'Uma Tarefa Imediata: seguir o exemplo de Nelson Werneck Sodré' (J.P. Guarnieri)
O mais perfeito conhecimento da estratégia e tática leninistas é estéril se não estiver conectado à realidade do nosso país. Este guia é, assim, uma ferramenta indispensável para a nossa organização.
Por J.P. Guarnieri para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário
O período que sucedeu à fundação do Partido Operário Social-Democrata Russo foi marcado por publicações de Lênin que versavam sobre as tarefas imediatas dos socialistas russos (àquela época, a nomenclatura usada era “social democratas”, como se pode ver no nome do partido. Para evitar confusões com o sentido atual da social-democracia, eu me referirei a eles usando os termos “socialistas” e “socialismo”). Naquele momento de transição, Lênin buscava visualizar aquilo que o partido deveria se tornar para conseguir armar a derrubada do czarismo e a tomada do poder pelos socialistas. Estes escritos nos são particularmente úteis justamente por evidenciarem a concepção de Lênin de como forjar um partido revolucionário forte, capaz de atuar de maneira unificada em um território geograficamente extenso e culturalmente diverso.
Neste texto, eu gostaria de me deter em um dos artigos publicados por Lênin na Gazeta Operária durante este período: Nossa Tarefa Imediata, publicado na segunda metade de 1899. Neste artigo, Lênin disserta sobre o caráter amador da atividade socialista russa. Lênin enxergava na organização um problema que nos é muito conhecido: o caráter local da atividade socialista, que por aqui nós chamamos de “federalismo”. Eis o diagnóstico do estado da atividade socialista dado pelo dr. Lênin:
“As sementes do ideal social-democrata foram espalhadas por toda a Rússia; [. . .] O que falta agora é unificar esses trabalhos locais no trabalho de um único partido. Nosso principal obstáculo, cuja superação exigirá nossa devoção total, é o raso caráter ‘amador’ do trabalho local. Por causa desse caráter amador muitas manifestações do movimento operário permanecem puramente como eventos locais e perdem consideravelmente sua importância como exemplos para o todo da social-democracia russa, como palco de todo o movimento operário russo. Por causa desse comportamento amador, a consciência da comunhão de interesses ao redor da Rússia não está suficientemente inculcado na cabeça dos operários, eles não ligam suficientemente suas lutas ao socialismo russo e à democracia russa. Por causa desse comportamento amador as diferentes visões dos camaradas sobre questões práticas e teóricas não são abertamente discutidas em um jornal central, elas não servem para elaborar um programa comum e desenvolver táticas comuns para o Partido, eles estão perdidos em uma vida rasa de grupos de estudo ou caem no exagero despropositado de peculiaridades locais e da sorte.”
Aqui, entendemos o papel que a imprensa partidária tem na concepção leninista de partido. Mais do que material de formação, ela é um instrumento que permite que cada experimento local na atividade socialista seja assimilado e analisado pelo conjunto da militância, o que permite que se discuta de maneira conjunta da organização e da tática do partido. Este primeiro passo já foi dado com a criação da tribuna permanente de debates, um novo passo será dado com o lançamento do nosso jornal, previsto para acontecer nos próximos meses.
Devemos, entretanto, entender que a criação destes órgãos de imprensa partidária são apenas o início. É preciso qualificar o conjunto da nossa militância para a participação plena nas discussões de organização e de tática que devem acontecer nestes órgãos. Voltemos para o texto de Lênin:
A social-democracia russa fez muitas críticas a teorias revolucionárias e socialistas; não se limitou ao criticismo e a teorização; mostrou que seu programa não paira no ar, mas vai ao encontro de extensivos movimentos espontâneos em meio ao povo, isto é, em meio ao proletariado das fábricas. Deve, agora, dar o seguinte, muito difícil, mas muito importante, passo – elaborar uma organização do movimento adaptada às nossas condições. A social-democracia não se limita simplesmente a servir ao movimento operário: ela representa ‘a combinação do socialismo com o movimento operário’ (para usar a definição de Karl Kautsky, que ecoa as ideias essenciais do Manifesto Comunista); a tarefa da social-democracia é trazer ideais socialistas definidos ao movimento espontâneo da classe operária, conectar esse movimento com convicções socialistas, que devem atingir o nível da ciência contemporânea, conectá-lo com a luta regular pela democracia como meio para atingir o socialismo – em poucas palavras, fundir esse movimento espontâneo em um todo indestrutível através da atividade do partido revolucionário. A história do socialismo e da democracia na Europa Ocidental, a história do movimento revolucionário russo, a experiência do nosso movimento operário – esse é o material que devemos dominar para que possamos elaborar uma organização pertinente e táticas pertinentes para nosso Partido.”
Reparem nos negritos que adicionei ao texto. Lênin frisava a necessidade de se entender não apenas a história do socialismo na Europa Ocidental, onde ao tempo de Lênin a luta socialista parecia estar melhor desenvolvida, era preciso unir esse conhecimento com a história do movimento revolucionário russo, que ainda que não fosse marxista já tinha décadas de experiência na luta contra o contra o czarismo. Uma última palavra de Lênin antes de partir para meu ponto central, desta vez tirada de “As Tarefas dos Social-Democratas Russos”, de 1897 (e, portanto, anterior à fundação do PSODR):
“Alonguemo-nos, portanto, um pouquinho na descrição de ambos aspectos das atividades práticas da Social-democracia Russa. Comecemos pela atividade socialista. [. . .] As atividades socialistas dos Social-democratas Russos consiste em espalhar por meio da propaganda os ensinamentos do socialismo científico, em espalhar entre os trabalhadores um entendimento apropriado do sistema social e econômico atual, suas bases e seu desenvolvimento, um entendimento das várias classes que há na sociedade russa, suas inter-relações, da luta entre essas classes, do papel da classe trabalhadora nessa luta, da sua atitude [da classe trabalhadora] frente às classes em declínio e em desenvolvimento, frente ao passado e ao futuro do capitalismo, um entendimento da tarefa histórica da social-democracia internacional e da classe trabalhadora russa.”
Mais uma vez, Lênin busca conectar o conhecimento do socialismo científico ao conhecimento científico do desenvolvimento histórico da sociedade e da economia russas. Coerente com suas convicções, Lênin se debruçou ele próprio neste estudo, publicando em 1899 “O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia”. A obra foi produzida em três anos, durante os quais Lênin entrou em contato com mais de 500 fontes, no geral alugadas em bibliotecas espalhadas pelo país e enviadas a ele por correio.
Ninguém consegue espalhar um conhecimento que não tem. Precisamos, todos, nos tornar especialistas em Brasil, tal como Lênin se tornou um especialista em Rússia. Este não deve ser apenas um esforço individual de cada militante, mas uma empreitada coletiva, organizada através da nossa imprensa partidária para produzir um material bibliográfico que possa guiar os estudos individuais.
Algo assim já foi feito antes por um intelectual gigantesco de nosso campo: em 1945, Nelson Werneck Sodré publica o livro “O que se deve ler para conhecer o Brasil?”, trabalho que revisaria e expandiria ao longo das próximas duas décadas. Se trata, basicamente, de um índice de bibliografia separado em seções. Este livro é, em minha opinião, de valor imenso devido aos cuidados que orientaram sua produção.
Primeiro, se trata de um livro escrito para leigos. Um guia de estudos que se volta apenas para o estudo de acadêmicos da área perde nove décimos de sua potência ao dialogar apenas com um segmento restrito de nosso povo. Nas palavras do próprio autor, “Nem sempre a obra mais inteligente é a mais útil a quem começa a conhecer, a quem desconhece o assunto”, de modo que a obra prioriza fontes que são, por vezes, mais superficiais.
Segundo, ele priorizou fontes de fácil acesso. De nada adianta para o grosso do povo brasileiro recomendar fontes esgotadas, de custo elevado ou que precisam ser importadas do exterior. Se queremos que este material sirva de guia para a educação da classe trabalhadora, precisamos priorizar material compatível com o poder de compra do proletariado brasileiro.
Terceiro, ele não buscou em momento algum criar a ilusão de imparcialidade na escolha. O livro tem um objetivo político explícito, tendo como intuito a formação de uma “bibliografia indispensável à formação da consciência nacional”, como consta na contracapa da 3ª edição.
Devemos tomar este trabalho de Nelson Werneck Sodré como modelo. Tal obra serviria, primeiro, para formar o conjunto de nossa militância na história de nosso país, desenvolvendo o conhecimento que Lênin dizia ser necessário espalhar e permitindo que ele seja facilmente apresentado a todos os trabalhadores com quem entrarmos em contato. Mas também poderia se converter em uma fonte de radicalização para quem entre em contato ela de maneira independente, ao inculcar no leitor a ideia de que nosso país é assim por processos históricos determinados movidos pela luta entre as diferentes classes que existiram e existem em nosso país.
Podemos (mas não precisamos) tomar como ponto de partida as seções que já existem no livro de Sodré, adicionando outras que sejam necessárias para o nosso tempo (por exemplo, seções sobre a ditadura militar, sobre a redemocratização e sobre os governos petistas) para os nossos objetivos políticos (por exemplo, seções sobre o materialismo histórico-dialético e sobre a história do movimento operário brasileiro).
Para a criação desta obra, acredito que seja preciso criar uma comissão de especialistas para a elaboração desta bibliografia. Esta comissão de especialistas não deve ser formada apenas por historiadores, já que o livro não deve ser, somente, sobre história: na obra de Sodré, há seções, por exemplo, sobre cultura e sobre ciência, que acredito terem papel importante na disputa em outros campos do saber.
A publicação deve ser feita também em formato de livro. Acredito que seja uma boa ideia tê-la disponível online de maneira gratuita, mas a venda de livros, além de possível fonte de receita, garante maior perenidade ao material em comparação apenas à publicação online.
O mais perfeito conhecimento da estratégia e tática leninistas é estéril se não estiver conectado à realidade do nosso país. Este guia é, assim, uma ferramenta indispensável para a nossa organização. O Brasil não é, mas deve ser para amadores, e cabe a nós fazer este trabalho de mediação para que todo brasileiro possa se tornar um conhecedor da própria história e do papel que tem em seu rumo futuro.