'Tirando pó de alguns debates: Gênero e formação – debates e propostas para uma juventude verdadeiramente igualitária' (Jaqueline Tavares)

Nossa política formativa hoje pouco faz para reverter vetos que a sociedade capitalista faz à mulher trabalhadora, e que bloqueiam o acesso a ferramentas centrais para tomada do poder e para destruição do capitalismo e do patriarcado.

'Tirando pó de alguns debates: Gênero e formação – debates e propostas para uma juventude verdadeiramente igualitária' (Jaqueline Tavares)
"Essa reprodução vem da incapacidade de inverter e subverter os padrões de gênero da sociedade, e uma certa internalização de linhas equivocadas que tomam esses vetos como situações naturais, de forma anti revolucionária e mesmo reacionária."

Por Jaqueline Tavares para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

“[...] Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não tem sonhos, só tem presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas
[...]

As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas. [...]”


Chico Buarque, Mulheres de Atenas

Essa tribuna foi escrita originalmente em fevereiro de 2022, como uma contribuição ao meu núcleo de base e enviada também depois como tribuna ao último Congresso da UJC. Decidi reenviá-la mais uma vez por creio que parte das suas discussões ainda podem ser pertinentes, e anteriormente ela foi acessível apenas aos militantes da Juventude à época, não tendo sido socializada nem com o Partido, nem com a polêmica pública.

Eu não concordo plenamente com o meu próprio debate aqui. Ela é muito introdutória, bastante marcada com os problemas da época e limitada sobretudo no que toca às propostas, que considero em muitos sentidos insuficiente e pouco conectadas a outros temas além da questão de gênero e da formação. Prefiro, porém, vinculá-la integralmente e deixá-la vulnerável tanto às críticas alheias quanto às minhas. Ela tem ainda uma parte II, uma tréplica a algumas respostas que recebi.

Vínculo o texto integral enviado ao Congresso da UJC, com a adição do trecho da música acima que tinha colocado na contribuição original e retirado na versão 2, um equívoco. 

*

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

DEBATE TEÓRICO:

I. Apontamentos iniciais 

II. Problemas de desigualdade de gênero em nossa organização:

Divisão sexual do trabalho

Divisão sexual do conhecimento

Relacionamentos pessoais e dinâmica de gênero

Insegurança e deslegitimação

III. Falsas soluções:

O fetichismo da mulher como quadro político

A reprodução dos vetos da sociedade patriarcal: à política, ao saber e às armas

Como os camaradas lidam com machismo

Como as camaradas lidam com machismo

PROPOSTAS:

Organização

Formação

Agitação e propaganda

A presente tribuna foi redigida originalmente em fevereiro de 2022 como uma contribuição no núcleo USP. À época (e ainda hoje), éramos frequentemente interpelados pelo problema da formação de camaradas mulheres: estas ficavam sobrecarregadas, afastadas de dimensões decisórias e formulativas da militância, com casos de desligamentos, afastamentos, inorganicidade e alocação equivocada nas tarefas. Problemas que não são, evidentemente, exclusividade das camaradas mulheres, mas que no seu caso se reproduzem de maneiras particulares, derivadas do machismo ainda presente em nossas fileiras e os limites das nossas atuações políticas para superá-lo.

Escrevi a contribuição tratando do núcleo, mas também de problemas mais amplos de nossa militância e do nosso campo político. Diante justamente da possibilidade de ampliação dessa discussão, resolvi enviá-la como tribuna para nosso Congresso, com algumas modificações, sendo elas: essa nova introdução, o desenvolvimento mais aprofundado das propostas previamente esboçadas, síntese e redução de alguns trechos de discussão, revisão geral, mudança de título e acréscimo uma bibliografia.

Para além dessas modificações, inicio novamente com três apontamentos importantes, para que a análise aqui seja a mais científica possível. Em primeiro lugar, esse texto foi escrito a partir da atuação em núcleo, mas que considero que pode ser expandido para a nossa juventude e para esquerda progressista de maneira geral. Os problemas que tento diagnosticar estão longe de ser locais. Ter esse quadro mais amplo em mente é importante não apenas porque realizamos trabalhos “para fora” (afinal, nossos camaradas não podem machistas nem com camaradas nem com outras pessoas), mas porque nossos próprios debates são influenciados pelas concepções políticas e pelos equívocos de outras forças, o que tratarei mais adiante.

Em segundo lugar, o debate de formação de quadros mulheres se insere em um problema mais amplo de formação de quadros. As dificuldades que temos ao tratar da questão de gênero, ainda que com especificidades, se relacionam com deficiências mais gerais dentro da formação. Não me debruçarei de maneira tão ampla sobre o problema formativo em termos diagnósticos. Em termos de proposta, porém, as soluções que apresentam buscam resolver os problemas formativos desse grupo específico através de políticas e ferramentas organizativas que servirão ao conjunto da militância como um todo.

Em terceiro lugar, ainda que muito do que será debatido aqui se estenda a outras questões de opressão, elas não serão tratadas com enfoque teórico. Opressões específicas têm dinâmicas específicas, origens específicas e específicas, mesmo que possam se entrecruzar. Tratar gênero, raça, classe, sexualidade e outras condições de opressão como parte de uma mesmo pacote pode parecer solidário e progressista, mas é incorrer no erro de ignorar as especificidades de cada condição e silenciar a dinâmica de dominação que ocorre entre e sobre elas, em diferentes contextos.

PARTE I – DEBATE TEÓRICO

I.  Apontamentos iniciais a partir de “A questão da mulher na nossa organização”

“[…] Camaradas, inicio esse documento, primeiramente, colocando a necessidade urgente que possuímos de discutir tal assunto, que não é fundamental apenas em nossa organização, mas que, com a crescente cooptação do mesmo por movimentos liberais, torna-se essencial para que consigamos avançar em teoria e prática de nossas condições específicas. Nós, enquanto uma organização comunista que se propõe a prefigurar relações possíveis de uma sociedade socialista, temos o dever de debatermos sempre a maneira com que configuramos nossa consciência, estabelecida nos moldes de uma sociedade burguesa, pela qual estamos constantemente influenciados. Se compreendemos que somos frutos de relações sociais históricas, definidas a partir de um período de forças e relações produtivas, compreendemos, portanto, que nossas atitudes não estão isoladas em um individualismo abstrato, mas pertencem a uma teia de configurações impostas através de fixações muito claras, no caso, de classe, que necessitam que opressões estruturais, tais como machismo, racismo, lgbtfobia existam, para que a propriedade privada, condição essencial da manutenção do sistema capitalista, se perpetue de forma a possibilitar que o capital continue se reproduzindo.[...]”(Camarada Ana Clara, “ A questão da mulher em nossa organização”, Tribuna 018 – VI Ativo do Núcleo USP)

O que são movimentos liberais?

Quando discutimos a questão da cooptação do feminismo pelo capitalismo neoliberal, a primeira coisa que vem a nossa mente é o feminismo corporativo, as campanhas de publicidade pseudo feministas, a ideia do empoderamento, a glorificação de mulheres bem sucedidas (geralmente brancas, ricas, famosas e dentro do padrão de beleza), enfim, a capitalização da pauta. Essa imagem, ainda que correta, não é o todo do liberalismo sobre a pauta, ou, pelo menos, não é o todo de concepções feministas que capitulam diante do capital.

Vivemos um um momento pós queda do Muro de Berlim, da União Soviética e no qual os movimentos sociais, sindicais e populares de maneira geral estão acuados. Cada vez mais nossas mobilizações são pela defesa do mínimo, pelas garantias básicas de sobrevivência, lutando contra o esvaziamento e a cooptação. Os sindicatos são dominados pelo campo democrático-popular, o povo é praticamente tirado das ruas por parte da esquerda (pensemos o que foi a campanha anti atos que ocorreu no último ano, por exemplo). Se somos capazes de olhar para a maioria da esquerda e da centro esquerda hoje e diagnosticar seus limites, sua falta de compromisso de classe, a superficialidade de seus debates econômicos e a ausência de horizontes revolucionários, por que não somos capazes de estender esse diagnóstico ao debate de gênero? 

Partidos, correntes e campos que tratam a pauta de forma oportunista, muitas vezes descolada da classe (ou conectada a esse de maneira muito superficial, transformando a interseccionalidade em um chavão sem consequências políticas sérias), com uma análise pouco materialista e histórica das relações de gênero, tendendo a descolar a atuação de mulheres do todo da política, confinando-as à movimentos de mulheres e coletivos (1). Precisamos estar sempre atentos de como essas concepções penetram na nossa linha, tanto por referências teóricas como pela transmissão de práticas e posturas liberais e identitárias. (2)

Consciência de menina, Consciência de menino

“[...] não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência.” (Karl Marx, Para a Crítica da Economia Política (Contribuição) (Zur Kritik der politischen Ökonomie), 1859)

Padrões de gênero são construídos historicamente. Nossas ideias sobre feminino e masculino são construídas historicamente. A divisão sexual do trabalho foi feita historicamente. Nossa consciência é construída historicamente. Hoje, nascemos e crescemos sob o jugo da ideologia dominante, capitalista, machista e patriarcal. Todos nós. Todas nós.

Justifico meu parágrafo de obviedades com dois argumentos. Em primeiro lugar, muitas vezes ao pensarmos nas afirmações colocadas pela camarada, a direção que tomamos é dizer que nem nossos camaradas, comunistas, engajados, estão isentos de serem machistas – o que é verdade, mas é também o mínimo. Cabe dizer que as camaradas também foram criadas sob o jugo da ideologia dominante, e projetam padrões de gênero tanto para dentro como para fora. Mulheres também são machistas.

Essa não é uma afirmação feita com objetivo de igualar de um ponto de vista moral o machismo dos opressores e das oprimidas, mas constatar o fato que a criação patriarcal repercute também na subjetividade das camaradas, na sua auto estima, na sua auto imagem, no entendimento de suas tarefas a partir de sua condição de gênero, como também na forma que as camaradas tratam umas às outras. Se fomos criadas para pensar nas mulheres como menos capazes, o esperado é que consideremos isso de nós e de nossas camaradas. Se temos consciência das limitações colocadas a nós pelo patriarcado e fomos doutrinadas a sermos consideradas fracas, por vezes podemos levar a crer que isso é verdade.

Em segundo lugar, o caráter histórico da opressão de gênero deve ser constatado para que possamos desnaturalizar padrões de gênero, e evitemos cair na romantização da condição da mulher  e numa espécie de inversão de juízos que tome como bom por definição aquilo que foi construído historicamente como feminino, sendo que o caminho é a abolição da divisão do trabalho e dos papéis sociais pautados sobre o gênero. A obrigação do cuidado, a gentileza compulsória, a maternidade compulsória (e como aspecto central da vida da mulher), a monogamia compulsória, o trabalho doméstico, a exclusão da política, da ciência e das forças armadas, não são essencialmente femininos. São consequências históricas de séculos de uma sociedade patriarcal, da exclusão da mulher de todas as esferas de poder e disputa reais, do controle de cada aspecto da sua vida e do direcionamento de sua condição social para que sirva ao homem. Devem ser superados, não romantizados em uma inversão simbólica que não pensa nas consequências políticas reais de sua defesa em abstrato.

 Eterna resistência

Essa necessidade de superação dialoga diretamente com último trecho destacado, e com a provocação sobre o que entendemos por cooptação liberal. O objetivo final de qualquer movimento anti opressão deve ser tornar-se obsoleto. A organização das mulheres como grupo oprimido ocorre porque a sociedade é desigual e machista. Em uma sociedade igualitária, cada vez mais, o gênero como condicionador de exclusão social deve ser combatido. Isso não implica na abolição do gênero como prega transfóbicamente o feminismo radical, mas entender que nosso objetivo político deve ser fazer com que ser mulher (cis e trans) não seja mais um problema a ser resolvido. E se entendemos (e entendemos, porque somos comunistas) que o fim da opressão da mulher deverá se dar concomitantemente à superação do capitalismo, o feminismo classista tem que ter como objetivo derrubar a sociedade capitalista e patriarcal. Não meramente resistir a ela, não meramente oferecer alternativas, não meramente denunciá-la. Deve destruí-la. 

Um movimento feminista e socialista incapaz de se mobilizar concretamente, que reduz seu horizonte de atuação à denuncia de comportamentos machistas e que não pense estrategicamente a destruição do capital e do patriarcado permite que ambos continuem se reproduzindo. Não é verdadeiramente progressista, tampouco verdadeiramente revolucionário. Isso coloca a nós, comunistas, a tarefa de erradicar o machismo das nossas fileiras, dos locais que atuamos e, futuramente, da sociedade socialista, em um movimento em que não basta a boa intenção, não basta  a moral, não basta a denúncia. Precisamos diagnosticar as causas das dinâmicas machista e da dominação gestada por ela e fomentar políticas e uma cultura política verdadeiramente capazes de surtir algum tipo de mudança.

Para tal, o diagnóstico. Vamos aos demônios na sala de estar.

II. Problemas de desigualdade de gênero em nossa organização

A divisão sexual do trabalho

Talvez o mais óbvio deles, a divisão sexual do trabalho tende a alocar as camaradas em trabalhos “tipicamente femininos” (entenda-se: historicamente construídos para subordinar a mulher ao homem e privá-la de toda e qualquer ferramenta ou trabalho politicamente relevante e de potencial emancipador). São essas as chamadas “tarefas de cuidado” (acompanhar camaradas, cobrar tarefas, tirar satisfações, muitas vezes fazendo trabalhos repetitivos que não seriam necessários se os camaradas tivessem o mínimo de bom senso e disciplina), tarefas operativas e organizativas de caráter braçal, que trabalham organização não pelos debates de sentido político que essa área possui, mas quase fazendo um “trabalho de secretária”, no sentido comum do termo (fazer atas, marcar reuniões, cobrar camaradas, entre outros). A tentativa de superar o escanteamento das camaradas mulheres toma caminhos estranhos, sendo um deles a tendência a sobrecarga que na verdade reitera a função “braçal mental” (ou seja, não formulativa, de um trabalho intelectual trabalhoso, mas alienado), problema também trazido na tribuna da Camarada Ana Clara:

“[…] O que percebo, em determinados momentos, é que há também a sobrecarga de camaradas nossas em determinadas tarefas, enquanto que há ausência de camaradas que poderiam auxiliá-las. Isso é grave a medida em que, como sabemos, o trabalho considerado “mental”, como o de organizar todas as tarefas – e aqui, não me refiro apenas à tarefa específica da pasta de organização, para não gerar confusão – também se centraliza nas mulheres e é igualmente cansativo quanto qualquer ‘’outra’’ tarefa. Ao que me parece, é o sentimento de que ‘’não farei’’, sem considerar que alguma outra pessoa – no caso, camaradas – farão, de qualquer forma, e assim, tomarão maiores responsabilidades para si. Tal atitude é grave, pois interfere não apenas na disposição física das camaradas, mas também em sua saúde mental, que é outro ponto importantíssimo que se relaciona diretamente com tudo dito anteriormente. (Camarada Ana Clara, “ A questão da mulher em nossa organização”, Tribuna 018 – VI Ativo do Núcleo USP)

Para além dessa sobrecarga na militância em si, não podemos perder de vista a carga que vem de fora de organização, de trabalho doméstico e de reprodução social em geral. É sintomática a pouca proporção de mães nas nossas fileiras, donas de casa e outros perfis femininos que ficam presos a esses espaços, para além das dificuldades das nossas camaradas em coordenar tarefas e a maior tendência à sobrecarga. Esse é um debate que não pode parar meramente no diagnóstico, mas formular políticas capazes de reverter essa situação, o que passa por dimensões como organização e finanças, que demanda que desenvolvamos uma estrutura de forma que as camaradas não sejam impossibilitadas de militar por estarem presas nessas funções.

 A divisão sexual do conhecimento:

Um desdobramento menos óbvio desta primeira condição é o formativo – e por consequência, político. Cito novamente a tribuna da camarada, debatendo as condições dessa divisão na formação intelectual das mulheres:

“[...]Isso também parte da questão histórica de subjugação da intelectualidade da mulher, deixada em segundo plano para que pudesse dedicar-se integralmente aos afazeres domésticos, afastando-se cada vez mais do trabalho manual e intelectual. Embora a mulher trabalhadora possua a necessidade de trabalhar para garantir, junto ao homem, o sustento do lar – atuando na chamada dupla-jornada –, também sua inteligência foi domesticada de tal forma a colocá-la em segundo plano nas decisões da instituição da família e consequentemente, da sociedade. Evelyn Reed dirá que ‘’as mulheres, como sexo, sofreram a mesma situação que os países coloniais experimentaram sob o domínio capitalista’’e acredito que isso sintetiza com qualidade a questão de inferiorização da mulher.[...]”(Camarada Ana Clara, “ A questão da mulher em nossa organização”, Tribuna 018 – VI Ativo do Núcleo USP)

Essa subjugação tem uma série de consequências. A primeira mais óbvia é que o veto da mulher à esfera política implica também no veto aos debates e formação teórica ativa. Não é raro que tenhamos espaços em que as camaradas não abrem a boca: a disparidade de falas de homens e mulheres é quase cotidiana nas nossas formações. Creio que haja uma série de razões para isso, mas ressalto uma (abordarei outras mais adiante). O maior “interesse” dos homens sobre a política, por vezes com maiores acúmulos e mais confiança para expressá-los, a “pendência natural” dos homens à disputa, e a nossa total ausência de uma política que reverta tanto essas diferenças de acúmulo quanto essa capacidade de expressá-los. Esse interesse não se dá naturalmente, mas é fomentado pelos papéis de gênero, pela divisão sexual do trabalho e pela dinâmica social de dominação do homem sobre a mulher. Ao mesmo tempo que socialmente gestada, essa tendência é tão dominante, construída tão longa e profundamente na nossa formação ao longo da vida que as vemos como pendência natural.

O veto de uma participação verdadeira nas discussões (não somente as teóricas, mas também políticas de maneira geral) leva a uma alienação do processo de tomada de decisão. Uma camarada que não seja capaz de se formar teoricamente e de desenvolver suas tarefas, de formular, de polemizar, de intervir politicamente, de disputar os espaços, não poderá se formar plenamente. Temos algum grau de consciência disso, mas creio que temos tomado o caminho errado para resolução desse problema.

A segunda consequência, que é gerada também por uma intenção quanto a formar as camaradas sobre a condição de opressão que sofrem, mas sobretudo pela reprodução dos estereótipos de gênero, é uma espécie de separação dos tipos de conhecimento. Essa separação não é planejada, mas é resultado dos “interesses naturais” que mulheres e homens desenvolvem ao longo da vida. Este é um problema, porque, para mulheres, reproduzem um veto velado a certos espaços e temas, enquanto desobrigam os homens a se formar acerca da opressão que exercem. 

Quantas camaradas mulheres são especialistas em Lênin, em Marx, debatem economia política, filosofia, ciência, movimentos sociais, teoria militar, atuam em comissões de segurança, sindicatos e outros espaços “tipicamente” masculinos? Quantos camaradas homens são capazes de debater gênero com profundidade, compreendem questões ligadas a reprodução social e maternidade, leem teoria feminista e pautam esses debates com a mesma preocupação e engajamento que as camaradas que sofrem com isso? E mais importante, quanto disso ocorre na média da nossa militância, para além de camaradas excepcionais ou fora da curva que por um motivo ou outro tenha conseguido romper esse padrão, sem que o padrão em si tenha sido abolido dentro da organização?

Relacionamentos pessoais e dinâmica de gênero: “A mulher do Lenin”

As relações entre camaradas são parte do cotidiano do movimento comunista, de envolvimentos casuais a literalmente casamentos. Essas relações, ainda que não sejam em si um problema – e sejam um resultado esperado da convivência intensa entre pessoas que compartilham ideais, valores e planos de vida comum – não são imunes à dinâmica de opressão de gênero e não transcendente como mera questão pessoal, sendo entrecortada por problemas políticos – como a tribuna da Camarada Ana Clara versa muito bem.

Gostaria de aprofundar a discussão com exemplos concretos de problemas bastante comuns, que são gestados por relações entre camaradas em ambiente em que ainda não superamos os problemas de machismo – e que acabam por alimentar essa disparidade de gênero. Ressalto ainda que essa dinâmica não implica que a totalidade dos problemas ocorra do homem contra a mulher, podendo ser o inverso ou mesmo tratando de relações homoafetivas. Como estamos falando da situação mais comum e como essa relaciona a certos padrões de gênero, a forma como homens e mulheres são afetados por eles politicamente é bastante diferente.

O primeiro problema é o caso ilustrado pela Camarada Krupskaia, a situação em que uma militante é resumida à condição de “mulher de camarada tal”. O caso da mulher do Lenin é bastante exagerado porque estamos falando de duas referências gigantescas, mas quem tem paralelos no cotidiano da nossa militância, de camaradas que são resumidas à condição de companheiras de outros camaradas, o que tende a se reproduzir não apenas pelo predomínio de homens como figuras públicas e papéis de liderança, mas também pela reprodução da tendência de relacionamentos nos quais homens são mais velhos, mais experientes e em muitos sentidos dominantes. (3)

O segundo problema é a incapacidade de separação das tarefas e das relações pessoais. Não é raro vermos nos atos camaradas de mãos dadas, extremamente próximos e abraçados,  atrapalhando a execução de tarefas. Esse não é um problema de um gênero ou outro, evidentemente (e denota uma certa imaturidade e falta de disciplina), mas se torna também um problema uma vez que, afinal, as relações tendem a apagar politicamente as mulheres e não reverso. 

O terceiro problema é a incapacidade de separar militância de relações casuais, que gestam no coração da nossa organização uma série de problemas ligados à dinâmica do gênero. A criação machista leva os homens a pensarem que as mulheres lhe servem e as mulheres para acharem que seu propósito é agradar homens, e isso permeia também relações, mesmo as mais casuais. A contribuição da Camarada Ana Clara versa muito bem sobre uma falsa concepção do que seria o amor camarada, amor livre, e podemos trazer exemplos de sintomas desse equívoco:  busca por aprovação masculina, o chamado malegaze” (4), hiperssexualização e objetificação das camaradas, fomento à rivalidade feminina e falta de responsabilidade afetiva nas relações. Como no exemplo anterior, esse problema não afeta necessariamente só mulheres, mas pensando já na disparidade de gênero e nas situações cotidianas concretas que vivenciamos dentro e fora da militância, não é difícil saber quem é mais afetado(a), e como isso ressoa em outros problemas.

Essa sessão é um exemplo claro de como o problema do machismo alimenta e é alimentado por outras questões de vida interna, como falta de camaradagem, falta de disciplina e dificuldade de lidar com problemas pessoais da militância. É um exemplo também da demanda de uma ética comunista responsável em todas as dimensões da vida – incluindo a vida privada.

Insegurança e deslegitimação

Da menor quantidade de acúmulos gerados pela hostilidade dos espaços políticos às mulheres e da menor auto estima derivada da intelectualidade como atributo masculino vem a insegurança. Deriva também do desleixo da organização em tratar casos de machismo, sobretudo de camaradas homens dominando debates, “falando demais”, tratorando as camaradas politicamente e as lotando de tarefas operativas desgastantes, somente. Ainda que eu discorde de muitos das críticas colocadas palas camaradas quanto a frequência e a forma que isso se manifeste (e, sobretudo, de como devemos corrigi-los – o que desenvolverei melhor adiante), estes são problemas reais, que debatemos muito pouco coletivamente (e que alimenta essas concepções equivocadas das camaradas, uma falta de debate que a meu ver vem tanto da condescendência já citada, mas também de uma perspectiva moralista sobre o tema e de um certo constrangimento em encará-la).

Refletir sobre a insegurança das camaradas para militar é difícil por tratar de algo bastante subjetivo e pouco mensurável, mas é importante pontuá-la, porque ela é alimentada e alimenta todos os problemas outros que afetam as camaradas no interior da militância, gerando um ciclo vicioso. Camaradas inseguras não intervém logo achamos que elas não têm potencial, logo não as formamos decentemente, logo elas não intervém…

Dessa menor capacidade e da impressão da menor capacidade vem a deslegitimação, também bem trabalhada pela tribuna da Camarada Ana Clara. A deslegitimação é fomentada por uma cultura de críticas confusas, que comentei na introdução, tornando difícil a auto correção quando a crítica não vem, vem excessivamente pesada ou atrasada. Como a insegurança, é um problema de difícil descrição, mas que configura um plano de fundo para todas as outras questões.

Aí vemos tudo isso, e o que fazemos? Vem aqui o ponto mais importante da contribuição. Até agora sistematizei acúmulos prévios, fiz alguns acréscimos, mas como um prelúdio. Afinal, e a grande questão é essa: desde a tribuna que abriu esse debate, me parece que avançamos muito pouco, e a nível local em alguma medida retrocedemos. Isso ocorre não apenas por mero erro de leitura, mas porque esse gera políticas problemáticas, que alimentam o que buscam findar. Vamos a elas.

III. Falsas soluções

O fetichismo da mulher como quadro político

A Política é, afinal, um espaço hostil para mulheres. Já trabalhamos esse ponto, que me parece um consenso na militância. Se deixarmos tudo acontecer “naturalmente”, as lideranças serão masculinas, como consequência de uma série de fatores históricos de uma sociedade patriarcal e machista. De forma bem intencionada, mas um pouco ingênua, e influenciada por uma visão deturpada de Política, temos tentando resolver esse problema formando mulheres como quadro político. Tudo isso e somente isso.

Parece que entro aqui em contradição, uma vez que a solução para falta de mulheres tarefas políticas e direção é formá-las para tal, o que é verdadeiro, mas o problema é muito mais complexo  do que parece à primeira vista. Em primeiro lugar, porque não devemos pensar a Política como uma parte de nossa atuação, e sim como todo que a estrutura. Como em todo setor da militância, deve haver sim uma formação especializada relacionada aquela tarefa, como direção deve ter capacidade de diretiva e, em tarefas ligadas à esfera da política (pensada como secretarias, direções, extensões ou outras derivadas dessas esferas), uma capacidade de síntese política – para fora, apresentando corretamente a linha da organização e sabendo defendê-la, e para dentro, de dirigir a instância que constrói (daí a importância diretiva tão importante de quadros políticos).

Apesar de tudo isso, porém, a Política não é monopólio da esfera política das tarefas. Somos uma organização política. Todos os trabalhos que fazemos são políticos, não apenas pensando na atuação cotidiana, mas nas decisões que tomamos em outras esferas da militância. Temos Políticas de finanças, Políticas de Agitação e Propaganda, Políticas de formação, Políticas Organizativas, Políticas para o Movimento de Massas, e assim vai. Só teremos um bom trabalho nessas esferas se estes forem feitos por militantes disciplinados, bem orientados, bem formados, que compreendam suas tarefas, se engajem, politicamente ativos e formulativos. Um camarada bem alocado e bem formado de qualquer esfera da militância tem papel muito mais Político do que um camarada alocado em uma tarefa diretamente política sem preparação para tal, que não entenda e se não acostume a sua tarefa, porque esse camarada será levado pelos outros, mesmo sendo oficialmente direção. Pode ser um quadro, pode tocar tarefa política, mas não será um Quadro Político. 

É isso que fizemos no último período com as nossas camaradas. Não temos camaradas mulheres em tarefas diretivas, então a solução é colocá-las em tarefas políticas, sem considerar suas aptidões (que poderia torná-las excepcionais em outras tarefas, ao invés de usá-las como tokens), preparando-as mal, lotando-as de tarefas e falando “olha lá, camarada tal não ser para tal tarefa”, surpresos. Esse comportamento alimenta tanto a desconfiança, uma vez que as camaradas falham (consequência de um erro individual, reforçando a ideia que é sempre um erro alocá-las nestas tarefas, não resultado de uma combinação de circunstâncias) quanto a insegurança das camaradas, além de prejudicar nosso trabalho, uma vez que outros camaradas precisam assumir essas tarefas e precisamos lidar com todos esses problemas de machismo, de novo e mais uma vez.

Esse fetichismo da mulher como quadro político, essa ilusão formativa e diretiva, não apenas não transforma as camaradas em direções, como desperdiça as camaradas para outras tarefas e aproveita mal nossa militância. E entendam, quando digo outras tarefas não estou dizendo as mesmas tarefas de dona de casa da militância colocadas já antes (que deveriam ser distribuídas entre todos os camaradas, sobretudo aqueles que nunca tenha as tocado, com sentido formativo) (5), mas a capacidade de entender política como Política, aplicada a diferentes esferas da militância. Tal abordagem, se bem aplicada, resultará também na gestação de quadros políticos mulheres genuínos, porque as camaradas poderão se desenvolver de verdade, como verdadeiros quadros, como fazem os homens – não sendo reduzidas ao machismo que sofrem e a necessidade de afirmarmos que somos progressistas demais para cometer esses erros.

Existe uma dimensão material desse problema que se aplica à formação de militantes em geral: o crescimento da militância, que afeta nossa capacidade formativa. Essa dificuldade, porém, repercute proporcionalmente ao ponto zero de entrada na militância: a de uma sociedade machista. Se tudo for como é, não apenas deixaremos de formar em geral, mas reproduziremos o “natural”. Assim, nosso esforço para acompanhar a todos, para conhecer os militantes e alocá-los bem, devemos ter essa atenção a mais, de forma a não transformar nossas camaradas em certificados de inclusão e formá-las corretamente, de maneira que elas possam contribuir o melhor possível com a organização.

A reprodução dos vetos da sociedade patriarcal: à política, ao saber e às armas

Desenvolvo aqui melhor algo já trazido nos tópicos anteriores, e consequência também dessa abordagem. Nossa política formativa hoje pouco faz para reverter vetos que a sociedade capitalista faz à mulher trabalhadora, e que bloqueiam o acesso a ferramentas centrais para tomada do poder e para destruição do capitalismo e do patriarcado. Essa reprodução vem da incapacidade de inverter e subverter os padrões de gênero da sociedade, e uma certa internalização de linhas equivocadas que tomam esses vetos como situações naturais, de forma anti revolucionária e mesmo reacionária.

O primeiro desses vetos é a já citada esfera política e, mais do que isso, a atuação política real, para além da mera presença e da representação vazia. Precisamos nos questionar, camaradas, qual o futuro das nossas camaradas. As camaradas passam pela juventude, se formam e vão para o Partido? Que trabalhos elas tocam?  Essas camaradas irão para Movimento de Bairro, Sindicatos, Movimentos de Mulheres, bases, direções? Por que? Essas camaradas serão militantes por tempo tão longo quanto os camaradas são, ou até casarem, terem filhos e irem viver a vida que a maioria das mulheres vive, presas em duplas ou triplas jornadas, ocupadas demais para pensarem em Revolução?

O segundo veto é a já citada questão formativa. Para além do não estudo, ou do estudo de temas ligados à opressão, ressalto ainda uma dimensão teórica dessa divisão por gênero, ainda na lógica de naturalização dos vetos socialmente construídos. Há uma grande tendência no modismo teórico contemporâneo de se confundir conhecimentos usados para dominação como conhecimentos essencialmente dominadores, que devem então ser moralmente descartados ou supostamente superados por uma espécie de ecletismo. A ciência burguesa foi usada para dominação de povos colonizados, uma esfera da qual as mulheres foram excluídas, logo é um conhecimento em si dominador, que deve ser problematizado por uma alternativa decolonial e pela valorização dos “saberes tradicionais” (sem nunca, evidentemente, explicar quais esses sãos e como verificamos sua verossimilhança).

Essa não é nossa linha, pensando na tradição marxista-leninista, mesmo no método histórico dialético, mas concretamente, nossos camaradas leem essas obras (6). Nossos recrutamentos leem, dentro da disputa dos campos da esquerda. Essa perspectiva de crítica à “ciência tradicional” como essencialmente opressora veta mais uma vez o acesso das mulheres ao conhecimento real, a uma análise revolucionária, jogando às camaradas nos braços do reformismo e mesmo do irracionalismo (7), além de ter uma compreensão novamente idealista de tomar como natural e positivo vetos historicamente construídos, como a presença das mulheres na “ciência tradicional”. (8) 

O último veto são as armas. Armas, aqui, entenda-se, a capacidade de impor ou defender interesses da classe a partir da violência, ofensiva ou defensiva. Temos aqui uma miríade, indo de questões imediatas como capacidade autodefesa, passando pela segurança e pela compreensão da organização de atos, indo até a teoria militar e treino para uma futura e distante situação revolucionária. O tópico aqui é bastante amplo, mas passa pela questão central: quanto preparamos o conjunto da nossa militância para lidar com a sociedade que agride, violenta e assassina minorias no atacado? Quanto agimos para inverter a tendência biológica que faz dos homens cis mais fortes e a tendência social que veta às mulheres trabalhadoras, de novo e mais uma vez, à ferramentas que permitem defender seus interesses de classe?

A inversão dessa tendência tem preocupações tanto de curto e médio prazo, para segurança das camaradas, em ambientes militantes ou não (afinal, mulheres não são agredidas apenas por PMs), como de longo prazo, de preparação para possíveis situações revolucionárias. Como na formação política, não basta termos ou uma outra camarada excepcional, mas devemos quebrar a lógica de divisão sexual do trabalho dessa tendência na raiz, verdadeiramente qualificando camaradas para tarefas especializada desse tipo e, simultaneamente, formando o conjunto da militância de forma que consiga, minimamente, defender-se.

Como os camaradas lidam com machismo

Muito do que poderíamos tratar neste subtópico já foi desenvolvido ao longo de toda a contribuição, pela forma que os padrões de gênero são reproduzidos e como o machismo em si é alimentado na organização: a falta de interesse dos camaradas em se formar sobre, a redução das camaradas (e de mulheres em geral, inclusive da nossa base) a meros objeto de interesse romântico e sexual, a desconfiança em relação a sua militância, a insensibilidade às suas críticas, o descaso com sua formação e a tendência a subestimar os efeitos do machismo sobre a organização.

Me foco então em dois temas que foram apenas arranhados, mas não desenvolvidos. O primeiro deles é o moralismo dos camaradas homens em relação ao próprio machismo, que passa por comportamentos como negação (uma vez que seria muito carregado moralmente admitir para os outros e para si o próprio machismo), subestimação do impacto (por razões semelhantes) e uma autocrítica de pouco efeito, que se assemelha mais a pedidos de desculpas e a garantia que repensará seu comportamento, do que uma verdadeira análise do porque as situações de machismo ocorre e de um esforço ativo de mudar essa situação.

Como tudo aqui analisado, estes são problemas individuais e coletivos. Ainda que tenhamos que lidar com nossos problemas como organização coletivamente, o coletivo não é um entidade transcendental, mas um conjunto concreto formado pela soma de sujeitos que têm sim responsabilidades individuais e que devem responder pelos seus comportamentos. O erro do coletivo entra aqui em não criticar de forma firme e clara os camaradas quando necessário, e na incapacidade de formar os e as camaradas, superando a ideologia machista, de forma que esses consigam analisar comportamentos machistas em si e nos outros, fazendo com essa deixe de ser uma mera preocupação “de mulher”.

O segundo tema é a secundarização da pauta, colocada sempre como algo ali que uma hora teremos que ver, um problema para amanhã. Isso se coloca tanto pela condescendência com machismo já desenvolvida aqui, mas pela forma que isso entra (ou melhor, não entra) no nosso planejamento.

“[…] É impreterível deliberar previamente sobre nossos quadros e não podemos de forma alguma agir com base na conveniência formativa que nossos quadros já apresentem, isso significaria reproduzir internamente determinações externas que propiciaram os desníveis formativos de nossos camaradas e, reproduzir ou perpetuar tais determinações significaria agir internamente com a opressividade do sistema do capital que rechaçamos.[...]” (Camarada Mono, “ A questão organizativa  da formação”, Tribuna 001 – VIII Ativo do Núcleo USP)

Pergunto aos camaradas, quanto temos debatido nossa política de formação e alocação dos camaradas tendo a questão de gênero como uma das preocupações centrais, e não como mero acessório que eventualmente voltaremos? Quanto nossos quadros vêm, como bem colocado da tribuna, de mera conveniência formativa. Não temos camaradas mulheres em tarefas X porque elas não tem formação para tal. Pergunto, quando iremos formá-las para isso? (9)

Enquanto esse problema não for tratado com a seriedade que demanda pelo conjunto da militância, não meramente porque quem é afetada por ele, ou porque as consequências da nossa falta de planejamento e descaso formativo eventualmente estouram, não avançaremos. Precisamos tratar com seriedade tanto problemas organizativos, derivados da má alocação dos e das militantes, quanto políticos, à medida que ficam claras as contradições do nosso projeto de emancipação da humanidade que trata metade dela com paternalismo. Do contrário, o resultado é a debandada das mulheres das nossas fileiras, sua secundarização, a dificuldade de atrair recrutamentos e o reforço de uma ideia que deveríamos estar lutando destruir: que a política (e consequentemente, o poder sobre a própria vida) pertence aos homens.

 Como as camaradas lidam com machismo

Como comunistas, marxistas-leninistas, nossas concepções políticas devem sempre ser analisadas de um ponto de vista concreto, material, da viabilidade da nossa atuação pensando nos objetivos que devemos atingir, a capacidade de superarmos todos os tipos de opressão e exploração. Ainda que nossa ética comunista seja central, ainda que tenhamos princípios e valores que orientam nossa atuação, não podemos deixar nosso horizonte político nos cegar acerca da dureza do real, subverter nossa análise do presente concreto a partir de um idealismo de como gostaríamos que fosse o mundo, colocando um moralismo negacionista acima do que devemos enfrentar para, enfim,  possamos construir uma sociedade melhor.

Às companheiras, militantes, eu digo: camaradas, a sociedade patriarcal não nos dará nada. Existe um papel político na denúncia, nos debates, na crítica, na necessidade de reivindicarmos nosso direito à atuação política, à voz, à condição humana plena. Mas esses não são suficientes. Não basta que digamos, que exijamos, que digamos para os homens. Precisamos tomar o céu de assalto. 

Não entendam essa análise como uma espécie de meritocracia da opressão. É evidente que comportamentos machistas devem ser criticados, em espaços internos e externos, nos primeiros de forma a combater o machismo dos camaradas, externamente projetando uma forma de socialização que mine desde já esses comportamentos. Isso, porém, está longe, muito longe de ser suficiente, porque essa mudança não virá amanhã, e até que venha, nossas camaradas não podem esperar para integrar verdadeiramente o movimento revolucionário. Simultaneamente ao combate ao machismo como repúdio e denúncia, precisamos formar nossas camaradas de maneira a lidar com ele, não lidar como tolerância, como recuo diante do ataque, mas como capacidade de revidar, de se impor, de construir uma força que não poderá ser intimidada por medos e inseguranças. 

Como no tópico anterior, esse é um problema coletivo, na medida que não fornecemos às camaradas as armas para lidar com a opressão – essa contribuição poderia ser resumida a uma lista de vetos que as mulheres sofrem e que pouco fazemos para combater, de forma a, coletivamente, ajudá-las a se tornarem quadros a serviço da Revolução. Como no tópico anterior, porém, a coletividade é formada por indivíduos, não somente porque aqueles que atacam, mas por aquelas que capitulam diante do ataque.

Tenho consciência que esse argumento pode soar como uma culpabilização da vida (um mero “reajam, camaradas!”) ou uma individualização do problema (o que definitivamente não é, porque essa é uma reação coletiva e difundida, não apenas da nossa organização, mas que parece tendência hegemônica no feminismo hoje), mas é um chamado à realidade. A sociedade é machista. Homens são mais formados, mais confiantes (mesmo quando menos formados), dominantes em esferas política e privada da vida, com mais acesso a uma série de ferramentas importantes para que assim permaneçam, e a tendência é que pouco façam para inverter essa situação. Se não agirmos ativamente de forma a reverter essa situação, não pela mera denúncia, mas pela ação política concreta, isso não vai mudar. Se formos esperar os homens pararem de falar para nos pronunciarmos, vamos ficar caladas para sempre.

Não se trata de entrar em uma mera “guerra dos sexos” (10), ou de uma compreensão de gênero que apague a classe e coloque o homem como dominante abstrato, em uma perspectiva próxima a do feminismo radical. Mas de colocar concretamente que se temos uma condição de opressão que complementa e se articula dialeticamente com a classe, tanto fortalecendo a divisão classista quanto dividindo a classe por dentro, a superação dessa opressão não vai passar por mera negociação e concessão, mas por uma disputa política.

Esse debate, internamente uma questão candente, quando extrapolamos para o “mundo real” - ou seja, para espaços mais machistas que a militância comunista de uma juventude progressista – vira um problema muito maior. Como uma camarada que não é capaz de lidar com o “palestrismo” de um camarada construirá um sindicato, a direção de um Partido, disputará com bases despolitizadas ou reacionárias, manejará situações opressivas e repressivas e manejará a política em ambientes mais duros do que nossas fileiras?

A resposta é que ela não fará nada disso. Ela cansará, desistirá, ou irá se recolher aos coletivos, em espaços internos, em tarefas mais calmas, com menos disputas e menos poder decisório, virando uma espécie de dona de casa da militância, isso se não desistir de militar.

Camaradas, nossas camaradas não estouram, quebram ou qualquer descrição condescendente porque mulheres nasceram delicadas e fracas, boas ou tolas demais para lidar com a dureza do real. Elas o fazem porque nós, coletivamente e individualmente, homens e mulheres, reiteramos, material e idealmente, objetivamente e subjetivamente, as condições que as tornam o segundo sexo. Porque como sociedade retiramos delas acesso a tudo que poderia objetivamente às fornecer poder político, que as permitiria se formar e se entender como seres humanos complexos e completos – e porque como organização, pouco fazemos para reverter esse quadro, internalizando tendências liberais e reacionárias que afirmam que mulher serve cuidar dos outros, “ser gostosa” (11) e sofrer diante da irreversibilidade natural da sua condição, enquanto damos aos homens o palco, o livro e o fuzil.

PARTE II – PROPOSTAS CONCRETAS

ORGANIZAÇÃO

I. Que todas as secretarias de organização planifiquem e sistematizem a distribuição de trabalho operativos, tais como elaboração de atas, contagem de tempo e preparação de reuniões, passagem de sondagens e organização de espaços de militância em nível operativo básico. Que se torne obrigatório a todo militante a realização desse tipo de tarefa, que deve ser rotacionada entre os militantes de forma a não prejudicar sua possibilidade de intervenção política.

FORMAÇÃO

I. Que sejam criados cursos introdutórios complementares optativos aos camaradas que apresentem debilidades formativas teóricas e práticas prévias ao conteúdo básico do Sistema Nacional de Formação Política e os aprendizados do processo de recrutamento:

O Cursos deverão conter:

a) Aulas gravadas disponíveis digitalmente a todo e qualquer militantes, a serem preparadas por camaradas com acúmulos sobre os temas em questão;

b) Oficinas formativas sobre os temas, oferecidas à nível de núcleo, por camaradas com acúmulos sobre. Sempre que possível, fazê-las presencialmente.

c) Os primeiros cursos deverão contemplar os seguintes tópicos: Retórica e falas públicas; Ferramentas digitais; Estudo e Organização Pessoal; Introdução à História do Movimento Revolucionário.

II. Que seja criado um Sistema Nacional de Preparação Física e Saúde, que organizará e estabelecerá diretrizes para melhora da saúde e do condição dos militantes, adaptando suas políticas às possibilidades dos corpos dos militantes, sem excluir nenhum camarada. O Sistema deverá incluir:

a) Formações teóricas sobre saúde física e mental, a serem realizadas remotamente;

b) Oficinas presenciais de auto defesa;

c) Oficinas presenciais para realização de atividades físicas para aumento de condicionamento;

d) Todas as atividades devem ser adaptadas à camaradas PCD, quando necessário;

d) Todas as atividades devem ser acompanhadas por camaradas com acúmulos sobre.

III. Que seja criado um curso nacional e online de introdução ao debate das opressões sob uma perspectiva marxista. O curso deverá conter três formações, contemplando: feminismo classista, debate racial (tratando questão negra e indígena) e sexualidade (comunidade LGBT). O curso será obrigatório para todos os militantes.

AGITAÇÃO E PROPAGANDA

I. Que sejam desenvolvidas atividades de agitação, propaganda e educação popular voltadas para a aproximação e recrutamento de jovens mães, sobretudo em espaços proletarizados. Dentre essas atividades, devemos realizar:

a) Oficinas de educação sexual e distribuição de preservativos em espaços frequentados por jovens trabalhadoras;

b) Panfletagens conscientizadores sobre métodos anticoncepcionais e distribuição de preservativos, voltadas sobretudo para adolescentes e jovens trabalhadoras;

c) Oficinas de acolhimento para jovens mães, em formações sobre saúde maternal e infantil e de acesso a políticas públicas existentes hoje A maternidade deve ser porta de entrada para debates mais amplos sobre a questão da mulher e da classe trabalhadora em geral. Esses espaços devem conter creches, ou seja, camaradas destacados para cuidar das crianças enquanto as mães participam dos eventos.


Notas: 

  1. Quanto a esse tema, deixo como referência o excelente O que é a esquerda liberal?, disponível em: https://revistaopera.com.br/2019/07/07/o-que-e-a-esquerda-liberal/.
  2. Aqui identitarismo não é sinônimo de defesa de pautas de opressão, mas uma certa abordagem dessas pautas que essencializam e isolam essas opressões. Para além da referência acima, recomendo também Identitarismo: mudando tudo para manter tudo como está, disponível em: https://pcb.org.br/portal2/26267/identitarismo-mudando-tudo-para-manter-tudo-como-esta/
  3. Essa é uma dimensão um tanto especulativa da presente contribuição. Em primeiro lugar, porque não tenho um levantamento em dados de relações intra camaradas que me permita confirmar essa afirmação. Em segundo lugar, porque a tendência à “dominação” é um critério de análise bastante subjetivo. Mantenho o trecho, porém, aberto a todas às críticas e problematizações possíveis, pela necessidade de pontuar duas impressões constantes: a tendência do comportamento de “esposa muda” de muitas relações heterossexuais (que se repete em nossa militância) e a normalização do interesse excessivo de camaradas experientes sobre militantes recém ingressas e recrutamentos (e muitas vezes muito mais novas).
  4. “O male gaze é o olhar masculino, a visão do homem sobre sua realidade e, não apenas na sétima arte como também em novelas, propagandas, livros e revistas, o male gaze é a perspectiva masculina de uma visão do mundo. E, sucessivamente, a visão masculina sobre uma mulher.” (https://blogfca.pucminas.br/ccm/male-gaze-e-a-prevalencia-da-visao-masculina/) Para além dessa representação midiática em si, é importante pensar como isso influi na nossa imagem sobre a mulher e na demanda pela aprovação do homem.
  5. Tarefas, entenda-se, cansativas e com pouco sentido político, mas extremamente necessárias, tanto para funcionamento da militância quanto no desenvolvimento da disciplina dos camaradas. O problema é que a formação não pode ser só disciplina mecânica.
  6. Os exemplos são vários. Me restrinjo aos mais famosos. Autoras como Silvia Federici, Nancy Fraser, Bell Hooks, autodeclaradas marxistas, com uma atuação militante limitada, que passa longe do Partido na concepção marxista-leninista, de linha bastante liberal e que caem, repetidamente, na inversão simbólica da opressão feminina e que reiteram  a divisão de gênero socialmente construídas. Ainda que meu ponto não seja um veto a essas leituras, ficam as perguntas: por que tantas pessoas de esquerda ou mesmo dita revolucionárias as leem? Quais são as contribuições reais e inovadoras dessas obras? Enquanto leem essas obras da moda com poucas contribuições ou mesmo desserviços à militância revolucionária, quais outras leituras são deixadas de lado? Enquanto promovemos esses modismos teóricos, temos pouquíssimas obras das grandes revolucionárias do século XX traduzidos, poucos contatos com experiências de Poder Popular e dançamos ao som dos interesses do mercado editorial universitário do Primeiro Mundo.
  7. Como exemplo de reformismo, o repúdio a forma partido tradicional e a centralidade de coletivos trazida no Manifesto Feminista para os 99%, e que alimenta o rechaço a espaços “tradicionalmente” masculinos, como sindicatos. Como exemplo de irracionalismo, a apologia romantizada ao conhecimento pré moderno das chamadas bruxas trazidas em Calibã e a Bruxa (obra não apenas politicamente problemática, mas historicamente equivocada, que parte um mito de sagrado feminino gestado por antropólogos vitorianos e já descartados pela historiografia, que apaga o caráter racial da Inquisição (que perseguia sobretudo cristãos-novos, judeus e ciganos), e que tratam a América Latina como nota de rodapé, em uma associação apressada entre os “povos tradicionais” e a pré modernidade europeia), para além da nossa naturalização de certos interesses e conhecimentos como femininos: epistemologias alternativas, signos e outras pseudociências.
  8. Quais são os efeitos disso sobre a formação de mulheres como cientistas e teóricas? Quanto isso afeta na divisão sexual do trabalho, de maneira mais ampla, e na formação das nossas próprias camaradas? Quais são suas referências teóricas e como isso as arma ou desarma politicamente?
  9. Para não fazer uma análise excessivamente dura, ressalto que me parece que temos melhorado quanto a isso nos últimos meses. É importante colocar o problema em pauta, porém, porque a médio prazo retroativamente nosso saldo é muito mais negativo do que positivo. Para que possamos colocar que superamos essa falta de planejamento, precisamos ser capazes de manter por um período maior essa melhora, e expandir essa política de forma que seja algo claro não somente para nós interna e localmente, mas seja parte do nosso cartão de visitas como organização diante das massas (como é hoje a ideia de que “formamos bem”, ou “somos sérios”. Se a acusação de descaso com opressões do complexo é oportunista e cínica vindo de forças que tomam tokenismo como igualdade, não significa que sejamos o supra sumo da inclusão).
  10. Importante pontuar também que essa capacidade de se colocar que as camaradas precisam desenvolver não é desculpa para comportamentos pouco camaradas. Me parece uma tendência das camaradas diante da pressão e da insegurança, uma postura defensiva excessiva que se torna por vezes agressividade ou arrogância, o que é um problema não só porque pode servir como desculpa para deslegitimação, mas porque essa se volta sobretudo sobre outras camaradas.
  11. Tem sido bastante difundido entre a juventude progressista e isso inclui nossas fileiras a auto alcunha de “gostosa” como algo empoderador, uma exaltação através da auto estima ligada à beleza, uma beleza bastante sexualizada. Longe de criticar a importância da auto estima ou de parecer moralista por uma censura a uma sexualidade ou erotismo, ou literal demais por não entender o sentido em parte de meme do termo (mas somente em parte), me parece ingênuo, porém, achar que isso é natural (uma vez que é algo muito mais difundido entre mulheres, em uma sociedade que vê a mulher como objeto sexual e onde praticamente todos nossos referenciais midiáticos femininos são belos e erotizados) e completamente inofensivo, uma vez que isso vem frequentemente acompanhado pela necessidade de aprovação masculina e a uma certa obsessão pela aparência, que alimenta a insegurança. Se uma mulher precisa se achar ou ser “gostosa” (por mais inclusivo e amplo que esse termo seja, diante de diferentes tipos de corpos) para ser socialmente aceita e confiante, a lógica da mulher como objeto não foi subvertida, apenas passou a incluir uma variedade maior de enfeites. Importante também quanto esse pseudo empoderamento (muitas vezes visto nos setores mais liberais como feminismo), que fomenta o mito e a industria da beleza, realmente ajuda a vida de mulheres trabalhadoras, muitas vezes mães que tem sua auto estima destruída pelos efeitos do trabalho e da maternidade sobre a própria aparência.