'Um passo atrás, nenhum passo à frente: As direções provisórias de São Paulo' (Guilherme Sales)

Obviamente Amílcar e o PAIGC se encontram em uma conjuntura totalmente diferente. Mas para pensar a estruturação de um partido baseado no centralismo democrático, como era o PAIGC, estruturado na ideologia marxista-leninista, suas contribuições são muito valiosas.

'Um passo atrás, nenhum passo à frente: As direções provisórias de São Paulo' (Guilherme Sales)
Amílcar Cabral e outro delegado em Moscou para o 24º Congresso do PCUS, 1971.

Por Guilherme Sales para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

“Na crítica dentro do partido há que saber guardar-se do subjetivismo, da arbitrariedade e da banalização da crítica; todas as afirmações devem basear-se em fatos e a crítica deter ter um sentido político” [1]

Recentemente a camarada Raquel Luxemburgo encaminhou uma tribuna que aborda determinadas movimentações das direções nacional e estadual após o racha, especialmente sobre a proposta de unificação dos CRs. A camarada, além de apontar justas frustrações com nossa conjuntura interna, cita a plenária estadual e a maneira como foi conduzido o debate naquela ocasião. Tomo as críticas apresentadas como base para expor algumas problemáticas desta plenária, que solidificaram a desconfiança com as direções e tornou mais claro o grupismo e outros desvios existente em nossas fileiras.

Em primeiro lugar, ressalto que não estou totalmente familiarizado com o trabalho conduzido na UJC. Isso por uma única razão: falta de transparência. Tanto antes do racha como agora, quem é militante do partido tem pouco ou nenhum acesso a debates e como são os métodos de trabalho da juventude. Isso implica em várias questões que gostaria de elencar.

Primeiro, quem não tem contato com militantes da UJC vive à deriva; quem tem, sabe das questões por meio das conversas paralelas e informais. Nesse caso, talvez para quem está na capital paulista pareça estranho, já que estão familiarizados com um contato mais constante e geralmente quem está nas direções locais do partido já foi militante da UJC. Mas é sempre importante lembrar que o estado de São Paulo não se limita a região metropolitana da capital.

Desse ponto acima, infere-se que todo debate da UJC antes e no decorrer da plenária era específico desse organismo, que possui um grau exacerbado de autonomia, fruto político das incapacidades do antigo PCB. É evidente que a UJC teve protagonismo no processo de cisão, rachando com as direções do PCB em São Paulo e encabeçando as críticas mais contundentes ao CR. Contudo, acredito que o tempo dos elogios passou, não sendo necessário reafirmar a todo momento a qualidade do trabalho tocado pela UJC e sua consequente sobrecarga. As críticas colocadas nesta tribuna, assim, estão longe de desmerecer ou ignorar os pontos positivos. Isto seria óbvio, mas as vezes o óbvio tem que ser dito.

Incluindo uma pauta de debates sobre perspectivas do racha nacional, estadual e localmente, as direções pareceram querer passar o tempo para o que estava por vir: o debate sobre a unificação dos CRs. 

Este debate, ao meu ver, gerou três blocos bem aparentes. O primeiro estava focado em criticar a falta de tempo para discussão da pauta, pouco abordando as implicações políticas e organizativas, o que é totalmente justo, uma vez que foi uma pauta imposta às pressas, sem organização do debate prévio. Um segundo bloco se colocou favorável, com suas ponderações. E um terceiro bloco se colocou terminantemente contra a proposta, juntando a ausência de tempo com a especificidade dos trabalhos da juventude e outros pormenores. Por fim, o primeiro bloco se dissolveu entre o segundo e o terceiro, e encaminhou-se a unificação, aprovada por maioria, com um certo número de abstenções. Fato é que foi uma decisão mais imposta do que fruto do debate. 

No plano político e organizativo, o que se viu foi uma continuidade de debates internos da UJC e das resoluções de seus últimos congressos neste espaço que deveria ser uma produção de acúmulos e sínteses tanto para plenária nacional quanto para o seguinte período pré-congressual, o que transpõe os limites das tarefas da juventude. Nestes termos, o CR-SP não foi capaz de cumprir seu papel enquanto direção provisória. Ao mesmo tempo em que usou da plenária para simplesmente passar uma ideia já articulada em certos grupos e pouco ou insatisfatoriamente debatida previamente, também escanteou a militância que não compõe a UJC, a qual simplesmente não estava familiarizada com o debate. 

Um fato que pesa nesse cenário é o de que uma considerável parcela dos integrantes destes organismos (CR-SP e CRUJC-SP) já preenchia cargos de direção antes do racha, fazendo com que, num entendimento próprio, já estivessem legitimados para a tarefa. Não que os eleitos pela UJC em seu último congresso não tivessem legitimidade em seu organismo, mas evidentemente as tarefas de uma direção provisória rumo a um congresso são diferentes das tarefas políticas de um congresso que não previa o racha. Certamente temos aí alguns de nossos melhores quadros em termos de formação e experiência, mas existiu inegavelmente uma grande dificuldade no convencimento político, afinal, ser um quadro qualificado em determinado setor não torna o militante isento de erros, desvios e oportunismos, além de que nem sempre um grande conhecedor teórico do marxismo-leninismo será um bom dirigente partidário.

Mas um ponto que parece não ser abordado suficientemente é que não conhecemos politicamente as direções. Uma grande parcela pode conhecer por nomes, por terem prestado assistência em seus núcleos, por serem colegas de curso, mas não conhecemos suas posições e, como bem apontou a camarada Raquel, existe um grande receio em coloca-las ao vento. Perdi as contas de quantas vezes vi camaradas atuarem na defensiva e se vi alguém defender explicitamente qualquer ponto polêmico poderia contar nos dedos. A própria questão dos delegados natos mostrou isso. 

Um dos grandes exemplos do que foi dito acima se deu na questão dos destaques para o CR, especificamente na adição de nomes. Quando pensamos em cargos de direção, teoricamente teríamos que nos basear na capacidade daquele determinado quadro em cumprir as tarefas não de forma mecânica, mas entendendo suas implicações políticas para o progresso do partido. Trazendo Lênin:

“Às vezes, entre nós, qualquer estudante indiscriminadamente é considerado propagandista, e todos os jovens exigem que se lhes "dê um círculo", etc. Temos que lutar contra essa prática, pois são muitos os males que daí advém. As pessoas realmente firmes quanto aos princípios, e capazes de ser propagandistas são muito poucas (e para chegar a sê-lo é preciso estudar muito e acumular experiência), e a estas pessoas é necessário especializá-las, ocupar-se delas e cuidá-las com zelo.” [2]

O que quero dizer lançando esta citação é que no regime de defesa dos destaques, não houve nenhuma indicação política, sendo todas baseadas em “x camarada é muito competente”, “x camarada é essencial na minha região”, “x camarada cumpriu muito bem a tarefa y”. Lênin fala sobre propagandistas, mas poderia muito bem servir para as direções. Que camarada hoje é capaz de ser firme em questão de princípios se a maioria fica mascarando suas posições? Como determinado camarada pode dar início a síntese do trabalho do organismo (coisa que não existia no CR anterior ao racha), se é incapaz de enxergar para além do seu núcleo universitário ou de seu grupinho? Muitos podem achar que x camarada é qualificado, mas ele realmente é? Este é o trabalho que não estamos fazendo, a análise crítica e factual.

É neste momento que entra o amiguismo como agravante das tensões políticas internas que enfrentamos. Ora, já que esse camarada é gente boa, conhecedor das obras do Lênin, vou destacar o nome dele dizendo que cumpriu bem a tarefa e é muito competente. Camaradas, cumpriu a tarefa bem com base no que? Que saldo político x camarada trouxe? Em que cenário um destaque de determinado camarada da USP ou da Unicamp irá realmente somar nos trabalhos organizativos e políticos do CR, que precisa lidar com o diálogo com as bases num estado tão complexo como SP, que não se resume ao movimento estudantil? Isso já tendo diversos camaradas da UJC incorporados em bloco e em dupla militância. Diversos nomes só não foram aprovados porque constataram que já estavam extremamente atarefados e não teriam tempo para cumprir as tarefas do CR, mas não houve nenhuma defesa ou oposição com base no que x camarada poderia oferecer politicamente ou não. As próprias indicações ao CR nos momentos iniciais do racha foram mais por tempo disponível do que capacidade política. E isso é normal até certo ponto, pelo momento que vivemos e pelas diversas dificuldades que enfrentamos no dia a dia, principalmente camaradas em trabalhos precários, desempregadas ou que se ocupam com cuidados de terceiros. Todavia, é fato que a deslegitimação do CR enquanto direção, a desconfiança gerada por diversos episódios, a desorganização e os desvios pequeno-burgueses são fruto do amiguismo, do medo de perder cargos e da reprodução dos vícios, cultivados justamente pela falta de transparência, do receio em ser derrotado pela base se o debate se estender e partir de alicerces mais justos para compreensão geral. 

Consequência destas questões expostas é o surgimento de uma parcela ultrademocratista, que nega a submeter-se ao centralismo democrático e exige punições personalistas, buscando desmoralizar as pessoas nas direções e apontar que são autoritárias, sem ter a intenção de pensar uma análise política que possa dar conta de constatar os erros e apontar caminhos, preferindo polemizar fora da organização e pressionar pela expulsão. Outros, se mantendo nas fileiras, inflamam o debate por inflamar, vezes pela ausência de uma formação robusta, vezes por puro oportunismo

Dito isso, é evidente que em nossas fileiras perdura uma estrutura moral e organizativa pequeno-burguesa, manifesta nos desvios citados anteriormente. Por que não política? Porque não creio que a linha que construímos e que será debatida em congresso seja majoritariamente pequeno-burguesa, apesar de seus defensores envergonhados ou como querem os que permaneceram no PCB, um tema que não caberia aprofundar aqui. Agora, no plano organizativo, que expele o plano moral, temos a conservação de uma hierarquia com todos os traços do liberalismo. Há uma soberba, mesmo que sem a intencionalidade, e uma incompreensão das realidades fora da sua. O que influencia esta problemática é a reprodução do ambiente acadêmico na militância, uma dinâmica de calouros x veteranos, professores x alunos, consequência da predominância de quadros formados ou em formação nas universidades públicas, que não são tão acessíveis, proletárias e abrangentes quanto parecem pensar. Envoltos de um ambiente sustentado pelo intelectualismo, pelo eurocentrismo (queiram ou não), têm a impressão que seus debates locais são comuns a todos no partido. Isso sem falar da reprodução de todo tipo de opressão no interior das fileiras, como racismo, machismo e LGBTfobia, imperando o típico paternalismo, o que muitas das vezes mascara o evidente desprezo por determinadas pautas.

É preciso ser claro com as bases para que o debate ocorra de forma qualitativa neste momento pré-congressual. Falta aproveitar melhor as potencialidades dos quadros do CR para cumprirem sua tarefa e compreenderem que este é um organismo provisório e a posição de direção não dá o direito de agir como patrão. A etapa estadual e nacional, portanto, devem servir para, além de realizar as sínteses do debate, apresentar a posição política de cada quadro. Será extremamente prejudicial se, reproduzindo a mania de ficar na defensiva, os militantes do CR não se apresentem politicamente e acabem sendo eleitos para etapa nacional com base no “x camarada é muito competente”, “x camarada é muito legal com a minha célula”, “x camarada manja da obra de Lênin”. Numa etapa nacional, o que este camarada x irá defender na questão das frações, na questão organizativa dos CLs, na questão do feminismo classista, na questão internacional, acerca do movimento negro? Do contrário, encheremos nossos organismos de Titos, Mazzeos, Lucas “Prestes” e semelhantes sem saber. 

Devemos [...] aplicar uma crítica justa, denunciar francamente, censurar, condenar e exigir a condenação de todos aqueles que praticam atos contrários ao progresso e aos interesses do Partido; combater cara a cara os erros e faltas, ajudar os outros a melhorar o seu trabalho. Tirar lição de cada erro que cometemos ou que os outros cometem, para evitar cometer novos erros, para não cairmos nas asneiras em que os outros já caíram. Criticar um camarada não quer dizer pôr-se contra o camarada, fazer um sacrifício em que o camarada é a vítima: é mostrar-lhe que estamos todos interessados no seu trabalho, que somos um e um só corpo, que os erros dele prejudicam a nós todos, e que estamos vigilantes, como amigos e camaradas, para ajudá-lo a vencer as suas deficiências e a contribuir cada vez mais para que o Partido seja cada vez melhor. [3]

O PAIGC, partido que Amílcar ajudou a fundar e foi a vanguarda do processo de libertação de Guiné e Cabo Verde passou por diversas polêmicas internas. Amílcar enfrentou críticas, oportunismos, esquerdismos e diversos embates que o levaram a ponderar em seus escritos justamente sobre a luta interna. Nossa militância, enclausurada no pensamento europeu, prefere polemizar transportando mecanicamente alguns debates do que pensar nas nossas condições materiais e usar as contribuições externas para somar. Nesse caso, no que Amílcar Cabral e o PAIGC podem contribuir? Lidando com todo tipo de obstáculos à estabilização do movimento de libertação, Amílcar nunca fugiu dos debates e das polêmicas. O convencimento político das bases foi seu maior trunfo contra os oportunistas e esquerdistas. Como isso se deu? Cobrando pela transparência, chamando atenção para crítica e autocrítica, por sua definição correta, contra a culpa cristã; pela justeza da linha defendida, contra os que defendiam o regresso, a favor do avanço cultural, econômico e social. Mas isso só foi possível pela ligação inequívoca com as massas, com o princípio de servir ao povo. Obviamente Amílcar e o PAIGC se encontram em uma conjuntura totalmente diferente. Mas para pensar a estruturação de um partido baseado no centralismo democrático, como era o PAIGC, estruturado na ideologia marxista-leninista, suas contribuições são muito valiosas. 

Uma crítica fraterna não quer dizer passar a mão na cabeça. Além disso, entendo todas as questões envolvidos no trabalho do CR como falta de tempo, questões pessoais, desligamentos, afastamentos, estudos, precarização, etc. Sei das imensas dificuldades que enfrentamos nacionalmente quanto a isso. Me dirijo a quem está numa posição que tem a capacidade de agir, de se posicionar, de demonstrar sua posição; aqueles que articularam determinadas ações por acreditar que era o melhor, sem dialogar com as bases. Acredito que isso já deveria ser claro também. No mais, espero que este breve escrito sirva de reflexão às direções estaduais e aos camaradas de outras localidades. Como o espaço sugere, este é um debate preparatório ao Congresso, estando longe de ser, portanto, a última e definitiva palavra sobre o assunto, estando totalmente aberto a discordâncias.


Notas: 

[1] Mao Zedong. Sobre a Eliminação das Concepções Erradas no Seio do Partido.

[2] Lênin. Carta a Um Camarada. 

[3] Amílcar Cabral. Aplicar na Prática os Princípios do Partido.