se precisamos de revolução, precisamos de corpos humanos saudáveis, bem e firmes. Sem romantização da militância e sem “tokenismo” com os camaradas racializados e das mais diversas composições corporais, mas se trata de implicarmos uma força realmente radical sobre a pauta racial dentro do Partido, de forma sistemática, sistematizada e constante. Resistiremos! Viva à Reconstrução Revolucionária do PCB!