'Transição ou transições? Sobre a relação entre ditadura do proletariado, capitalismo de Estado e socialismo' (M)

O socialismo deve ser entendido como uma etapa de transição, e não como um novo modo de produção. Enquanto etapa de transição, não existe etapa intermediária que leve a ele.

'Transição ou transições? Sobre a relação entre ditadura do proletariado, capitalismo de Estado e socialismo' (M)

Por para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A decisão de escrever essa tribuna se deu a partir de minha participação na etapa estadual do XVII Congresso do PCB RR, durante a qual uma percepção que eu já tinha se tornou mais evidente: não existe consenso, em nosso partido, sobre o que é socialismo. Diversas visões no interior do partido fazem uma distinção entre a ditadura revolucionária do proletariado – compreendida como uma etapa de transição ao socialismo – e o socialismo propriamente dito – a etapa de transição para o comunismo. Tal concepção entende, em última instância, que existe algo como uma transição para a transição, e que o socialismo é um novo modo de produção propriamente dito. A discussão pode parecer banal, mas revelou implicações para questões importantes do Congresso: o debate sobre as experiências socialistas do passado e do presente, assim como as tarefas do proletariado organizado na construção da sociedade socialista. Desta forma, decidi escrever esta tribuna com o objetivo de contribuir para esse debate. Esclareço desde o início a posição que defendo: a ditadura do proletariado é uma forma de poder que corresponde à sociedade socialista, não sendo uma etapa de transição que leva a ela. De modo semelhante, defendo que o socialismo não é um modo de produção propriamente dito, mas uma transição entre o capitalismo e o comunismo.

Ditadura do proletariado e socialismo

O socialismo, por vezes chamado por Marx de “primeira etapa da sociedade comunista”, é uma sociedade “não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu”. Trata-se, portanto, de uma fase de transição, de uma sociedade que sai diretamente da sociedade capitalista, não sendo concebida nenhuma etapa intermediária entre o capitalismo e ela. Nesta fase da sociedade comunista também permanecem traços essenciais da sociedade capitalista: a orientação da produção para a acumulação, a divisão do trabalho e o direito burguês. De acordo com Marx, a sociedade socialista e a capitalista possuem o mesmo sentido no que diz respeito à distribuição dos produtos do trabalho: trata-se do direito burguês, que permanece na primeira etapa da sociedade comunista. Essa etapa do comunismo, portanto, deve ser compreendida como comunismo no sentido fraco – ou como transição ao comunismo.

Lenin, em seu O Estado e a Revolução, é categórico ao afirmar que “a transição do capitalismo para o comunismo não pode naturalmente deixar de dar uma enorme abundância e variedade de formas políticas, mas a sua essência será necessariamente uma só: a ditadura do proletariado”. Trata-se de uma ideia que corresponde à afirmação que Marx faz em sua crítica do Programa de Gotha:

“Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado”.

A posição de Marx é clara: a ditadura revolucionária do proletariado é a forma que o Estado assume na fase de transição, ou na primeira etapa do comunismo – também conhecida como socialismo. Trata-se, portanto, não de uma fase de transição nomeada ditadura do proletariado, seguida por uma segunda fase de transição chamada de socialismo. O socialismo, enquanto fase de transição, corresponde ao período em que o proletariado toma o poder político e inicia o processo de transformação da sociedade rumo ao comunismo, e neste sentido, a ditadura do proletariado se dá sob o socialismo e não antes dele.

Como já vimos anteriormente, a primeira fase da sociedade comunista – socialismo – não é comunismo no sentido forte da palavra, mas um período de transição, que, como tal, não supera de forma automática todas as formas e relações da sociedade capitalista. O debate que Lenin faz sobre a permanência do direito burguês na sociedade socialista implica, de acordo com ele, na existência até mesmo de um tipo de Estado burguês, capaz de obrigar à observação das normas do direito. Decorre que “no comunismo subsiste durante um certo tempo não só o direito burguês, mas também o Estado burguês - sem burguesia!”. Cabe lembrar que essa etapa do comunismo a que Lenin se refere não é comunismo no sentido forte, tratando-se antes da fase de transição – o socialismo. Lênin é categórico ao afirmar que na etapa socialista, permanece, em certa medida, o próprio Estado burguês, embora este já não esteja sob o controle da burguesia.

Capitalismo de Estado ou socialismo?

Os elementos analisados permitem agora chegar a uma questão polêmica: a relação entre o socialismo e o assim chamado capitalismo de Estado. De acordo com Lenin, o capitalismo de Estado e o socialismo não são termos necessariamente excludentes – trata-se, antes, do proletariado que assumiu o poder político utilizando do capitalismo para seu benefício. De acordo com o líder revolucionário “o capitalismo monopolista de Estado, num Estado verdadeiramente democrático, revolucionário, representa, inevitavelmente, infalivelmente, um passo, e mais do que um passo para o socialismo”, pois “o socialismo nada mais é do que o monopólio capitalista de Estado posto a serviço de todo o povo e que, por isso, deixou de ser monopólio capitalista” (LÊNIN, 1977a, p. 212). Questionamentos a essa posição poderiam ser feitos, uma vez que Estados capitalistas também praticam o que chamamos de capitalismo de Estado, mas Lenin deixa claro que existem distinções, afirmando que no Estado capitalista, o capitalismo de Estado serve à burguesia, enquanto sob a direção do Estado socialista, ele é utilizado em benefício do proletariado e na construção de uma nova sociedade. Ainda de acordo com Lenin, a permanência da propriedade privada e do livre comércio nesta fase de transição não deve ser encarada como um risco se tivermos o controle das fábricas, dos transportes e do comércio exterior. Tal afirmação está em consonância com Engels, que, respondendo se a propriedade privada poderá ser abolida de um só golpe, esclarece

 “Não, do mesmo modo que não se pode fazer aumentar de um só golpe as forças produtivas já existentes tanto quanto é necessário para a edificação da comunidade. Por isso a revolução do proletariado, que com toda a naturalidade se vai aproximando, só a pouco e pouco poderá, portanto, transformar a sociedade actual, e somente poderá abolir a propriedade privada quando estiver criada a massa de meios de produção necessária para isso”

Concebe-se, portanto, que o socialismo deve ser entendido como uma etapa de transição, e não como um novo modo de produção. Enquanto etapa de transição e não um modo de produção propriamente dito, não existe etapa intermediária que leve a ele. O proletariado só se encontra em condições de construir o socialismo se tiver assumido o poder político. Mas o proletariado no poder político, como Lênin afirma, é o socialismo propriamente dito. O que isto significa, em termos gerais? Que o socialismo, enquanto fase de transição, é também um processo que engloba formas não-socialistas, que são transformadas, gradativamente e de acordo com as condições materiais, em formas socialistas. O êxito completo do socialismo e a superação total do capitalismo, rumo ao comunismo, só é possível a partir da superação de determinadas condições sociais e históricas, que incluem a própria internacionalização do socialismo. Tal perspectiva, no entanto, não pode ser utilizada para negar as experiências socialistas do passado – em relação as quais nossa posição deve ser a de negação e superação crítica, em oposição à simples negação vulgar – ou para exigir a superação imediata de todo e qualquer traço de capitalismo num país logo após a revolução. 

Polêmicas do XVII Congresso:

Desta forma, considero que não faz sentido a polêmica travada em relação ao artigo 2 do Programa do Partido, que afirmava a necessidade de "concentrar sob o comando dos trabalhadores todos os grandes meios de produção para iniciar a reorganização socialista da sociedade". A polêmica dizia respeito à expressão "grandes meios de produção", como se o trecho defendesse a abolição exclusiva da grande propriedade. Ignora-se, desta forma, o trecho posterior, que fala sobre "o início da reorganização socialista da sociedade". Ao retirar a palavra "grandes", o trecho ainda parece condizer com a ideia de que existe uma transição para a transição, ou uma transição para o socialismo: o socialismo, nesta perspectiva, só existiria de fato quando tivesse ocorrido a supressão total da propriedade privada e das relações de mercado. O texto, num geral, parece mal formulado, mas a simples supressão da palavra “grandes” não resolve em nada a questão.

A polêmica não parou neste tópico, retornando quando tratamos do movimento LGBT. Um dos trechos na seção implicava que a URSS não podia ser considerada socialista, uma vez que perseguiu pessoas LGBT e não aboliu a família. Ora, camaradas, embora eu concorde plenamente que devemos tecer severas críticas à relação do movimento comunista e das experiências socialistas com o movimento LGBT, não acho que a postura adotada auxilia em algo. A argumentação do camarada que formulou tal trecho foi tecida a partir da ideia de que, uma vez que a família, o gênero e a heteronormatividade possuem uma relação genética com a sociedade capitalista, a superação desta envolve a superação (automática) da divisão binário-generificada da humanidade e de toda a forma de LGBTfobia. A postura já parece complicada em relação à sociedade comunista: supõe-se uma relação mecânica entre base e superestrutura, concebendo que a mudança de uma implica na automática mudança da outra. Mas a afirmação do camarada se torna ainda mais absurda quando se percebe que ela diz respeito à etapa de transição. Sabemos que o problema da abolição da família na URSS não foi fruto de uma mera deformação do marxismo, mas que a regressão teve causas objetivas, históricas e materiais. Trata-se, neste caso, de compreender que o socialismo não segue uma linearidade progressiva rumo ao comunismo, mas é marcado também por regressões. A perseguição às pessoas LGBT é definitivamente uma mancha grave na história do comunismo, que precisa ser criticada com vigor. Entretanto, a mera negação do caráter socialista da experiência a partir das contradições desta sociedade - algo que o filósofo Domenico Losurdo denominou autofobia - não nos auxilia em nada na autocrítica que nós, como comunistas, precisamos fazer em relação ao nosso próprio passado.

Por fim, acredito que este debate, nem de longe esgotado, pode auxiliar em algumas das discussões polêmicas que se deram na etapa estadual do XVII Congresso, sobre a abolição da propriedade privada, do Estado, da família e das demais instituições da sociedade burguesa.

Agradeço a todos os camaradas pelos debates que foram promovidos nesta etapa e desejo que as discussões sejam ainda mais profícuas na etapa nacional. Avançamos!


Referências

Crítica ao Programa de Gotha – Marx

O Estado e a Revolução – Lenin

Princípios Básicos do Comunismo – Engels

La catástrofe que nos amenaza y como combatirla – Lenin