'Transexualidade e marxismo' (Ana Barradas)

A luta da classe operária pela sua hegemonia como classe deve incluir no seu programa a defesa de todos os que sofrem qualquer tipo de opressão, violência ou discriminação capitalista impostas pela ideologia burguesa.

'Transexualidade e marxismo' (Ana Barradas)

Por Ana Barradas para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Acedo com agrado ao convite que gentilmente me foi feito (no evento que partilhei convosco em Porto Alegre a 27 de fevereiro) no sentido de dar a minha contribuição para a vossa Tribuna de Debates. Como depois dessa data parece ter-se levantado algum questionamento sobre a minha posição a respeito da transexualidade, afigura-se-me apropriado expor aqui as minhas ideias sobre o tema. Para esse efeito redigi o texto que se segue.

Desafiam-me alguns camaradas e amigos a explicar as minhas ideias sobre a transexualidade. Eu sorrio intimamente porque percebo que se trata de gente muito mais nova, desconhecedora das posições que desde sempre tenho defendido dentro das organizações onde tenho militado. Explico-me então. Há quase 20 anos escrevi um texto que chamei “Os comunistas e a homossexualidade” em que fustigo aqueles meus camaradas que nas formações comunistas tomavam posições e tomam ainda posições reaccionárias a respeito das questões relacionadas com a sexualidade em geral e com todas as formas de sexualidade, assim como sobre a família de raiz capitalista, por não compreenderem que tudo isto tem a ver e está em contradição com as boas práticas teóricas e práticas dos marxistas-leninistas. Escrevi este texto em 2006 e tem sido largamente divulgado, sendo fácil encontrá-lo hoje na internet, no site Academia e no blog do Bandeira Vermelha. https://bandeiravermelhablog1.wordpress.com/2020/11/21/os-comunistas-e-a-homossexualidade/

Nessa altura ainda não sabíamos da transexualidade como hoje ela é vista e praticada. Naquele tempo chamavam-lhe "mudança de sexo" na linguagem corrente, já que ainda não existia a palavra transexualidade e seus derivados mais recentes. Mas todos os sinais do que viria a seguir já lá estavam e vinham até de muito longe na história. As múltiplas variáveis sexuais sempre existiram na espécie humana.No meu livro “Dicionário de Mulheres Rebeldes” incluí várias biografias de certas mulheres que ao longo dos tempos e durante toda a sua vida adulta se apresentavam como homens e se comportavam como tal e que hoje seriam redutoramente chamadas “travestis”. No caso da nossa contemporaneidade, tal como então, tem tudo a ver com o sistema económico que nos domina, mais os seus mandamentos sobre a família sagrada e a intocável propriedade privada, que exigem como norma o a constituição da família como guardiã do sistema. São uma ameaça para o capitalismo todas as variantes sexuais que não se coadunem com o modelo binário da família burguesa tradicional e todos os seus valores, como célula base da edificação capitalista. Pouco ou nada mudou. Mas tudo vai mudar, está a mudar. Curiosamente esse velho artigo “Os comunistas e a homossexualidade” foi reeditado recentemente em Campinas, no Brasil, numa brochura que transcreve juntamente outro artigo meu sobre “A família na União Soviética, decadência e reconstituição”
https://www.instagram.com/p/C2w1C2DrAe9/?img_index=1

Os dois artigos são complementares e num deles mencionam-se casos verídicos de transexualidade (ou mudança de sexo) ocorridos na Rússia no tempo de Lenine e configurados como absolutamente legais e não puníveis por lei, em contraposição às perseguições e criminalização de práticas sexuais ditas “desviantes” ocorridas no período estalinista, tendentes a reconstituir o modelo de família tradicional. Um regime proletário que surja um dia terá de prosseguir a sua revolução após a tomada do poder. Nesse processo está implícita, entre muitas outras mudanças ao nível económico, uma revolução sexual e cultural que reconhecerá todos os direitos das minorias e começará a desmantelar a família patriarcal. Tivemos uma pálida ideia do que ela poderia ser durante o período em que os bolcheviques delegaram no comissariado dirigido por Alexandra Kollontai a aplicação de um programa desse tipo. Não foi por acaso que pela primeira vez foram reconhecidos e juridificados o amor livre, a homossexualidade e a transexualidade como fenómenos sociais não passíveis de criminalização. Sobre as posições do Bandeira Vermelha acerca deste assunto não há muito a dizer. Todas as minhas posições foram debatidas na minha organização e não há qualquer diferença de opinião. Basta ler o artigo publicado em dezembro de 2023 sobre a transfobia "comunista", da autoria de Leonardo Frósi, que subscrevemos na totalidade e que exprime o essencial das nossas posições. Nós no BV concluímos:

1º A luta contra os trans é uma luta muito recente que atinge uma proporção ínfima da humanidade e, ainda que buscando a burguesia subjugá-la, ela, a burguesia, não está interessada, do ponto de vista económico, em criar uma subcasta específica, mas sim em integrar esse sector ordeiramente no sistema de classes, privando-o assim de todo o sentido de ruptura, mudança ou subversão. Como fizeram com a luta pelo aborto, com a luta pela legalização da homossexualidade e direitos derivados, como estão a fazer com a luta feminista, anti-racista, etc., todas elas se têm perfilado como lutas sectoriais que hoje não fazem abalar o sistema a curto ou a longo prazo porque não têm um horizonte revolucionário.

2º A posição geral correcta deve ser: a luta da classe operária pela sua hegemonia como classe deve incluir no seu programa a defesa de todos os que sofrem qualquer tipo de opressão, violência ou discriminação capitalista impostas pela ideologia burguesa, denunciando ao mesmo tempo oaproveitamento oportunista deste justo combate levado a cabo por elementos pequeno-burgueses que se arvoram em seus dirigentes. Por isso é que os comunistas se devem aliar aos elementos da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e trans) que resistem a essa dominação, assumindo uma perspectiva de classe contra a burguesia dentro e fora do seu meio. Isto é que é destacar da transversalidade os elementos que combatem contra a exploração e a opressão e assim contribuem para o reforço do processo revolucionário.