Transplantes com HIV são consequência da privatização do SUS

O erro ocorreu no PCS Lab Saleme, laboratório privado localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A empresa foi contratada pela Secretaria Estadual de Saúde do RJ para testar e descartar infecções em órgãos doados, a fim de evitar a transmissão de doenças para os transplantados.

Transplantes com HIV são consequência da privatização do SUS
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Por Redação

Pelo menos seis pacientes foram infectados pelo HIV (vírus da imunodeficiência humana) após receberem transplantes de órgãos no Rio de Janeiro. A notícia foi divulgada no dia 11 deste mês, desencadeando uma série de denúncias e investigações na busca por responsáveis.

O erro ocorreu no PCS Lab Saleme, laboratório privado localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A empresa foi contratada pela Secretaria Estadual de Saúde do RJ para testar e descartar infecções em órgãos doados, a fim de evitar a transmissão de doenças para os transplantados.

Em representação feita pelo Ministério Público (MP), emitida na última quinta-feira (17/10), a promotoria aponta que os investigados “já emitiram dezenas de resultados com falso positivo e falso negativo para HIV, inclusive em exames de crianças, respondendo a inúmeras ações indenizatórias por danos moral e material”. Segundo apuração do G1, o médico responsável pelo laboratório é tio do deputado federal Doutor Luizinho (PP), que foi secretário da saúde do RJ em 2023.

A privatização e a volta de velhos medos

Desde 1998, com a Lei 9.637, foi autorizada a gestão dos serviços de saúde por entidades privadas, chamadas de Organizações Sociais (OS). Tal lei fazia parte de um pacote de medidas que visavam diminuir as funções do Estado, sob influência do Banco Mundial na América Latina na década de 1990. Esse processo vinha na contra-mão da proposta original do SUS, inicialmente estabelecida na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986) e que já via seu projeto desmanchado pela Constituição de 1988, que incluiu em seu texto final o convívio entre os setores público e privado.

Desde então, as últimas décadas viram a transferência quase total da gestão do SUS para as Organizações Sociais. Hoje, mais de 70% dos serviços públicos de saúde são geridos nesse formato, que é responsável pela transmissão do financiamento público para o setor privado e pela submissão dos serviços de assistência à lógica de mercado.

Há 36 anos - no mesmo ano em que era promulgada a nova Constituição - morria Henfil, cartunista e jornalista com importante atuação no combate à ditadura militar. Assim como seus irmãos, Henfil sofria de uma doença hereditária chamada hemofilia, na qual ocorre falha na coagulação do sangue, resultando em hemorragias em situações em que pessoas sem a doença não sangrariam, como em pequenos machucados. Em casos de sangramentos volumosos, pode ser necessária a transfusão sanguínea. Foi em um desses casos em que Henfil foi contaminado com o HIV, após uma transfusão que deveria ser terapêutica. A história natural da infecção por tal vírus nas décadas de 80 e 90 é conhecida: evolução para um estado grave de imunodeficiência - chamado de AIDS - seguido pela morte.

Casos semelhantes ocorreram em todo o planeta, levando à padronização de protocolos que tornaram transfusões e transplantes seguros. No Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que regulamenta esse processo, com normas que devem ser seguidas rigorosamente por todo o serviço de saúde nacional, seja ele público ou privado. Esse processo prevê, entre outras regras, uma triagem infecciosa pré-transplante, com a pesquisa universal (ou seja, para todo doador) de uma série de agentes infecciosos, incluindo o HIV. Essa regra, que não existia na época Henfil, deveria garantir que casos como os ocorridos no Rio de Janeiro fossem impensáveis.

As premissas que justificam a implementação das Organizações Sociais seriam os benefícios da flexibilização da administração e da agilidade da contratação sob a lógica privada. Esse discurso - que é inclusive legitimado e repetido por setores institucionais da esquerda - desconsidera a realidade brasileira. Se, na teoria, se propagandeia uma suposta maior agilidade e eficiência empresarial, na prática vemos a existência de um setor privado que coloca o lucro acima da prestação adequada de serviços - como é o caso do laboratório do tio do deputado do PP. A conclusão foi da própria Polícia Civil do RJ, que associou a falha operacional ao objetivo de obter lucro.

Tanto a imprensa hegemônica quanto a investigação do caso levam a uma conclusão comum: trata-se de um caso isolado, resultando numa gravíssima falha na assistência à saúde, que demanda a punição dos responsáveis e a realização de contratos com outras empresas, de maior confiança. Mas isso é falso: a relação de órgãos públicos com empresas de políticos do centrão, levando a contratos questionáveis, não é caso isolado, mas sim a forma como funciona o Estado capitalista brasileiro.

A responsabilização dos envolvidos no erro laboratorial não deveria mascarar o problema maior: a terceirização e a privatização crescente do Sistema Único de Saúde (SUS). Quando a saúde pública é gerida sob a lógica de mercado, secundariza-se a segurança, e erros que deveriam estar restritos ao passado voltam a tornar-se realidade.