Socialismo e religião
O nosso partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela libertação da classe operária. Essa associação não pode e não deve ter uma atitude indiferente em relação à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo sob a forma de crenças religiosas.
Vladímir Ilitch Uliánov Lênin
Publicado originalmente em 3 (16) de Dezembro de 1905, nº 28 do jornal Novaia Jizn (Nova Vida).
Transcrito a partir da coletânea Lênin e a religião, Lavrapalavra, 2022, p. 81-87.
A sociedade moderna se assenta toda na exploração das amplas massas da classe operária por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários agrários e dos capitalistas. Esta sociedade é uma sociedade escravista, pois os operários “livres”, que trabalham toda a vida para o capital, só “têm direito” aos meios de subsistência que são necessários para a manutenção dos escravos que produzem o lucro, para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.
A opressão econômica dos operários causa e gera inevitavelmente todos os tipos de opressão política, de degradação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os operários podem obter mais ou menos liberdade política para lutarem por sua emancipação econômica, mas nenhuma liberdade pode salvá-los da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão espiritual que está em toda a parte e em toda parte pesa sobre as massas populares, esmagadas pelo seu perpétuo trabalho para outros, pela carência e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera, inevitavelmente, a fé numa vida melhor após a morte, assim como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, demônios, milagres etc. Àqueles que trabalham a vida toda e vivem na miséria, a religião ensina a humildade e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E, àqueles que vivem do trabalho alheio, a religião ensina a caridade na vida terrena, oferecendo-lhes uma desculpa muito barata para toda a sua existência exploradora e vendendo-lhes a preço módico os passaportes para a prosperidade celestial. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de pinga [1] espiritual na qual os escravos do capital afogam a sua imagem humana e suas exigências de uma vida humana minimamente digna.
Mas o escravo que se conscientizou da sua escravidão e se ergueu para a luta pela sua emancipação já parcialmente deixou de ser escravo. O operário consciente moderno, educado pela grande indústria fabril, iluminado pela vida urbana, rejeita com desprezo os preconceitos religiosos, deixa o céu à disposição dos padres e dos beatos burgueses, conquistando para si uma vida melhor aqui, na terra. O proletariado moderno coloca-se ao lado do socialismo, que alista a ciência na luta contra a névoa religiosa e liberta os operários da fé na vida após a morte por meio da sua união para uma verdadeira luta por uma vida terrena melhor.
A religião deve ser declarada um assunto privado – essas palavras geralmente são usadas para expressar a atitude dos socialistas em relação à religião. Mas é preciso definir com precisão o significado destas palavras para que elas não possam causar nenhum mal-entendido. Exigimos que a religião seja um assunto privado em relação ao Estado, mas não podemos de modo nenhum considerar a religião um assunto privado em relação ao nosso próprio partido. O Estado não deve ter nada a ver com a religião, as sociedades religiosas não devem estar ligadas ao poder de Estado. Cada um deve ser absolutamente livre para professar qualquer religião que queira ou para não reconhecer nenhuma religião, isto é, para ser ateu, o que geralmente é o caso de todo o socialista. São absolutamente inadmissíveis quaisquer diferenças entre os cidadãos quanto aos seus direitos em função de suas crenças religiosas. Deve mesmo ser abolida qualquer referência a uma ou outra religião dos cidadãos em documentos oficiais. Não deve haver quaisquer donativos a uma igreja de Estado, quaisquer donativos de somas do Estado a sociedades eclesiásticas e religiosas, que devem tornar-se associações absolutamente livres de cidadãos que pensam da mesma maneira, e independentes das autoridades. Só o cumprimento integral destas reivindicações pode acabar com o passado vergonhoso e maldito, quando a Igreja era serva do Estado, e os cidadãos russos eram servos da Igreja do Estado, em que existiam e eram aplicadas leis medievais e inquisitoriais (que ainda hoje permanecem nos nossos códigos e regulamentos penais), que perseguiam pessoas pela sua crença ou descrença, que violentavam a consciência das pessoas, que ligavam posições e rendimentos governamentais com a distribuição de uma ou de outra pinga da Igreja de Estado. Completa separação da Igreja e do Estado – tal é a reivindicação que o proletariado socialista apresenta ao Estado moderno e à Igreja moderna.
A revolução russa deve realizar esta reivindicação como parte integrante necessária da liberdade política. Neste aspecto, a revolução russa está posicionada em condições particularmente favoráveis, porque a abominável burocracia da autocracia policial-feudal causou o descontentamento, a agitação e a indignação mesmo entre o clero. Por mais embrutecido, por mais ignorante que fosse o clero ortodoxo russo, até ele foi, agora, acordado pelo estrondo da queda da velha ordem medieval na Rússia. Até ele adere à reivindicação de liberdade, protesta contra a burocracia e o arbítrio dos funcionários, contra a fiscalização policial imposta aos “servos de Deus”. Nós, socialistas, devemos apoiar este movimento, levando até o fim as reivindicações dos membros honestos e sinceros do clero, agarrando-lhes na palavra sobre a liberdade, exigindo deles que rompam decididamente todos os laços entre a religião e a polícia. Ou são sinceros, e então deverão ser favoráveis à completa separação entre a Igreja e o Estado e entre a escola e a Igreja, com o que a religião seja completa e incondicionalmente declarada um assunto privado. Ou não aceitarão estas reivindicações de liberdade consequentes, e então quer dizer que são ainda prisioneiros das tradições da Inquisição; então quer dizer que ainda se agarram às posições e aos rendimentos governamentais; então quer dizer que não acreditam na força espiritual de vossas armas, continuam recebendo subornos do poder de Estado – então os operários conscientes de toda a Rússia declararão uma guerra implacável a vocês.
Em relação ao partido do proletariado socialista a religião não é um assunto privado. O nosso partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela libertação da classe operária. Essa associação não pode e não deve ter uma atitude indiferente em relação à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo sob a forma de crenças religiosas. Reivindicamos a completa separação da Igreja e do Estado para lutar contra a neblina religiosa com armas puramente ideológicas e somente ideológicas, com a nossa imprensa, com a nossa palavra. Mas nós fundamos a nossa associação, o POSDR, entre outras coisas, precisamente para essa luta contra qualquer entorpecimento religioso dos operários. E para nós a luta ideológica não é um assunto privado, mas um assunto de todo o partido, de todo o proletariado.
Se é assim, por que é que não declaramos no nosso programa que somos ateus? Por que não proibimos os cristãos e os que acreditam em Deus de se juntarem ao nosso partido?
A resposta para essa questão deve esclarecer a importantíssima diferença entre a maneira democrático-burguesa e a maneira social-democrata de abordar a questão da religião.
Todo nosso programa se assenta numa concepção científica de mundo, a saber, a concepção materialista do mundo. A explicação do nosso programa inclui, por isso, necessariamente também, a explicação das verdadeiras raízes históricas e econômicas da neblina religiosa. A nossa propaganda inclui, também, necessariamente, a propaganda do ateísmo; a edição da literatura científica correspondente, que o poder de Estado autocrático-feudal rigorosamente proibia e perseguia até agora, deve agora constituir um dos ramos do nosso trabalho partidário. Teremos agora, provavelmente, de seguir o conselho que Engels uma vez deu aos socialistas alemães: traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateia francesa do século XVIII [2].
Mas, ao fazê-lo, não devemos em caso nenhum cair num modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não poucas vezes é feito pelos democratas radicais pertencentes à burguesia. Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e embrutecimento infindáveis das massas operárias, se pode, puramente por meio da pregação [3], dissipar os preconceitos religiosos. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Não será com livros, nem com nenhuma pregação, que se poderá esclarecer o proletariado, senão com a sua própria luta contra as forças sombrias do capitalismo. A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões entre os proletários sobre o paraíso no céu.
É por isso que não declaramos e nem devemos declarar o ateísmo no nosso programa; é por isso que não proibimos nem devemos proibir aos proletários que conservaram estes ou aqueles vestígios dos velhos preconceitos que se aproximem do nosso partido. Sempre pregaremos a concepção científica de mundo. É necessário lutar contra a inconsequência de quaisquer “cristãos”, mas isto não significa de modo nenhum que se deva colocar a questão religiosa em primeiro lugar, que de modo nenhum lhe pertence; que se deva admitir a dispersão das forças da luta realmente revolucionária, econômica e política, por causa de opiniões ou delírios de terceira ordem que perdem rapidamente todo o significado político e são rapidamente varridos como lixo pelo próprio curso do desenvolvimento econômico.
A burguesia reacionária preocupou-se, em toda a parte, e começa agora também a preocupar-se no nosso país, em atiçar a hostilidade religiosa, para desviar a atenção das massas das questões econômicas e políticas realmente importantes e fundamentais, que o proletariado de toda a Rússia – que se une na sua luta revolucionária – está agora resolvendo na prática. Esta política reacionária de dispersão das forças proletárias, que hoje se exprime principalmente nos pogroms das Centenas Negras [4], talvez venha amanhã com formas mais sutis. Nós, em qualquer caso, oporemos a ela uma pregação tranquila, consequente e paciente da solidariedade proletária e da concepção científica de mundo, isenta de todo o avivamento de divergências de segunda ordem.
O proletariado revolucionário garantirá que a religião se torne realmente um assunto privado para o Estado. E neste regime político, depurado do bolor medieval, o proletariado travará uma luta ampla e aberta pela eliminação da escravidão econômica, verdadeira fonte do entorpecimento religioso da humanidade.
Notas
[1] No original em russo, sivukhi: bebida alcoólica forte e de baixa qualidade obtida pela retificação incompleta da vodka, resultando num tom cinzento (daí seu nome), devido às suas impurezas.
[2] Vide Engels, Literatura de Refugiados, artigo II: Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna (1874).
[3] Em russo, no original, propovednicheskim e propovediu: “pregação”, “sermão”.
[4] A organização paramilitar reacionária Chornaia sotnia (por vezes traduzido como “Cem Negros” ou, erroneamente, “Centúrias Negras”) defendia o czarismo, assassinava militantes e intelectuais de esquerda e estava na linha de frente dos ataques aos judeus (os chamados pogroms).