'Traçando diálogos com novos espaços para agitar, propagandear e organizar a nossa classe: Da romantização à lógica individualista na pixação' (clorofórmio)
A arte é imensurável e incomparável, dizer que algo é menos ou mais arte, por supostamente ser mais feio ou mais bonito, partindo de uma moral e ideologia estruturada no pensamento a mais de séculos, não faz sentido.
Por clorofórmio* para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
RESUMO
Eu tento nesta tribuna me restringir ao movimento da pixação, mas acabo tecendo algumas reflexões acerca do movimento da cultura de rua, além de expor um pouco das experiências vivenciadas por mim, e também colocar questões que me frustram e outras perspectivas de tarefas revolucionárias que acredito serem essenciais para todo movimento, coletivo ou partido que tenha como horizonte a construção do poder popular e do socialismo-comunismo.
eu preciso me explicar
Toda a análise e perspectiva que tenho estruturadas hoje (e trago nesta tribuna) são fruto da minha atuação e participação há 5 anos, tanto no movimento comunista organizado, como nas batalhas de rimas, troca-folhas em points, rolês de tinta, ações diretas, etc. Fruto das trocas de vivências e perspectivas com as minhas relações de amor-amizade-camaradagem com artistas de rua, pessoas pixadoras, grafiteires, MCs, DJs, dançarines, malabaristas, militantes, ex-militantes, e mais.
A tempos gostaria de ter escrito esta tribuna, que provavelmente será a única que escrevo, mas como não tenho grandes referenciais bibliográficos e muita insegurança política, então me faltou muito o que apresentar. Mas meu objetivo com esta tribuna não é que ela seja super elaborada, mas que ela possa trazer possibilidades de aproximação e compreensão estética e pedagógica da militância ao que se tem hoje da pixação.
Espero que meus acúmulos possam ajudar a nossa organização a pensar novos caminhos para a construção do comunismo.
Origem e Importância Histórica
Acredito que muitas pessoas já viram aquelas célebres imagens da ditadura empresarial-militar de 1964 onde há pixações com frases do tipo “ditadura assassina”, ou “abaixo à ditadura”, ou até mesmo “liberdade”. Estas pixações, apesar de serem uma das mais antigas, se não as mais antigas, apresentadas para nós nos livros de história, não é onde começa o movimento espontâneo e orgânico de jogar tinta nas paredes com o propósito de bater de frente com a lógica dominante higienista e burguesa de preservação da propriedade, seja pública ou privada, monumentos históricos, entre outras estruturas que são supervalorizadas e preservadas pelo capital. Me vejo aqui na obrigação de apontar que com “preservação” me refiro a tentativa das forças dominantes de higienizar as cidades, mantendo essas estruturas longe da pixação, ou melhor, mantendo a pixação longe dessas estruturas. A pixação como existe hoje é para incomodar, com propósitos políticos ou não, é pra ser sujeira, incômodo, mas com estética e fora das galerias e museus. Na rua não tem curadoria!
Como eu apontei anteriormente, não é durante a ditadura empresarial-militar de 1964 que se inicia esses movimentos espontâneos e orgânicos de tinta na parede, claro que não, mas com rápidas pesquisas na internet você encontra relatos (verdadeiros ou não) da história da pixação que, a princípio não tinha o objetivo que a pixação tem hoje, mas veio a se tornar essa tinta-na-parede-com-objetivo-de-incomodar no último período da história da humanidade. Vou dar destaque no momento para o perfil do Instagram de mídia independente e subversiva JUNKIE, que em uma de suas contribuições traz a história do - talvez - “Primeiro Pixador do Brasil”, que de certa forma remete um pouco a história da pixação em terras brasileiras. Mas acho que o que é importante de apontar nesse primeiro momento, é que seria um tanto desonesto e anacrônico dizer que a pixação já existia desde a Idade Moderna, ou da Antiguidade ou pré-História, como alguns gostam de afirmar, é claro que existiam outros procedimentos antes do aerossol de pintar paredes, incomodar, passar mensagens, etc, mas não com o propósito que na contemporaneidade tem a pixação, por isso o anacronismo. Pixação é contemporâneo. Por mais que os antigos procedimentos de pintar superfícies tenham tido a sua importância na denúncia e manifestação, não eram pixação e nem um protótipo de pixação, exatamente porque a pixação surgiu como um movimento espontâneo e orgânico, mas afirmo que sim, “esses antigos procedimentos andaram para que a pixação pudesse correr”.
A pixação, ou a tinta-na-parede-com-objetivo-de-incomodar, quando colocada em um espaço e contexto de disputa e conflito de interesses vem a se tornar um meio político. Os conflitos e disputas que vou dar destaque aqui são os clássicos que costumam constar na história da pixação: disputa territorial (do crime organizado ou não); ditadura empresarial-militar no Brasil e pixo como arte ou anti-arte. Mas não é só na disputa que a pixação se faz importante para a sociedade, mas também no rompimento com valores tradicionais-conservadores-higienistas-burgueses.
O que quero dizer com tudo isso, é que a pixação tem se colocado em muitos espaços de muitas perspectivas, mas seria também desonesto afirmar que a pixação está em acordo com a lógica de mercado, a lógica capitalista, ou mesmo com os ideais reacionários e fascistas. A pixação desde seu surgimento teve o papel de denunciar as mais diversas situações de injustiça, como por exemplo durante a ditadura empresarial-militar no Brasil, apontando o que acontecia dentro das delegacias, ou o que acontecia com os movimentos revolucionários, o que acontecia com as pessoas que ousavam lutar contra a mais nítida expressão do capitalismo: a repressão e o massacre aos povos, a arte e aos movimentos contra-hegemônicos; o desenvolvimento industrial em detrimento dos direitos humanos. Pouco importava e importa para a ditadura empresarial-militar, e o capitalismo como um todo, se a classe trabalhadora tem para além do trabalho momentos de lazer, cultura, esporte, outras relações, etc. Sempre foi, e continuará sendo, mais importante o lucro acima da vida, em todas as expressões do capitalismo, como por exemplo foi em meio a pandemia da covid-19 com o governo de Jair Bolsonaro, com o avanço cada vez mais das políticas neoliberais de privatização de serviços básicos e essenciais. Pouco importa ao capitalismo se a classe trabalhadora irá morrer ou não, porque a burguesia lucra com as mortes assim como também lucra com a exploração (isso tudo inclusive também denunciado nos últimos anos por meio da pixação).
Mas só afirmar que a pixação foi e continua sendo um meio de denúncia dos problemas históricos, econômicos e sociais não é o suficiente, é preciso apontar como a pixação rompe com os valores da hegemonia burguesa que se orienta por um rol de violências. A princípio pode parecer difícil, mas eu juro que pode ser simples também, só precisamos assimilar o higienismo enquanto um fator de preservação da propriedade privada e segregação étnico, racial e social, e a arte tradicional enquanto uma expressão dentro da cultura de preservação da moral burguesa, cristã, monogâmica, cisheteronormativa, higienista e acima de tudo eurocêntrica/colonial. A princípio essa afirmação pode parecer confusa, mas a ideia que tem se desenvolvido na arte desde a Vanguarda Europeia é o rompimento com o meio academicista e tecnicista (que se orienta, também, pelo rol de violências apresentado) de se fazer e pensar arte, isso foi se desenvolvendo no que temos no Brasil como a Semana da Arte Moderna, por exemplo, e com as mais múltiplas formas de se fazer arte na contemporaneidade, que rompe com os valores do tradicionalismo e da arte clássica. Não é muito raro se deparar com algum tipo de expressão da arte contemporânea e ver uma pessoa com sua ignorância (que a impede de compreender os debates que se fazem dentro do meio artístico e o período artístico histórico em que vivemos, e isso tudo, inclusive, ocasionado muito pelo sucateamento da educação que impede um maior incentivo a arte e a cultura) falando “Isso não é arte. Arte é o que faziam os gregos, o Classicismo e o Renascimento”. Esse discurso já foi superado a um tempo dentro das artes por compreender que os fatores que se utilizavam para fazer e pensar a arte eram uma pseudo-ciência. Pelo contexto histórico de “desenvolvimento da racionalidade e do conhecimento”, o Renascimento tentava resgatar a forma clássica, mas com uma matematização do natural, geometrização dos corpos, para transformá-lo em belo, o que caiu em uma lógica eugenista por essa tentativa de alcançar um corpo belo e ideal através da ciência. Quem se lembra dos Nazistas tentando se utilizar da ciência para mensurar e categorizar as pessoas através das diferenças nas características físicas como crânio, nariz, olhos, cabelo, etc?. (O Renascimento, não ironicamente, tem ligação com fascismo rs). No Renascimento a lógica era a mesma, sistematizar uma forma ideal e bela através da ciência, matemática e geometria, e reproduzir ao máximo que essa deveria ser a forma idealizada a ser seguida.
Aponto toda essa crítica histórica da arte para que se possa entender que a arte já vem a um bom tempo tentando construir uma outra ideia do que realmente se entende como “bonito” ou “feio”, já vem a um tempo tentando romper com essa moral que categoriza uma forma de expressão como bonita ou feia. A arte é imensurável e incomparável, dizer que algo é menos ou mais arte, por supostamente ser mais feio ou mais bonito, partindo de uma moral e ideologia estruturada no pensamento a mais de séculos, não faz sentido. Ou seja, a tempos, mesmo dentro do meio acadêmico, já se via uma possibilidade de tecer outras compreensões estéticas que transcendem o belo ideal. O que deveria se seguir por esse novo pensamento mais “desconstruído”, que vinha sendo elaborado, não era a ideia de ver a pixação enquanto algo que “suja” a cidade, ou deixa ela mais “feia”, mas sim enquanto uma expressão estética com muitas particularidades e complexidades a serem analisadas. O que nos deparamos na contemporaneidade é com um espaço acadêmico (que tanto levanta a bandeira da livre expressão artística) reproduzindo toda essa lógica higienista e eugenista, e, para mim, o motivo é simples: é porque a pixação não é arte, é anti-arte, anti-acadêmica, anti-mercado, insubordinada, e não serve aos interesses da academia que já possuem uma moral burguesa bem consolidada. Pode ficar mais confuso agora porque entrarei em contradição com a minha própria afirmação, mas a pixação pode também ser arte, mas é tão mais complexa e desenvolvida que pode também ser uma anti-arte. Acho que isso tudo vai muito da pessoa pixadora, se ela quiser que o pixo seja arte, então é; se ela quiser que o pixo seja anti-arte, então é, também. O mesmo vale para o pixo político, se a pessoa quiser que seja, é, se não, não é.
Os objetivos da pixação
Agora trazendo um outro debate, relacionando arte e pixação, de uma outra compreensão que se tem dentro das artes, é que nem toda arte precisa ter um fim, um objetivo pedagógico, um sentimento que a pessoa que fez estava sentindo, etc (insira aqui qualquer um desses tipos de discurso para justificar uma produção artística), eu particularmente acho isso limita a arte. Tem arte que não é feita com um objetivo pedagógico, mas sim estético, que aí, no campo estético, o objetivo não é mais aquele reflexivo de questionar a obra, mas sim de sentir e observar atentamente os detalhes, e devagar, com calma, sentir com os olhos as artes visuais e sentir de outras formas as artes não-visuais. Esse ser sensível tem a ver com a experiência, tem a ver com se sensibilizar com o que lhe acontece, com o que lhe atravessa, com o que lhe toca. Sobre essa afirmação, Jorge Larrosa Bondía bem desenvolve em seu texto “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”:
“...a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. (LARROSA, 2002, p. 23)
E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (LARROSA, 2002, p. 24)
Meu objetivo ao trazer esse trecho é de fazer um apelo: deixem-se afetar pela experiência, tanto na arte “erudita”, aquela que se apresenta nos museus, que passam por curadoria e mediação, mas também pela arte “marginal”, ou melhor, a anti-arte (se prefere entender assim), aquela que se apresenta nas ruas, nos 45 segundos dos semáforos, nas tipografias clandestinas em prédios, nas frases dramáticas rabiscadas em pontos de ônibus, nas composições de adesivos em placas de trânsito, nos gritos poéticos em batalhas de rima. Deixem-se afetar, sintam com calma, mesmo que rapidamente, com atenção aos detalhes. Isso é o que caracteriza o objetivo estético e, muitas vezes, o objetivo que a pixação carrega.
Como afirmei, a pixação também pode carregar objetivo pedagógico, não só estético. Há aquelas pessoas que gostam de definir o pixo enquanto uma cultura e ação política, de compreender enquanto insubordinado, revolucionário. E o pixo pode ser sim político, contanto que a pessoa o julgue como tal. Para fins de compreensão vou trazer uma experiência pessoal. A pixação entrou em minha vida simultaneamente com a militância organizada. Andavam ora separados, ora juntos. Eu sempre tomei a pixação para mim enquanto um ato político. E no início, a pixação era pra mim “uma forma de expressar a revolta que sinto”, muito daquela romantização que se tem de o pixo ser um “grito de revolta dos oprimidos”. E no início sempre após assinar o meu vulgo eu também assinava alguma frase de descontentamento, uma frase que expusesse alguma palavra de ordem, uma simbologia, etc, e ficava frustrada caso não tivesse essa frase em conjunto com meu vulgo, eu sentia que deixava o meu pixo tomar uma lógica individualista e acrítica por não ter uma simples frase. Com o tempo, nas vivências em rolês de tinta, compreendi que quem faz o pixo ser político ou não, é quem assina. Meu pixo não é menos político por não ter um “poder para o povo”, um “pelo fim da PM”, um “1312” acompanhado. Enquanto eu me separava dessa quase que indispensável função que eu tinha de fazer o meu pixo acompanhado de uma frase política, me veio um diálogo com um companheiro de tinta, que é um dos cabeças da grife que assino, onde ele afirma que, para ele, o pixo não é político, mas sim estético e para fins individuais de inflação do próprio ego. Ele afirmou que ele gostava que as pessoas passassem e vissem o pixo dele ali no muro, mesmo que as pessoas não soubessem quem ele era, só de saber que seu pixo está sendo visto, fazia ele se sentir bem. Tenho para mim esse sentimento como um sentimento individualista, não que seja um motivo para invalidar o seu pixo, mas algo a se questionar dentro de um movimento tão complexo e criminalizado. Não seria quase que uma obrigação para toda pessoa pixadora entender o pixo enquanto uma luta coletiva contra a propriedade privada? Porque ainda há essa alienação quanto à destruição cotidiana que fazemos às estruturas burguesas e higienistas? Quais são os nossos trabalhos enquanto comunistas diante de um movimento com tanto potencial revolucionário, mas que é tão hegemonizado por uma lógica individualista?
Com toda essa reflexão, o que quero combater não são as pessoas pixadoras com perspectivas individuais, jamais faria isso. O que busco combater aqui são ês comunistas que afirmam cegamente que a pixação é “um grito dos oprimidos”, “uma manifestação de ódio ao capital”, e esses tipos de jargões e frases que soam para mim como uma glamourização de um movimento muito mais complexo do que afirmam ês comunistas que não vivenciam e nem sentem a rua. Ainda há muito trabalho a ser feito. E ouso dizer que para pensar a pixação dentro da nossa militância devemos abandonar essa categorização do pixo enquanto “um grito dos oprimidos”, porque para boa parte das pessoas pixadoras não é assim. Não significa, também, que devemos assumir totalmente as perspectivas individualistas de boa parte destas pessoas pixadoras, mas como afirmei, é muito mais complexo e tem grandes particularidades que devem ser analisadas com mais calma.
Acho interessante pontuar, também, que dentro do movimento do pixo político há pessoas pixadoras, em geral de organizações antifascistas, que se preocupam em realizar atropelos em massa de pixações com caráter reacionário e fascista. Organizações antifascistas, desde antes do aerossol, se preocupavam em atropelar mensagens e simbologias do tipo. E eu considero extremamente necessário ações com este propósito, não só acho necessário como acredito que seja tarefa de toda pessoa que se diz antifascista realizar esses atropelos também. Isso demonstra uma forma de disputa territorial de caráter explicitamente político.
Agora vou inserir no debate algo mais interessante: as grifes, famílias, crews e turmas. Se por um lado a pessoa pixadora desconsidera o sentido político do seu pixo, desconsidera o peso e os interesses coletivos que um pixo individual tem em toda sociedade, por outro, essa mesma pessoa pode ver a pixação dentro de um grupo como algo extremamente coletivo, que a faça sentir vontade de entrar em uma luta e disputa por território. Dentro do movimento do pixo, há grupos que assinam uma simbologia com o objetivo, mesmo que implícito, de dominação territorial, e esses grupos geralmente possuem uma estrutura organizativa vertical, mas também há grupos que se organizam horizontalmente. Existem grupos que estão na atividade há algumas décadas, dos anos 80/90 e vivendo até os dias atuais em vários estados e cidades ao redor do Brasil. Nessas grifes, famílias, crews, turmas, etc, os sentidos de coletividade, fraternidade, respeito e apoio mútuo se fazem fortes. Muitas pessoas ao entrar nesses grupos dariam sua vida pelas pessoas que compartilham da mesma assinatura e pelo grupo que assina, e muitas vezes entram em brigas com outros grupos por terem esse senso de coletividade muito forte. Um movimento interessante a se notar é que, dentro da cultura desses grupos por existir mesmo que implicitamente uma disputa por território, quando os grupos brigam entre si, se intensificam as disputas, os grupos começam a massificar a sua atuação nas ruas como prova de força e dominação de território. Além disso, há outras formas de provar essa força, superando os grupos rivais, quebrando eles em uma agenda, colocando seu pixo e o do seu grupo mais alto do que o pixo deles. Essas brigas entre grupos já resultaram em violências físicas e algumas mortes.
Queria tomar liberdade agora para entrar brevemente no quesito da diversidade de modalidades, que abarcam questões regionalistas, sociais, culturais e históricas, mas é tão amplo que eu não sou capaz de abordar tudo por completo. Há lugares onde pixos são feitos de uma forma, e lugares que são feitos de outra, como por exemplo, o Pixo Reto que é muito presente em regiões próximas a São Paulo e Paraná, ou o Xarpi e a Tag no Rio de Janeiro e Espírito Santo, ou ainda em Goiás que recentemente descobri que tem uma forma-estética própria também, é uma outra forma de se fazer pixo, que em breve gostaria de conhecer mais. Essas são as modalidades regionais que eu posso mencionar, não que sejam as únicas, e não é porque se faz mais presente certas modalidades em determinadas regiões que em outras não estão presentes também, elas se misturam e são fluídas. Ainda há as modalidades com diferentes procedimentos e superfícies. Acredito que algumas pessoas lendo esse texto já devem ter visto algum Grapixo, que traz uma estética mais colorida para o pixo sem perder a essência dele, com contorno e preenchimento, seja em Pixo Reto, Xarpi, Tag, etc. Outras já devem ter visto a modalidade Risca-Vidro (que eu tanto amo) que é feita riscando vidros, em geral, de lugares movimentados como as janelas dos ônibus. E como não falar das Escaladas? Subir em janelas, beirais, prédios de alturas perigosíssimas para assinar o seu pixo. E as Cabadas com um rolinho e extensor alcançando lugares altos sem tirar os pés do chão, isso quando não se utilizam de mais de uma modalidade ao mesmo tempo, porque também tem pessoas que fazem a escalada e assinam de cabada. É claro que eu também não poderia deixar de falar do Rapel, as pessoas que escalam o prédio por fora de mochila nas costas com metros e metros de corda e uma cadeira para se pendurar e assinar verticalmente o seu pixo. Meu interesse em trazer esse breve panorama das diversas modalidades na pixação, é expor a possibilidade de pensar a pixação a partir de uma compreensão estética complexa e diversa com influências culturais, sociais, regionais e históricas.
Propagandear, agitar e organizar a nossa classe
A partir de agora me atentarei a escrever menos sobre a complexidade da pixação e mais sobre como nós, enquanto comunistas e um movimento revolucionário, devemos nos portar em relação aos movimentos de cultura da rua e a arte marginal/anti-arte.
Nossa militância ainda segue uma linha um tanto higienista, ou noutros momentos de romantização. Da romantização do pixo já tratei nos eixos anteriores. Mas agora aponto o higienismo no sentido de compreender que nossa atuação nacional se dá muitas vezes em espaços higienizados com ações que correspondem a esse espaço, e nos acomodamos com esses espaços e ações a ponto de criarmos uma cultura política que ignora as complexidades da arte marginal na sociedade, a forma como ela atravessa os espaços e como podemos nos utilizar dela. Então o que se tem muitas vezes é uma militância que sente uma aversão aos espaços de cultura popular, que sente aversão às ações clandestinas (ações penalizadas pela justiça burguesa), e não é que essa militância aponte publicamente essa aversão, mas delimitam, mesmo que inconscientemente, as nossas tarefas a não se aproximarem desses espaços e ações. É nítido que nossas tarefas se prendem na lógica burguesa de preservação das estruturas que lhe servem, então temos uma militância com quase sempre pouca experiência em ações organizadas e planejadas de destruição dessas estruturas (físicas ou ideológicas). Há pessoas dentro da militância que parecem sentir nojo e não querem pôr a mão na massa, fazer com as próprias mãos, e por muitas vezes essas pessoas deixam que deleguem tarefas, às vezes as de maior risco, para militantes que por suas particularidades sociais já se encontram próximes a essa cultura de rua ou dessas ações clandestinas, pessoas que já são alvos cotidianamente das forças repressivas do Estado. Direciono a minha crítica para que no próximo período nosses militantes possam se debruçar diante das tarefas de pôr a mão na massa, direciono essa crítica especificamente aes militantes que possuem uma posição social e financeira que são sim privilegiadas, porque geralmente são essus militantes que deixam de realizar tarefas de colagens de lambes, pixações agitativas, trabalhos braçais, vigílias e atuação em ocupações e com pessoas em situação de rua, mas quando são tarefas de holofote, de fala pública, etc, são es primeires a se disporem para a tarefa. Meu interesse é de expor que há organismos que não realizam ações nesse sentido, o que a princípio já expõe uma certa higienização, mas quando realizam por vezes acabam por reproduzir explicitamente essa higienização na militância.
Agora que expus minhas críticas à cultura política que viemos a um tempo criando dentro dos nossos organismos, e que devemos superar, me sinto mais confortável para apresentar propostas para guiar nossas tarefas revolucionárias integrando as “práticas clandestinas” e da arte marginal à nossa vida política.
Primeiro gostaria de apontar que, para mim, não faz sentido se utilizar de uma forma de expressão da cultura das ruas por pessoas que não sentem o menor interesse em vivenciar ela. Para mim, não faz sentido usar a prática da pixação se o organismo de base que a realizar, no momento seguinte não estará se aproximando da base, se o propósito será unicamente de se aproveitar de uma estética periférica. Tenho por interesse, ao indicar propostas que guiem nossas tarefas, que se aproximem da cultura da arte marginal e des artistas de rua. Terão pessoas que avaliarão como falta de responsabilidade a minha posição, mas pouco me importa esse conformismo com os ambientes bem regrados e limpinhos que a nossa militância a tempos tem se acomodado. Pouco me importa se terão pessoas com medo imobilizante de realizar vendas de produtos contrabandeados/pirateados para alimentar a nossa política financeira, assim como pouco me importa se terão pessoas que não concordarão com a venda de produtos ilegais em espaços de socialização, e se terão pessoas que não concordarão com o meu incentivo de inserir nossa militância nos espaços da arte marginal e clandestina. Afirmo que essas pessoas, que não concordarão, não conseguem compreender o seu próprio moralismo e nem compreender, por exemplo, que um grande perfil da classe trabalhadora são es ambulantes, e que vivenciar e trabalhar com a mesma realidade dessas pessoas trabalhadoras também é parte da solidariedade à nossa classe, e que vivenciar, trabalhar e apoiar mutuamente esses trabalhos, também são formas de iniciar uma atuação com um perfil muito mais marginalizado e proletarizado da nossa classe. Assim como realizar aproximações com artistas marginais também.
Sinto um potencial revolucionário muito maior entre es MCs nas batalhas de rima, entre es poetises urbanes, entre as pessoas pixadoras, entre es artistas de práticas circenses nos semáforos, entre es camelôs, entre es ambulantes, mas olha só que ironia, na medida em que defendo essa posição ainda tem pessoas dentro da nossa organização que acreditam que há maior potencial revolucionário entre os praças, entre os militares, os mesmos que reprimem as formas de trabalho e expressão artísticas das pessoas que citei anteriormente. Farei questão de defender ferozmente a minha posição de que nossa luta tem que ser pelo fim de toda instituição policial e militar, que por sua própria estrutura já é assassina, racista, higienista e antipovo.
Precisamos massificar a nossa proletarização com a inserção nesses meios marginais, precisamos tomar como tarefa prioritária da nossa militância estar em batalhas de rima, nas batalhas de poesia, nos points, que são os pontos de encontro entre as pessoas pixadoras para trocar folhas, assinaturas, vivências, socialização, etc. Essa tarefa tem que fazer tão parte do nosso cotidiano, para que cheguemos em um momento que já não se torne mais uma tarefa a ser cumprida por obrigação, mas sim algo que fazemos por puro prazer, por termos criado uma nova cultura política na nossa militância de sentir gosto ao participar desses espaços, por compreender que ali a arte respira e a classe trabalhadora vive. Eu apelo também para que os organismos incentivem e criem possibilidades des militantes desenvolverem suas práticas artísticas. Se há militantes que possuem interesse em participar, rimando ou assistindo, de batalhas de rima, faremos com que isso seja possível, e estaremos ali também para apoiar nosses militantes MCs ou acompanhar es militantes que querem só assistir, assim como se há militantes com interesses em fundar novas batalhas de rima, também devemos criar essa possibilidade para que consigam. Se há militantes que possuem um desenvolvimento das práticas circenses, então vamos buscar formas de incentivar esta pessoa, ajudar ela a se apresentar nem que seja nos semáforos, fazer as arrecadações de janela em janela de carro. Se há militantes com dificuldades financeiras, vamos tornar possível, através da venda de produtos contrabandeados, que essa pessoa se estabeleça financeiramente, porque se não temos no nosso organismo militantes com estabilidade financeira, o nosso organismo também não será estável. É claro que quando aponto essas questões de auxílio dos organismos, não digo que deve se criar uma dependência dessus militantes em relação a esses organismos, mas sim de criar possibilidades para que essas atividades aconteçam e que aos poucos sejam tocadas de forma autônoma por essus militantes, talvez em conjunto com mais militantes ou independentes. Essas práticas cotidianas chegarão num momento onde se tornará comum encontrar nos points as mesmas pessoas que estavam na reunião do seu núcleo ou célula de base, que se tornará comum ver algume camarada nosse ganhando alguma batalha de rima ou até mesmo sendo mestre de cerimônia da batalha, que se tornará comum encontrar nos semáforos algume camarada malabarista, ou algume camarada vendendo zine, algume ambulante ou camelô nos centros comerciais. Deve se tornar tão comum que a nossa militância não só esteja nos espaços, mas que sejam vistas pelas pessoas destes espaços como pessoas que elas podem confiar, que nossa militância seja conhecida e seja referência para essas pessoas.
Outra coisa que gostaria de apontar aqui é a compreensão que temos enquanto cultura popular, vejo muitas falhas acontecerem em várias compreensões, uma delas é de julgar como cultura popular toda aquela arte “crítica”, que de alguma forma dá uma cutucada explícita no capitalismo, ou que possui uma palavra de ordem, mas assim como apontei nos eixos anteriores, nem toda arte possui objetivo pedagógico, e o que faz a arte ser política é quem a produz. Então não julguem como cultura popular e arte crítica às estruturas burguesas somente funk consciente, somente rap de crítica, etc, abandonem imediatamente essa lógica, parem de colocar músicas “críticas” nas rodas de socialização da militância, isso é broxante (ou cringe). E também, deixem de pensar que o que faz a arte ser crítica é somente o conteúdo apresentado de imediato por ela, aquilo que se fala, porque aquilo que não se apresenta de imediato também é crítico, também diz respeito a um desenvolvimento histórico, cultural e social que a arte tem tido. Aquilo que não se apresenta de imediato, ou seja, os diferentes procedimentos sensoriais, o beat, a superfície, etc, também é político, ou vocês acham que as músicas que distorcem completamente a teoria musical é apenas brincadeira? Vocês realmente acham que as artes visuais terem saído das formas tradicionais que se tinham das esculturas, pinturas e desenhos é uma movimentação comum? Todas essas movimentações são orgânicas e espontâneas, não acontecem de forma planejada, mas também são políticas. Mas uma coisa importante a se tomar cuidado é não abrir brecha para grupos artísticos neonazistas/fascistas, porque eles também se apropriam dessas “inovações” e “mudanças” artísticas daquilo que não se apresenta.
Partindo do parágrafo anterior, gostaria de abrir uma reflexão sobre a arte-com-a-classe e a arte-com-e-para-a-classe, que, para mim, se dão em dois momentos diferentes, a primeira sendo em uma conjuntura da nossa classe ainda sem grandes acúmulos político-organizativos, onde temos a grandiosa tarefa de sistematizar o que a classe já tem desenvolvido de cultura, e não tentar ensinar-lá o que é a cultura popular. A partir desta sistematização do que já se tem desenvolvido, a nossa tarefa se torna a de organizar uma agitação e propaganda no sentido da construção do poder popular, de uma autodeterminação, autodefesa e autossuficiência da nossa classe em relação ao Estado burguês, e é importante que nossa tarefa neste momento seja guiada pela massiva propaganda política marxista-leninista, para não cair nas perspectivas anarquistas e sindicalistas revolucionárias que entendem a autogestão e o poder popular enquanto um fim e não um meio (e sim, estou propondo aqui a assimilação entre a ideia de autogestão e poder popular, não a forma anarquista (que inclusive considero falha), porque compreendo que a nossa classe precisa ter a autonomia, a autodefesa, a autossuficiência e a sua autodeterminação organizadas por ela própria, e me vejo na obrigação de afirmar isso porque muitos comunistas tem asco a palavra autogestão). E a segunda forma de arte, a arte-com-e-para-a-classe, se dá em uma conjuntura de já estabelecido o poder popular, onde, nesse período transitório, se dá a formulação e a pedagogização da nossa classe em torno de um nova moral, a moral comunista, onde se dará uma formulação de uma nova perspectiva de relação entre as pessoas, com a natureza, com o trabalho e a vida, que entra em conflito e contradição completo com as perspectivas e ideologias burguesas. Neste momento se colocará uma nova relação com a cultura também, que será construída e pensada de forma histórica, social, cultural e materialista.
*Pixadora, slammer, poetisa, MC, malabarista, artista visual, travesti, negra, bissexual e militante da Reconstrução Revolucionária (RR) do Paraná.