'Uma breve resposta ao camarada Valen, e dois problemas sobre delegados natos' (Thandryus Augusto)
O problema é que o argumento pode levar a duas outras conclusões. A primeira delas parte de outra constatação da realidade: não são apenas pessoas da CR que têm sobrecarga. Uma pessoa que cuide de uma criança, trabalhe e milite vai ter todas as dificuldades e sobrecargas parentais e da militância.
Por Thandryus Augusto para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Valen recentemente publicou uma tribuna onde elabora uma certa defesa da existência de delegados natos. Digo “certa defesa” porque em nenhum momento essa defesa é feita de maneira clara, e, como veremos, os argumentos apresentados permitiriam diversas outras conclusões.
Em primeiro lugar, ele aponta de forma correta a normativa de pessoas da CR acompanharem as etapas de base. Isso se dá através da assistência. A partir disso, ele então comenta a respeito da sobrecarga que integrantes da CR possuem devido ao acúmulo de tarefas da militância e da vida pessoa. Infelizmente, essa realidade é indiscutível. A partir disso, então, a conclusão seria de que, para garantir a isonomia do Congresso e a participação de pessoas sobrecarregadas da CR, seria necessária a existência de delegados natos uma vez que essas pessoas não teriam possibilidade material de participar concretamente das etapas de base.
O problema é que o argumento pode levar a duas outras conclusões. A primeira delas parte de outra constatação da realidade: não são apenas pessoas da CR que têm sobrecarga. Uma pessoa que cuide de uma criança, trabalhe e milite vai ter todas as dificuldades e sobrecargas parentais e da militância; alguém que tenha duas ou três cargas de trabalho e serviço doméstico também vai estar sobrecarregada; pessoas em fechamento de suas pesquisas, pessoas em ocupação, pessoas ligadas à terra, todas estas questões existem. Seria necessário então expandir a discussão sobre delegados natos para essas pessoas? Um pai ou uma mãe poderia ser delegado nato? Vamos fazer uma régua de sobrecarga? Vemos assim que o argumento é insuficiente.
Da mesma forma, poderíamos ir no caminho contrário e dizer que “camaradas da CR já têm sobrecarga devido à sua posição dirigente e, portanto, deviam ser incentivados a não serem delegados para não acumular mais uma função”. Essa conclusão também estaria correta, mas com certeza pode causar uma certa estranheza. Essa estranheza, no entanto, parte de dois vícios organizativos que carregamos do velho PCB e que toda essa discussão trouxe à tona: o burocratismo e a desconfiança das bases.
Em um Congresso, os acúmulos das células e das bases serão levados e posto à prova, serão discutidos. Não são acúmulos individuais, até porque um Congresso que se resumisse à disputa de posições individuais (disputa de egos) seria tudo menos um Congresso de um Partido Comunista digno desse nome. Como bem lembra Amílcar Cabral, ninguém é insubstituível:
Devemos evitar a obsessão de alguns camaradas de que tudo estará estragado, tudo irá acabar se eles deixarem a posição que estão. Ninguém é indispensável nesta luta; todos somos necessários, mas ninguém é indispensável. Se alguém precisar ir embora e acaba indo e então a luta fica paralisada, é porque essa luta era inútil. O único orgulho que temos hoje em dia, que eu tenho, é a certeza que, depois do trabalho que tivemos, se eu tivesse que ir embora, ser parado, morrer ou desaparecer, existiriam aqueles aqui no Partido que poderiam continuar a tarefa do Partido. Se isso não acontecesse, então que desastre; nós não teríamos conquistado nada. Uma pessoa que tiver enquanto conquista algo que somente ela pode dar prosseguimento não fez nada ainda. Uma conquista vale a pena, somente quando pode ser uma conquista de muitos, e se existem muitos que conseguem tomar essa conquista e sustentá-la, mesmo que um par de mãos seja levado embora.
Mas existem camaradas que tem obsessões que se eles tiverem que sair de sua posição, tudo estará arruinado. Essa é uma obsessão que temos que combater, que devemos dar um fim. Isso sem mencionar os casos de outros camaradas que pensam, que quando são transferidos, eles irão morrer, porque eles já estabeleceram todas as condições de trabalho em um local e são chamados para atuar em outro. Que cegueira! Como se a nossa terra fosse apenas o seu cantinho! Isso demonstra a falta de consciência de uma razão real, o objetivo e as características de nossa luta.
Dessa forma, cabe a pergunta: qual a necessidade de uma pessoa da CR participar do Congresso? Obviamente teríamos muitos ganhos com essa participação porque inegavelmente fariam um debate e uma disputa importante, mas a princípio não deve existir nenhum problema também se ninguém da CR participar, uma vez que teríamos outros e outras camaradas igualmente capazes de alavancar o debate. Esse é o cerne da questão, e mostra que o problema sobre delegados natos, ao ver de forma mais aprofundada, não existe.
As células vão fazer suas discussões e acúmulos nas respectivas etapas. Estes acúmulos serão discutidos de forma cada vez mais abrangente com outras células e outras regionais até chegar a uma síntese, o que inclusive impede o federalismo. A delegada ou delegado eleita deve portanto ser a pessoa capaz de melhor formular os acúmulos da própria célula, defender quando necessário e avaliar os novos pontos que invariavelmente surgirão. É necessário ter confiança em nossas e nossos camaradas que as etapas serão conduzidas de forma que tenhamos uma base comum de acúmulos, em que ninguém seja insubstituível e qualquer pessoa poderia cumprir a função de delegada ou delegado de maneira excepcional. É esse o objetivo que devemos ter, inclusive ao entender que o Congresso é por si próprio uma formação.
Delegados natos ajudam nesse objetivo? Ao meu ver, parece que não, uma vez que a própria discussão gira apenas em torno de camaradas dirigentes (e não uma discussão geral sobre sobrecarga, como disse anteriormente). Dessa forma, ao contrário, a forma como a discussão está se dando vai no caminho contrário, que é o de reforçar o burocratismo e inclusive diminuir a rotatividade de cargos de direção.
Está na hora de ativamente superarmos os nossos antigos vícios, e isso não será feito repetindo uma forma organizativa apenas porque ela “dava certo”. No nosso processo enquanto Reconstrução Revolucionária, tudo deve ser passado a limpo, tudo deve ser revisto, e é apenas assim que vamos de fato construir um Partido Comunista capaz de conduzir a Revolução Brasileira e que não caia em todos os erros do passado.