Um congresso brasileiro de bibliotecários e problemas políticos deixados de lado
Este ano, a 30ª edição do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), maior evento da área, ocorrerá em Recife, entre os dias 25 e 29 de novembro.
Por Redação
Este ano, a 30ª edição do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), maior evento da área, ocorrerá em Recife, entre os dias 25 e 29 de novembro. Organizado pela Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários (FEBAB), o evento é responsável por reunir pesquisadores, trabalhadores e estudantes da área para discutir questões atuais do país que envolvem os trabalhos em bibliotecas, problemas do fazer prático-teórico e possíveis rumos para o futuro da profissão.
Com o tema “Bibliotecas fortes: sociedade democrática”, o CBBD chega com a pretensão de discutir o papel das bibliotecas “em defesa da democracia”, mas sua organização é sintomática não somente de sob qual perspectiva pretende debater, como também da aparente alienação da FEBAB sobre a situação atual dos bibliotecários no estado que sediou sua primeira edição e que agora abriga a 30ª.
A começar pelas inscrições, cujo preço do primeiro lote para estudante de graduação (a mais barata de todas as modalidades) era de R$200 e chega a custar R$400 no último lote. Para profissionais, o preço do primeiro lote era de R$300 e o último chega a custar R$500. Num cenário de cada vez mais latente precarização do mundo do trabalho e custo de vida cada vez mais alto, o preço do lote já determina bem quais são as camadas profissionais que poderão participar das discussões e em quais condições se darão os debates; visto a disparidade existente dentro da profissão, onde temos bibliotecários concursados de tribunais que chegam a ganhar R$16.000,00 de salário, em contraste com os trabalhadores de bibliotecas escolares extremamente precarizados recebendo cerca de R$1.500,00 por mês (e talvez, até menos que isso).
Além disso, no eixo temático que pretende abrir discussões sobre a organização política da classe, o evento já deixa bem claro sua perspectiva ao nomeá-lo como “o advocacy de todo dia”, numa demonstração da importação de discussões liberais sobre organização políticas, em detrimento de se dedicar a estudar a realidade nacional em sua materialidade. A descrição do eixo repousa a atividade política na atuação individual dos bibliotecários, evidenciado em expressões como “proatividade e liderança em defesa da profissão”, e esse tipo de postura deixa de lado os problemas mais concretos que a categoria possuí e de uma necessidade que se demonstra cada vez mais urgente: a organização coletiva e o aprofundamento da politização.
Em um cenário onde a universalização das bibliotecas escolares, uma das principais bandeiras da classe, encontra-se bem longe de ser efetivada, apesar da aprovação da Lei 14.837/2024 (que as tornam equipamento cultural obrigatório nas escolas), os debates propostos não parecem nem um pouco tocar no fato de que tanto a aprovação dessa lei, como a 12.244/2010 (que determina que toda biblioteca escolar deve ter um bibliotecário formado), foram aprovadas sem uma mobilização de massas e uma participação ativa da classe. O resultado disso é o baixíssimo índice de sindicalização do setor, acompanhado pela alta desvalorização, baixa remuneração e informalidade que se tornam cada vez mais a realidade dessa classe.
Em Pernambuco, estado que a FEBAB escolheu para sediar seu evento, nos deparamos com uma associação inexistente, um Conselho Regional bastante fragilizado e um sindicato que às duras penas tenta se formar. No primeiro caso, a Associação de Bibliotecários é conhecida dentre os trabalhadores da área como um “fantasma” que existe em teoria, mas que nunca apareceu em prática. Com a possibilidade de fornecer alguma organização e formação, a Associação durante muito tempo possuiu problemas de condução que a impediram de ter qualquer forma de atuação, ao ponto de seu completo sumiço ao nem mais configurar na lista de associações filiadas à FEBAB.
Já o Conselho, único órgão de classe minimamente estruturado no estado, é o foco de intensas discussões (e até conflitos) entre os trabalhadores. Primeiro, por conta do preço exorbitante da anuidade exigida para o exercício da profissão (R$498,34 no valor deste ano) que não condiz com o valor médio do salário recebido por boa parte dos profissionais. Segundo, por uma aparente ausência nas discussões políticas da classe - o que, na verdade, é bastante sintomático do nível de organização política que temos.
Em linhas gerais, o Conselho é tratado como essa entidade abstrata que surge apenas para cobrar anuidades, mas que não tem uma atuação política efetiva. A grande questão é que a forma de atuação do Conselho é sintoma do estado político da classe: o Conselho é formado por bibliotecários, e se ele é desmobilizado e despolitizado, é porque a classe em si também o é. Um conhecimento mais próximo da realidade interna do conselho vai revelar algumas dificuldades concretas de manutenção da entidade (principalmente as financeiras), mas também os problemas políticos, na medida em que os trabalhadores no Conselho acusam a classe de não ser mobilizada, ao passo que os trabalhadores fora do Conselho o acusam de fazer nada - ao fim e ao cabo, o problema está na classe em si, e na dificuldade de conseguir enxergar onde está o verdadeiro problema.
Com o sindicato, esta é a enésima tentativa de formação que há anos vem sendo buscada, mas sem sucesso. São históricas as iniciativas de formação, mas que por uma série de motivos acabaram não se concretizando. A agudização da precarização da classe trabalhadora refletida nos bibliotecários fez com que uma outra iniciativa surgisse nos últimos anos e conseguisse avançar ao ponto de desenvolver um estatuto. Porém, encontra-se travada por dificuldades de envolvimentos gerais da classe para pôr em prática a efetivação do sindicato.
Nos três cenários, vemos um denominador comum para os problemas apresentados, que é a falta de envolvimento político geral da classe. Seja na ausência de envolvimento com a associação, o estado de atuação do Conselho e a carência do sindicato, em todos esses ambientes vemos problemas de uma politização mais geral da classe e de envolvimento com uma construção coletiva. O fato da FEBAB tratar a organização política por meio de debates liberais de “advocacy” é um sintoma claro disso: a organização política coletiva é deixada de lado em detrimento da atuação individual, mas num cenário de trabalhos cada vez mais precarizados, quais segmentos conseguem ter uma atuação política de qualidade?
Generalizam-se as discussões do “trabalho político do bibliotecário” em torno de ações individuais em bibliotecas universitárias, jurídicas, especializadas, algumas escolares e públicas, ou numa vaga e rara romantização das comunitárias, e ignora-se uma leva gigantesca de pessoas formadas em Biblioteconomia que ou estão fora da profissão, ou estão relegadas à informalidade de formatação de trabalhos acadêmicos e organização de acervos pessoais que acontecem com raridade.
O real cenário da categoria, que nem um pouco figura nas preocupações do Congresso, é de uma leva de trabalhadores totalmente desesperançosos com a área e sem perspectiva de futuro. Que se formaram, mas que abandonaram a profissão pela desvalorização ou exploração, ou que se formaram, mas não conseguiram emprego e vivem da informalidade de freelas raros, ou de contratos flexibilizados que mal servem para fechar as contas no fim do mês.
Soma-se a isso a dificuldade geral de conseguir enxergar onde está o verdadeiro problema: bibliotecários são parte de um segmento da classe trabalhadora, segmento este extremamente precarizado. Os problemas apontados pelo Conselho do não-pagamento da anuidade, por exemplo, e as dificuldades financeiras que ele passa, nada mais são do que reflexo do avanço burguês sobre o geral da classe trabalhadora. As leis trabalhistas de Temer, por exemplo, abriram um filão de terceirização do trabalho em bibliotecas, além da permissão de contratos flexíveis com carga horária reduzida e sem vínculo, que fazem com que muitos tenham que acumular dois ou três empregos para conseguir ter uma renda mínima ao fim do mês.
Além disso, os bibliotecários encaixam-se, tecnicamente, tanto no setor de trabalhadores de cultura quanto de educação, dois setores que, como bem sabemos, sofrem com a desvalorização e sucateamento. Exemplo disso é a Biblioteca Pública de Pernambuco, vinculada à Secretaria de Educação, que funciona sem dotação orçamentária e a base de participação em editais. Assim, os problemas gerais da classe trabalhadora mediante o avanço burguês, somados aos problemas típicos dos setores de cultura e educação sob o capitalismo, aliados às questões particulares dos bibliotecários, cria um cenário de desmobilização, despolitização e incapacidade de articulação política que possam fazer com que a classe verdadeiramente avance (nem que seja no estabelecimento de um piso salarial).
Faltam recursos práticos, mas também recursos teóricos, na qual uma formação extremamente alienada da realidade de classe desempenha um papel crucial no processo. O curso de Biblioteconomia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), por exemplo, anda discutindo a reformulação de seu currículo, mas sem uma participação dos estudantes, pesquisadores e trabalhadores, em decorrência justamente da apatia política que a classe possui. O curso sofre um tensionamento de discussões alienadas sobre tecnologia, que sob a roupagem do “futuro da profissão”, formam trabalhadores a partir de uma mentalidade liberal que bastam dois meses no mercado de trabalho para se comprovarem como totalmente falsa.
Discussões sobre cultura, política, realidade nacional, entre outros, são deixadas de lado (geralmente relegadas a disciplinas eletivas) em detrimento de aulas sobre tecnologia, repositórios digitais e inteligência artificial, que por mais que tenham lá sua importância, não arranham nem a superfície da realidade da classe do estado e no país. A resposta que vêm sendo dada à precarização do trabalho bibliotecário é a submissão desses trabalhadores à ordem do mercado de tecnologia, vendida sob o discurso de “possibilidades de atuação”, mas que não deixam de ser somente isso - possibilidades. Em um país onde nem mesmo as bibliotecas escolares existem propriamente, acreditar que os bibliotecários por si só serão incorporados ao mercado de tecnologia é uma ilusão (salvo raras exceções que não servem para fazer uma regra).
Dizem que a tecnologia fará a profissão sumir, mas é a nossa falta de articulação política que vai, pouco a pouco, nos aproximando de um fim. A questão é que esse fim não é a morte da profissão em si, mas o desemprego cada vez maior dos trabalhadores, a submissão a vínculos empregatícios fragilizados, a informalidade, ou o simples abandono da área por pura desesperança. Um fim, mas que mantém membros vivos e respirando com dificuldade, é um destino mais doloroso do que a morte completa.
Com a aproximação do Congresso, é importante que tenhamos bastante consciência de que, não bastam os posts com #SomosBibliotecaEscolar nas redes sociais e acreditar que isso bastará para que os problemas de nossa classe sejam resolvidos. É a atuação política efetiva e a organização que poderão impedir de sucumbirmos totalmente a já presente precarização. A formação de um sindicato é um passo importante na luta dos bibliotecários, mas ela não será o suficiente se isso não vier acompanhada de um compromisso irremediável com a totalidade de nossa classe e os problemas gerais que afligem a categoria.