'Um primeiro comentário sobre finanças: política artesanal e política financeira' (Kevin Nering)
Se formos falar de política de fato, precisamos falar de seu desdobramento financeiro e não ter medo de ousar. Ousar e conseguir, impedindo qualquer um que seja de retardar nossos avanços, afinal de contas já basta o capitalismo para tentar nos frear.
Por Kevin Nering para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Devemos agora deter-nos numa questão que certamente já se pôs a todos os leitores: pode estabelecer-se uma relação entre este trabalho artesanal, como doença de crescimento, que afeta todo o movimento, e o «economismo», como uma das tendências da social-democracia russa? Pensamos que sim“ (LENIN, 1902)
Camaradas, pretendo nas próximas linhas desenhar possíveis conexões entre temas que julgo relevantes para o debate nesta tribuna preparatória para o congresso. Julgo relevantes pois é possível ver nestes um dos vários problemas políticos que enfrentamos atualmente, trato aqui sobre o trabalho artesanal e suas implicações nas nossas finanças.
É comum que debatamos a questão do trabalho artesanal em finanças associando ele a uma prática inconsistente, falha, em muitos momentos espontânea e com um objetivo imediato. Não nos faltam exemplos de campanhas financeiras que nascem do nada e tem como objetivo chegar em lugar nenhum. “Lugar nenhum” não por uma ausência de objetivo. Os objetivos geralmente estão muito claros. O que não está claro é o objetivo para além do imediato. O que não está, sequer traçado, é o objetivo político por trás de determinada movimentação, ou melhor, não há um planejamento político financeiro que conduza esse objetivo imediato a uma forma superior, visando sintetizar experiências e constituir estruturas de trabalho profissionalizado que consigam elevar nossa capacidade de atuação no movimento de massas.
Aqui nos encontramos com o passo final do processo, a capacidade de constituir um planejamento político financeiro que vise a elevação de nosso trabalho e que esteja intimamente associado a um planejamento tático e estratégico de nossa organização. Esse tema, contudo, pretendo discorrer em outro momento. Para chegar nisso creio ser importante expor primeiro o que precisamos superar, para aí sim dizer o que de fato podemos querer construir.
O trabalho artesanal financeiro.
“A falta de preparação prática, a falta de habilidade no trabalho de organização são, com efeito, coisas comuns a todos nós, mesmo àqueles que, desde o início, mantiveram inflexivelmente o ponto de vista do marxismo revolucionário.” (LENIN, 1902)
O trabalho artesanal financeiro se define nas atividades que fazemos com maior ou menor grau de planejamento e que visam atingir determinados objetivos pontuais, garantindo ou não seu sucesso, mas tendo um fim em si mesmas. Em geral, o trabalho artesanal é, consequentemente, fragmentado e, logo, economicista, com potencial revolucionário reduzido.
Se constituiu enquanto regra que uma campanha financeira exitosa (ou seja, que gerou lucro) significava êxito em nosso planejamento. O problema era quando dependíamos de outro êxito no mês seguinte, ou não teríamos condições para financiar determinada ação. E mesmo com esse segundo êxito garantido, ainda teríamos que depender de um terceiro, pois algo na conjuntura se alterou e alguma ação emergencial teria que ser executada. Após três êxitos, três repetições de alguma fórmula que conseguimos conceber às pressas, não há dúvidas que algo ocorrerá. Pensar em um quarto movimento que dê certo sai de cogitação, afinal de contas, ninguém mais aguenta vender rifa.
Camaradas, esse é um dos maiores exemplos do nosso fracasso em termos de política financeira, pois além de exemplificar que não temos planejamento nem mesmo a médio prazo, relega os organismos a se sustentarem, se financiarem, terem seu avanço político limitado às suas condições de gerar lucro. Esse problema da política artesanal só enfatiza cada vez mais como partimos de uma perspectiva liberal, no limite meritocrática, de organização. Onde está escrito que um organismo deve produzir seu caixa e usar dele para financiar suas atividades? Ora, os organismos acima devem planejar seu trabalho e financiar os organismos que não tem condições financeiras para atingir nossos objetivos, permitindo a eles que foquem no trabalho, associando este em finanças mas não o limitando o primeiro ao último.
Contudo, esse debate não deve ser tratado de forma moralista ou formalista, não existe mais ou menos culpa em insistirmos em rifas ou outras formas mais espontâneas de finanças, não há erro até que haja condições de existir acerto. O período que estamos vivendo evidencia um ponto de virada entre a possibilidade de acertar e a insistência no erro. Que escolhamos o primeiro caminho e busquemos formas de superar nosso trabalho artesanal.
A alienação do trabalho em finanças.
“Mas, além da falta de preparação, o conceito «trabalho artesanal» supõe também outra coisa: supõe o reduzido alcance de todo o trabalho revolucionário em geral, o não compreender que com base neste trabalho de vistas estreitas não se pode constituir uma boa organização de revolucionários, e, por último - e isto é o principal - supõe tentativas para justificar esta estreiteza de vistas e para a erigir numa «teoria» particular, isto é, supõe o culto da espontaneidade também neste campo.” (LENIN, 1902)
Quando nos perguntamos qual o objetivo de executar uma tarefa financeira encontramos geralmente duas respostas. Uma que aponta o caráter imediato, sendo algo como “para financiar determinada atividade”, e outra que aponta um caráter genérico; “construir a revolução no Brasil”. Não podemos ter isso enquanto resposta. Não por ela estar incorreta em sua essência, no limite, estamos com esses objetivos em mente. Mas qual a função desse dinheiro dentro da construção da revolução? Onde ele se insere dentro de determinada política elencada enquanto tática para determinado setor ou momento histórico? Essas duas tendências, a economicista no primeiro caso, e a idealista[1] no segundo caso, são expressões distintas que bebem do trabalho artesanal a partir do que lhe é possível.
Sobre a principal delas para esse texto, a primeira tendência, está limitada a essa concepção por não ser capaz de associar seu trabalho específico e local a um plano geral, gerando nisso uma dissociação entre o objetivo político final e as pequenas ações que estão sendo feitas. Essa dissociação da função do trabalho financeiro gerará, consequentemente, diversas mazelas. Podemos citar entre elas a ausência de especialização de militantes na área, a elevada quantidade de troca das pessoas que são alocadas em secretarias de finanças dos organismos, a exaustão pela repetição incessante de tarefas para si injustificadas, por fim, a completa alienação entre o trabalho financeiro e a construção da revolução socialista.
Um exemplo ilustrativo que me valho no debate desse tema é o seguinte: todos os anos nos revestimos de ideias sobre como executar campanhas financeiras no carnaval, sempre planejamos vendas ou intervenções das mais diversas formas, passa ano e o que aperfeiçoamos é a quantidade de itens que vendemos, gerando uma maior entrada financeira. É notável que isso se torne algo mais cultural do organismo (em termos de hábito) e que perca a sua justificativa de ser quando outra coisa tomar o seu lugar, ou seja, quando não dependermos mais dessa tarefa específica (visto que o dinheiro estará entrando de outra forma). O que se perde nesse processo é o potencial engavetado por trás de uma tão singela iniciativa. Vejam, camaradas, por que uma campanha financeira de venda de cervejas no carnaval não pode ser o embrião de um bloco carnavalesco próprio, com estrutura de vendas própria, mas com uma função para além de si mesma? Por que essa tarefa tão embrionária de finanças está dissociada de um planejamento geral que leve em conta a questão de uma tática de atuação política junto ao movimento cultural brasileiro? Claro, podemos dizer que há iniciativas que evidenciam que isso é possível, mas pergunto, por que há iniciativas e não uma política nacionalizada? Isso tudo nos leva de volta ao ponto de origem, o trabalho artesanal é uma decorrência direta de nossa inexistente política financeira, e tem como seu produto a alienação no trabalho financeiro.
Mas é possível superar o trabalho artesanal sem fundamentar uma política financeira centralizada e a nível nacional? Acredito que não. E por que não temos uma política financeira centralizada?
Incompetência ou boicote?
Por muito tempo me fiz essa pergunta, não apenas individualmente, mas também em diálogos e formulações que teci nesse período de militância. Pra mim ela sempre apareceu quando eu notava a repetição de um método artesanal em finanças, assim quando comecei a formular e propor alterações, estas que nunca foram aplicadas ou de alguma forma debatidas. Esse movimento me abriu os olhos em dois sentidos, o primeiro, da necessidade de formação da nossa militância nesse debate, mesmo que de forma inicial, para que nunca justifiquemos nossos erros por incompetência. O segundo, contudo, me fez notar que o problema que hoje nos levou a uma cisão, já se expressava há décadas no terreno financeiro. E o nome dele não é boicote, é oportunismo.
Dois exemplos podem ser citados no oportunismo que era mandatório em nossa organização anterior. Um deles remonta a 2020, em uma reunião que participei junto do antigo secretário de juventude e atual secretário de finanças do partido. Essa reunião tinha enquanto pauta encaminhar os diálogos sobre a possibilidade da UJC ter um CNPJ para usar. Esse debate já estava aprovado em pleno da CN anterior, aguardando apenas uma posição do CC sobre o tema. Tal posição nunca veio, visto que o referido militante engavetou o debate, sendo então necessária essa reunião em específico, para que o assunto pudesse chegar a mais pessoas e aí sim vermos se seria possível caminhar ou não com o nosso objetivo. Indo ao objeto do discurso no momento, fomos acusados de estar querendo “legalizar” a UJC, fato que não seria proveitoso, visto que teríamos que nos enquadrar em regimes legais que poderiam gerar danos a nossa autonomia enquanto organização política. O argumento em si não está errado, o problema é seu uso oportunista feito naquele momento e reproduzido até hoje pela direita partidária. Vejam, camaradas, ninguém nunca quis “legalizar” a UJC, nunca houve debate sobre registrar a UJC enquanto uma empresa e ganhar para si um CNPJ. O debate sempre foi sobre a UJC ter um CNPJ para usar, ou seja, criar uma pessoa jurídica que estivesse sob controle da organização, sendo por ela utilizada.
Desde esse momento, criou-se enquanto um espantalho o argumento de que havia um grupo que queria “legalizar” a UJC para que fosse mais fácil um racha no futuro. Vejam, camaradas, esse racha não precisou de CNPJ para acontecer e nem precisaria caso fosse esse o objetivo desde 2020. Vamos parar de tirar as pessoas de otária. Ninguém aqui é manipulado e ninguém aqui precisa de registro jurídico para justificar suas ações. Bom, ao menos ninguém aqui do lado que componho.
Esse argumento chega ao nível mais absurdo ao vermos Aguiar defender isso em plenária nacional do Congresso da UJC, cumprindo o papel patético que ele tanto gosta de cumprir. O oportunista foi na frente de todos dizer que o debate sobre CNPJ significava criar um instrumento que facilitaria o racha da organização, e que essa era a função desse aparelho. Claro, pra quem é oportunista e nunca tocou uma tarefa de finanças na vida, só a isso pode significar mesmo. Mas como esse texto não é uma carta ao referido sujeito, não acho necessário justificar demasiadamente a importância desse instrumento. Contudo, trago esse exemplo simples para demonstrar o quanto foram boicotadas no último ciclo as iniciativas que tivemos para dar um salto de qualidade em nossa estrutura e planejamento político financeiro. Como é possível uma organização se estruturar de forma complexa e profissional se estamos limitados a uma quantidade segura de dinheiro que podemos movimentar em nossos CPFs individuais? Ou estamos defendendo voltar a guardar dinheiro no colchão e abrir mão das tecnologias e avanços na área financeira? Se todo nosso dinheiro está em uma conta física, ou nos arrumamos com problemas fiscais, ou nos limitamos criativamente e concretamente àquilo que nos é dado, sem se permitir querer e conseguir mais.
Dito isso, qual o interesse por trás de barrar avanços mínimos na complexificação de nossa estrutura? Convenhamos, ter um CNPJ é um passo básico, que por si só pouco garante qualquer coisa, mas é um passo importante para permitir movimentos intermediários fundamentais. O fato do básico ser negado (através de espantalhos) explica bastante como chegamos aqui. Nesse sentido, fica fácil pensar e responder o porquê de tanto falarmos em proletarização da militância e não nos dispormos a pensar isso de forma estratégica, afinal de contas, essa proletarização será da boca para fora, já que ninguém conseguirá se manter militando a não ser os que já possuem condições anteriores para tal. Me parece que o boicote (oportunista) operado até então nos abriu feridas profundas que temos enquanto tarefa nos debruçar. Se formos falar de política de fato, precisamos falar de seu desdobramento financeiro e não ter medo de ousar. Ousar e conseguir, impedindo qualquer um que seja de retardar nossos avanços, afinal de contas já basta o capitalismo para tentar nos frear.
O centralismo democrático e as finanças
Não podemos de forma alguma dissociar todo esse debate acima exposto do eixo central que move boa parte de nossas discordâncias com o PCB-CC, a concepção de centralismo democrático. Há claramente um gargalo no nosso processo político quando restringimos a circulação de informações e, consequentemente, nossa unidade ideológica. O fato de não termos conseguido ainda aprofundar aspectos sobre os pontos que acima coloquei são evidenciados por essa restrição ao debate em geral, mas em específico o financeiro. Isso vai nos afetar em vários âmbitos. Primeiro que não há uma possibilidade de síntese real sobre as experiências que executamos, tornando até difícil apontar um objetivo sem inferir no “recriar a roda”. Mas principalmente, pois não se permite uma interlocução direta entre os objetivos políticos mais concretos e sua associação financeira, que seja para além da financeirização pautada no “custear atividades”. Logo, não se permite acumular coletivamente para onde queremos ir e como faremos para chegar lá.
Essa questão, que demanda um debate muito para além do que aqui coloco, esbarra em um ponto que acho caro que discutamos, com franqueza e de forma acolhedora para as opiniões ou dúvidas que possam aparecer; a relação entre segurança e finanças. Muitas justificativas nos foram dadas no último período sobre o quanto não podíamos fazer balanços eleitorais ou financeiros em um geral sob a premissa de que isso deveria ser um debate restrito e que, sob a premissa da segurança, não poderia ser objeto de debate. Indico isso pois discordo, mas usarei de outra contribuição para me aprofundar melhor nesse argumento.
Enfim, busquei aqui destacar linhas centrais de meus pensamentos sobre esse aspecto político, visando contribuir com o debate congressual. Acredito que as tribunas são fundamentais para esse movimento e gostaria de incentivar o debate aberto sobre essas questões, para que tenhamos uma síntese prévia de para onde queremos ir, quais lacunas devemos preencher e quais debates podemos ousar fazer.
Lenin, V. I. O que fazer?: questões candentes de nosso movimento. p. 119 - 121. Boitempo, 2020.
[1] Aqui me valho do conceito filosófico para tentar trazer em paralelo a corrente que Lenin caracteriza como “revolucionarista”. Essa corrente parte de pressupostos espontaneístas e baseia sua política nessa linha, tendo enquanto o horizonte revolucionário apenas seu mote, não conseguindo superar as limitações práticas do trabalho espontâneo e praticista.