'Uma política nacionalizada de formação' (Jaqueline Tavares)

Mais do que uma erudição acadêmica, um didatismo alternativo ou uma orientação manualesca, a formação política é o aspecto da organização revolucionária capaz de sistemática e deliberadamente amplificar a capacidade de atuação política do conjunto da sua militância.

'Uma política nacionalizada de formação' (Jaqueline Tavares)
"É necessário, então, que tenhamos um entendimento mínimo do que a formação política e quais os conjuntos de tarefas e resoluções que tiramos dessa compreensão para formular nossa política formativa do próximo período. Esse é o propósito desta tribuna."

Por Jaqueline Tavares para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

As críticas ao Sistema Nacional de Formação Política da UJC e às dificuldades formativas de todo o complexo partidário são temas recorrentes de tribunas e debates em reuniões. A demanda um tanto genérica por “mais formação” e a reclamação de que “falta formação” são críticas frequentes, que buscam em uma ideia um tanto quanto vaga de instrução.

A pouca precisão dessas críticas e demandas vem, a meu ver, da própria da indefinição da nossa concepção de formação e da artesanalidade da nossa política formativa. Ainda que a artesanalidade seja algo que corte vários aspectos da nossa militância, sendo causa e consequência de um estágio ainda muito incipiente de uma organização que se pretende revolucionária, no caso da formação essa artesanalidade assume um sentido particularmente cíclico.

A falta de política formativa transforma o recrutamento e a formação de quadros em um processo completamente desregulado, dependente mais de aptidões individuais, amiguismo e sorte do que de planejamento, deixado à mercê da reprodução de todas as opressões e estereótipos possíveis. A falta de sistematização dos aprendizados básicos da militância, da descrição das tarefas especializadas e de seus princípios norteadores faz com esses tenham que ser sempre redescobertos, uma reinvenção da roda que gasta tempo e energia militante que poderia ser despendido no avanço desses mesmos acúmulos.

É necessário, então, que tenhamos um entendimento mínimo do que a formação política e quais os conjuntos de tarefas e resoluções que tiramos dessa compreensão para formular nossa política formativa do próximo período. Esse é o propósito desta tribuna.

Mais do que uma erudição acadêmica, um didatismo alternativo ou uma orientação manualesca, a formação política é o aspecto da organização revolucionária capaz de sistemática e deliberadamente amplificar a capacidade de atuação política do conjunto da sua militância, dando os subsídios necessários para os amplos debates e, ao mesmo tempo, especializando seus quadros de forma a torná-los altamente capacitados em certas tarefas, criando uma organização de trabalho profissionalizado e enraizado nas massas, de forma que se a organização tem um bom trabalho formativo, esse não se limitará às suas fronteiras e se fundirá no conjunto da atuação da classe.

Isso não deve ser reduzido à lógica simplista e não dialética de oposição entre formação prática e teórica, buscando um meio termo na frequente falsa oposição de que nosso problema estaria na falta de um ou de outro - que nós não temos base teórica para debater certos temas e isso seria a origem dos nossos problemas, ou que nós seríamos um “grupo de estudos” e isso seria um desvio academicista. Englobando ambos os aspectos, indo para além deles e entendendo-os como parte de um todo, a organização deve ser responsável pela socialização dos acúmulos e pela criação de espaços de estudo e discussão, de prática cotidiana, teste, aprendizagem e erro, entendendo isso como uma tarefa coletiva, e não deixando os militantes soltos para aprenderem tudo sozinhos por si e aqueles que melhorem sucederem terem seu mérito reconhecido por isso.

A política de formação de quadros aqui deve ser nacionalizada, entendendo como  responsabilidade do todo da organização garantir o desenvolvimento pleno, a socialização dos acúmulos e o acompanhamento das tarefas mais básicas aos debates mais complexos da militância de todo o país. Se temos estados com uma militância muito jovem que ainda não apreendeu as tarefas básicas da organização, se temos núcleos pequenos sem experiência e isolados geograficamente, se temos militantes que não leram o Manifesto Comunista, é responsabilidade da política formativa da organização que nossos acúmulos sejam socializados, que os militantes sejam auxiliados e integrados, e não obrigação de locais específicos e indivíduos isolados descobrirem por si a melhor forma de desempenhar suas tarefas.

A formação política deve ser, ainda, integrada ao conjunto das nossas atuações de massas e profundamente orgânica à conjuntura, nossas táticas e objetivos estratégicos revolucionários. A formação política não é um fim em si mesmo, apenas uma forma de colocar nossa militância para ler, debater e praticar, mas conectada ao próprio sentido da existência do partido: a construção de uma vanguarda revolucionária da classe, o trabalho entre as massas trabalhadoras, a gradual construção de um processo revolucionário, a tomada do poder e a construção do socialismo, tendo em vista as metas de longa duração sem perder os olhos das demandas imediatas do nosso estado atual.

O sentido político dessa formação não deve cair, porém, uma espécie de utilitarismo político, que descarta debates que pareçam em um primeiro momento “inúteis”, porque não são aplicáveis diretamente à revolução. Nem deve pular etapas, presumindo certos conhecimentos e habilidades como dados e deixando para trás militantes que não correspondem à expectativas idealistas que podemos ter da nossa própria militância, entendendo que o desenvolvimento do conjunto do corpo militante como todo, sua capacidade de atuação e seu lastro político, rumo aos nossos objetivos estratégicos, é mais relevante do que indivíduos excepcionais e os trabalhos instáveis que deles dependem.

A partir desse debate mais amplo, considero que existem três eixos para uma Política Nacional de Formação una e integral para todo o complexo partidário. A forma de aplicação dessa política pode ser destrinchada depois, mas é fundamental a orientação e centralização dessas tarefas a nível nacional se dê em uma sub-instância especializada (podemos chamar de comissão, pasta ou o que preferirem), com trabalho contínuo e com debate constante e síntese entre os camaradas especializados em orientar, centralizar e acompanhar essas políticas, e a equivalente réplica dessa estrutura à nível local de direção intermediária. Quanto à separação das partes do complexo (pensando se teremos juventude e coletivo), creio que a proposta possa ser adaptada a depender do caminho tomado.

Eixo I: Acompanhamento e subsídio para o desenvolvimento do trabalho militante por todo o país:

Poderíamos dizer, no limite, que essa é a tarefa de toda instância ou órgão de direção nacional - e de certa forma é -, mas o que cabe à política formativa nacional são aqueles aspectos de orientação básica e nivelamento do desenvolvimento da atividade militante, principalmente ao que toca novos trabalhos ou locais incipientes, com uma militância pequena ou pouco experiente.

Através do acompanhamento das CRs e CLs (e dessas respectivamente nos núcleos que são responsáveis), garantir o funcionamento mínimo de dispositivos como reuniões, recrutamento e assistências, o entendimento básico de nossas tarefas e o fomento das discussões políticas. Entender o nível médio de desenvolvimento da militância, seu grau de atuação, suas dificuldades centrais.

Essa é uma tarefa geralmente vinculada à organização, principalmente quanto à fundação de organismos, orientação geral e alocação de militantes. Se essa tarefa for só organizativa, pode haver um vácuo depois que os organismos estão estabelecidos, e negligência ou de ausência de síntese diante dos problemas apresentados. Por isso é importante também um olhar formativo sobre o conjunto dos nossos organismos.

Isso não significa entender que iremos até cada núcleo saber que texto cada um leu, mas uma noção geral é necessária mesmo para que as mais básicas tarefas de caráter mais especificamente formativo sejam desenvolvidas. Núcleos que não fazem reuniões não discutem textos; militantes sobrecarregados com tarefas gerais não pensam em especialização e não auxiliam na formação de novos camaradas; células sem local de atuação no movimento de massas não recrutam e assim por diante.

Como nas outras propostas, os detalhes de como colocar em prática esses eixos é algo que podemos discutir posteriormente, mas chamo atenção apenas para um aspecto. Não acho que o combo circulares + assistência seja suficiente para o desenvolvimento desse acompanhamento. O excesso de circulares, sem que essas orientações criem vida, sejam lidas e debatidas, não se percam no excesso de emails e na correria do cotidiano, pouco ajudam em termos orientativos. As assistências costumam ser uma tarefa que sobrecarrega militantes, não os especializa e coloca na dependência de uma única pessoa uma série de comunicações.

Embora ambos os recursos sejam sim importantíssimos, devem ser usados de forma que gerem eficácia comunicativa, não ruído. E no sentido de tarefas especializadas cuja nossa atuação é incipiente como formação, isso pode demandar outros recursos - contato direto entre o órgão nacional e os equivalentes locais, planejamento e formação de quadros formativos, auxílio direto no desenvolvimento de trabalhos em estágio inicial e assim por diante, para além das ações necessárias para melhorar mesmo o uso das assistências e das circulares.

Eixo II: Educação Partidária

Estabelecimento de uma base teórica militante mínima, levantamento de bibliografias complementares e disponibilização de material para estudo de temas importantes, criação de cursos, acompanhamento no desenvolvimento de formações, territorialização e escolarização da formação teórica buscando a uniformização mínima da base comum dos militantes.

Esse eixo é o que mais se aproxima do que temos hoje no SNFP, que se apresenta sobretudo como um currículo. Esse currículo, porém, é incompleto e não corresponde às necessidades e capacidades da nossa militância atual. Peca pela falta de referências secundárias sobre os temas que não são seus eixos centrais, têm nos seus textos centrais lacunas absurdas e materiais que estão longe de básicos, fundamentais ou mesmo leninistas. Não orienta a militância na construção dos próprios debates. Isola às discussões ao nível de núcleos. Coloca um ritmo irrealista para a realização das formações. Ignora aprendizados complementares necessários à própria apreensão do conteúdo político dos ciclos básicos.

A nova reorientação da formação em torno de leituras e debates deve tanto repensar os critérios ideológicos dos seus eixos orientativos, as ferramentas formativas pedagógicas e os aspectos organizativos da formação. Deve não apenas colocar uma lista de textos, mas trabalhar esses textos de forma progressiva, articulando em um verdadeiro currículo, que sirva de orientação aos militantes quanto à formação mínima necessária no marxismo leninismo e que guie os caminhos a serem traçados a partir desse tronco. Que traga exemplos e subsidie a construção dos espaços formativos. Que auxilie os camaradas a compreender os aspectos sociais que atrapalham ou facilitam o estudo intelectual de diferentes militantes, e os auxilie a reverter essas dificuldades.

Grosso modo, esse documento orientativo - a ser trabalhado com as Secretarias de Formação de Coordenações à nível local e regional - pode ser estruturado resumidamente nos seguintes aspectos:

  1. Ciclo Básico de Formação Militante: Temas e textos fundamentais para a formação marxisa, basilares em termos de método e abordagem do marxismo. Obrigatório à toda militância.
  2. Ciclo Complementar de Formação Militante: Temas e textos fundamentais para a complexificação do entendimento marxista da realidade concreta, materializando em debates históricos e sociais os pontos já abordados anteriormente. Obrigatório à toda militância.
  3. Bibliografia Complementar, textos auxiliares e dicas de leitura sobre os temas de ambos os ciclos e além.
  4. Orientação quanto à organização de reuniões de formação, estrutura organizativa, controle de presença, formatos de reunião e além, orientando à priorização de formações presenciais, locais (extranucleares, quando possível) e com uma dinâmica qualitativa, mais do que quantitativa. Os calendários formativos devem se adequar à realidade local e priorizar debates sólidos, e garantir que todos os camaradas possam participar, ter tempo para ler e se preparar. Devem ser pensados em escala anual.

Ainda que as sínteses, orientações e organização geral da tarefa sejam responsabilidade da instância nacional de formação, a ideia que as propostas quanto à composição de bibliografias, seleções de textos e temas, adequações em calendário e organização, sugestões de dinâmicas e assim vai sejam mais interativas possíveis, no sentido de que todo o conjunto da militância possa contribuir na construção, ainda que sujeito à aprovação e adaptações necessárias de forma a deixar a proposta coesa.

Eixo III: Especialização do trabalho

A especialização do trabalho é o eixo mais difícil de debater, porque ele depende diretamente de outras questões, como a nossa concepção de partido, de trabalho militante, das tarefas que consideramos fundamentais e de qual nosso objetivo. Não faz sentido falarmos em especializar o trabalho se não tivermos claramente quais são as nossas tarefas, o papel de cada militante na sua organização e a combinação entre capacidades gerais e específicas que queremos que nossos camaradas desenvolvam.

Isso não deve nos impedir de buscar definir a especialização, mas principalmente em um momento como agora, de ruptura, de fundação de uma nova organização, que muito do que fazemos está sendo colocado em xeque, não podemos perder de vista o sentido político dessa especialização.

Trago um exemplo prático. O camarada Machado mandou uma excelente contribuição sobre secretarias e secretariado, em que debate e coloca que questão a divisão que temos hoje, uma divisão que aparece muitas vezes como sagrada e imutável - visão que eu mesma já tive. Independente de concordar com o que o camarada coloca, a pergunta sobre a existência dessas formas organizativas orienta a forma que pensamos a especialização. Afinal, vamos especializar camaradas em finanças se finanças for uma área da militância que entendemos como dotada de particularidades, da mesma forma que a formação de figuras públicas como algo específico se entendermos que nem todos os militantes serão figuras públicas. Ou ainda, pelo contra exemplo, eu nunca vi um processo de especialização de camaradas na construção de empresas júnior universitárias, porque nossa militância não atua em empresas júnior.

Mas partindo da nossa situação atual, e estando plenamente aberta a discussões diante das mudanças organizativas que nosso congresso vai trazer, alguns pontos centrais podem auxiliar em uma orientação geral. Pensarmos a especialização a partir da formação geral não especializadas, no subsídio mínimo que o conjunto da militância precisa ter (e que pode ser pensado a partir do ponto um), uma especialização do onde e do o que.

A especialização do onde se refere ao local de atuação, seja ele geográfico ou setorial. Se trata de dar aos militantes contexto e embasamento para sua atuação. Isso deve vir tanto da sua atuação prática nos espaços, com debates políticos do sentido dessa militância, até a socialização de acúmulos que permitam que esses camaradas tenham acesso ao que já foi feito nos termos daquele trabalho. Militantes organizando uma ocupação não devem descobrir sozinhos o que fazer. Da mesma forma, a militância que atue em determinado território deve entender e ser socializada nas leituras que a organização já tem sobre aquele espaço.

A especialização sobre o que se refere ao conjunto de tarefas em que militantes específicos são particularmente versados. Isso demanda uma ampla formação política prática básica, que toca tarefas e um arcabouço político que todo militante deve desenvolver ao longo da sua militância, e tarefas nas quais os camaradas são excepcionalmente bons, nas quais serão responsáveis não apenas por tocar, mas por sistematizar e socializar acúmulos, orientar trabalhos, dirigir camaradas, ensinar a militância, formular e profissionalizar as tarefas naquela área.

O aprofundamento dessa especialização tem relação direta com o enraizamento dos nossos trabalhos de base com o desenvolvimento temporal deles. Uma organização com um jornal sólido, por exemplo, consegue formar com muito mais subsídio redatores e propagandistas. Mas é preciso camaradas focados no trabalho jornalístico para que esse jornal exista. É o trabalho que forma a militância, mas é também a militância em formação que constrói nosso trabalho.

Para potencializar essa dinâmica, a chave orientativa é não apenas dizer quais são os caminhos de especialização e destacar os camaradas para tal, mas entender o funcionamento dinâmico da formação pelo trabalho, a prioridade desses trabalhos e o sentido temporal dessa lógica de quadros. Incompatível com o produtivismo, o falso senso de urgência e a artesanalidade excessiva, demanda que entendamos o desenvolvimento dos nossos quadros em períodos mais longos.

Essa tribuna não esgotou detalhes de execução e propostas, mas coloca algumas balizas iniciais para pelo menos tentarmos definir o que é política formativa. Ainda, esses não são os únicos eixos importantes; existem outras tarefas que também são parte da formação política, mas que não cabem como objetivos centrais no momento, seja pelas prioridades que devemos traçar, que são necessárias ao desenvolvimento de tarefas mais avançadas, seja porque devemos ter prioridades que torne nosso planejamento realizável, não apenas uma idealização que nos frustramos ao não atingir.