'Sobre o trabalho secundarista: nossas dificuldades e métodos de construção' (João Lucas Leite)

Na universidade conseguimos atingir uma fração da classe que é mais abastada e desvinculada das massas. Na escola conseguimos atingir todos os elementos da classe operária pois nela estamos tendo contato com os filhos de toda a classe.

'Sobre o trabalho secundarista: nossas dificuldades e métodos de construção' (João Lucas Leite)

Por João Lucas Leite para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Onde reside nossa dificuldade de atuação: a Hegemonia Pequeno-Burguesa

Existe hoje uma incompreensão geral de como atuar no movimento estudantil secundarista, e isso se deve a uma série de motivos. Assim como no movimento sindical, como bem exposto pelo camarada Gabriel Xavier em sua excelente tribuna “Trabalho Sindical: como fazer?”, essa incompreensão geral é resultado de erros na forma de inserção e ocupação desses espaços. Para além dos erros práticos apontados pelo camarada para com o movimento sindical (e que podem ser aplicados a qualquer outro movimento de massas onde atuamos), chego a uma conclusão de que um dos pilares da nossa dificuldade de atuação no movimento secundarista, sindical, de bairro, etc. está na constituição de “classe” dos nossos militantes, ou seja, na estrutura e composição de classe do partido. Tendo em vista que a maior parte dos militantes da UJC são universitários e não secundaristas, sendo esses uma minoria na juventude, ou seja, o problema reside na Hegemonia Pequeno-Burguesa dos quadros do partido. Essa compreensão limitada pela condição social dos quadros do partido produz uma série de incapacidades práticas e dificuldade de entendimento do movimento secundarista, resultando numa artesanalidade e debilidade nesse trabalho de base.

Para um Partido Comunista, é inaceitável que nosso trabalho no movimento secundarista seja amador e nossa inserção seja tão débil. Assim como o movimento sindical, o movimento estudantil secundarista é de demasiada importância para a construção das nossas bases políticas, tendo em vista que, é nessa categoria onde se encontram os setores mais proletarizados do movimento estudantil, diferente da universidade, onde se encontram elementos mais abastados da classe (chamados de “classe média) e que, por conta da sua condição material, conseguiram ingressar numa universidade por via do vestibular — que exclui a esmagadora maioria dos estudantes e torna a universidade um espaço seleto e privado da massa proletária. A maioria esmagadora dos estudantes universitários são da “classe média”, nas escolas secundaristas, diferentemente, reúnem-se todos os elementos da classe operária, desde os mais proletarizados aos mais abastados, e, por conta dessa composição de classe e massificação, necessita de uma atenção especial.

Na universidade conseguimos atingir uma fração da classe que é mais abastada e mais desvinculada das massas, na escola conseguimos atingir todos os elementos da classe operária pois nela estamos tendo contato com os filhos de toda a classe e que representam uma importância política muito maior para o partido, pois enquanto um partido comunista, nossa prioridade organizativa é o proletariado. É preciso ter um trabalho secundarista profissional pois esse é um dos movimentos de massas mais estratégicos para a construção das bases políticas da revolução proletária pela sua composição de classe e sua amplitude quantitativa.

A questão é: por que o nosso trabalho secundarista — e não só secundarista, como em outros movimentos de massas da classe operária — é tão débil? Por que, mesmo sendo um partido comunista (que, nas palavras de Marx, é o partido do proletariado e sua teoria, prática e composição nada distingue do proletariado) não conseguimos organizar um trabalho profissional nesse setor?

Para além das fraseologias que nos reduzimos a usar toda vez que alguém levanta essas questões (como “Estamos errando, precisamos superar isso”, “cometemos erros e desvios no passado”, “não fazemos trabalho de base, precisamos voltar a fazer”, etc.), proponho fazer uma análise material sobre e levantar algumas formas de superação desse problema que venho experienciando no trabalho prático com o movimento secundarista que venho tendo.

Acredito que o problema reside não somente em erros ou desvios na prática do movimento comunista brasileiro nas últimas décadas, mas sim nas bases materiais que constituem as organizações comunistas atualmente que reproduzem esses desvios. Quero dizer que o problema da debilidade na nossa atuação no movimento secundarista e em outros movimentos de massas da classe operária reside na Hegemonia Pequeno-Burguesa dos quadros, não só do nosso partido, como de todo o movimento comunista. Como bem expõe o camarada Douglas Santos em sua tribuna “Teses Sobre a Hegemonia Pequeno-Burguesa no Movimento Comunista”, os partidos e organizações comunistas nas últimas décadas perpetuam uma hegemonia pequeno-burguesa em seus quadros, resultado de inúmeros erros provindos da linha política da III Internacional. As bases das organizações comunistas hoje são em suma compostas por elementos mais abastados da classe — pelos universitários que conseguiram passar pelo processo excludente do vestibular — que em sua maioria carregam desvios pequeno-burgueses por conta da sua condição social.

Essa hegemonia da mentalidade pequeno-burguesa nos quadros do partido resulta em consequências práticas na nossa atuação. Quadros que não foram forjados na luta prática, que não conhecem a realidade dos jovens periféricos, que não compreendem a mentalidade desses jovens secundaristas, que não foram criados e desenvolvidos em uma situação social amplamente conhecida pela classe operária não tem a capacidade política de organizar esse trabalho sem antes terem uma formação política sobre essa questão (coisa que o partido nunca teve antes do racha e que hoje caminha para superar). Um camarada oriundo da “classe média” não tem o “gingado” para tocar esse tipo de trabalho de base pois ele não está situado em sua condição social e lhe demanda muito esforço para aprender a fazer esse trabalho.

O partido não conseguirá organizar nenhum trabalho de base sério e frutífero enquanto não reconhecer que a hegemonia de classe da pequena-burguesia existe e trabalhar para superá-la. Se em nossas fileiras não tiverem camaradas proletarizados não conseguiremos organizar o movimento secundarista sob nossa direção política. Nosso partido não consegue ter o entendimento de como fazer a atuação no ME Secundarista porque as fileiras do partido são hegemonizadas por camaradas que não conseguem ter essa compreensão. Isso, camaradas, não é de forma alguma obreirismo. É uma análise da estrutura e constituição de classe de uma organização, uma organização constituída hegemonicamente por elementos mais abastados da classe operária e que carregam consigo inúmeros desvios políticos advindos de sua condição abastada não pode conseguir estruturar um trabalho permanente e profissional com os elementos mais proletarizados da classe sem antes reconhecer essa estrutura e trabalhar incansavelmente para superá-la.

O camarada Xavier em sua tribuna coloca que um dos grandes impedimentos para a nossa inserção nos sindicatos é uma prepotência/arrogância que muitas vezes nossas organizações tem ao tentar se inserir(veja se esse não é um exemplo claro de desvio pequeno-burguês!). Chegando em espaços com o intuito de “dar a linha do partido”, afirmar e reafirmar sua posição enquanto comunista acreditando que somente sua clareza política e seu programa são capazes de conquistar a classe, como se seu papel enquanto comunista fosse levar a teoria as massas burras e ignorantes de forma quase que messiânica. 

“Portanto, antes de agir explicitamente enquanto partido, inicialmente devemos ter muita humildade. Ouvir atentamente os problemas da categoria, sem “dar a linha” do partido ainda, um trabalho essencialmente de observação e escuta. [...] Apenas após sermos lideranças reconhecidas ou ao menos que nossa presença não seja estranha, é que devemos falar publicamente quem somos. Les operáries não são burros, olham com muita desconfiança qualquer liderança nova que atua em seu sindicato.”

Esse é essencialmente um dos maiores problemas para com o trabalho secundarista também, e o que quero adicionar à discussão é: esse “problema”, que na verdade é um desvio, é resultado da hegemonia pequeno-burguesa nos quadros do partido. Essa incompreensão de como se inserir e fazer esse trabalho de base têm pilares materiais na constituição de classe do movimento comunista brasileiro.

No movimento secundarista o que ocorre na maioria das vezes é: camaradas universitários são designados para tocar tarefas com o movimento secundarista, como esse trabalho de inserção não é profissional, não existe nenhum tipo de formação para que os camaradas tenham a compreensão de como levar o movimento para frente, o que ocorre é que esses camaradas muitas vezes atuam na forma de: “eu vim aqui dar a linha do movimento”, “eu vim organizar atividades para elevar sua consciência”. “Ora, quem é você? Você veio dar a linha do quê?” É isso que os secundaristas perguntam a esses camaradas.

Quando são militantes secundaristas, e não universitários, designados a cumprir esse trabalho, esses militantes não conseguem cumpri-lo com maestria pois o partido não em estrutura para formar politicamente aquele militante (para além de que, na maioria das vezes os militantes secundaristas também são da “classe média” e de escolas particulares que carregam consigo os mesmos desvios dos camaradas universitários).

Como superar a mentalidade pequeno-burguesa e minha experiência prática

Precisamos superar esse desvio nas nossas fileiras. O partido não está lá para “dar a linha” somente. Como o partido conseguirá ter a confiança política da classe se o partido não constrói nenhum tipo de trabalho prático e não disputa a confiança da classe? Antes de dar a linha precisamos superar essa prepotência, é preciso que o partido enxergue com mais seriedade a inserção e trabalhemos coletivamente para criar as bases para a formação de quadros capazes de organizar esse trabalho.

Antes de “dar a linha” você pelo menos conhece as demandas imediatas dos secundaristas daquela escola? Das escolas do bairro? Da cidade? Você tem noção de composição de classe, gênero, sexualidade e raça desses secundaristas? Você sabe o que eles fazem como forma de lazer? Você entende a linguagem deles?

Tudo isso são informações essenciais para conseguir conquistar os corações e mentes dos secundaristas. É preciso ter em mente que o movimento estudantil secundarista praticamente não existe para a esmagadora maioria dos estudantes tendo em vista que a UBES não organiza nenhum tipo de atividade de base. Antes de falar sobre o movimento estudantil, se dê o trabalho de perguntar se os secundaristas sabem o que é, se não souberem, se dedique a explicar mas nunca num tom professoresco, os secundaristas detestam ouvir falas que parecem sermões.

O partido não existe enquanto um “guia das massas”. Ele deve estar intimamente ligado com elas e construir suas lutas, acreditar que o partido deve somente agir como uma “vanguarda guiadora” do movimento quando ele surgir é expressão do esponeneismo, tão combatido por Lênin. O partido deve estar sempre a frente de iniciativas e empregar seus esforços em construir os menores trabalhos que possam vir a ser interessantes em determinadas categorias, localidades e setores da classe operária.

Nossos militantes precisam estar formados politicamente para conseguirem enxergar como uma águia as oportunidades que a história coloca às nossas mãos. Há décadas em que nada acontece assim como há semanas em que décadas acontecem, e são nessas semanas em que décadas que nós temos capacidade de brilhar e organizar o mais frutífero trabalho de base. Saber compreender qual ou outra demanda o setor que estamos tentando nos inserir e dar uma resposta a essa demanda é dever de todo comunista, todo comunista deve trabalhar para conseguir ter esse “gingado” no movimento real. O marxismo-leninismo é práxis revolucionária, não somente teoria e não somente prática. É preciso que os quadros do nosso partido tenham estudo o suficiente da teoria para que possam guiar a prática, estudar os clássicos do marxismo e observar atentamente a realidade e experiências de outros camaradas para construir em si esse entendimento do movimento de massas e saber enxergar as brechas que o movimento nos dá para se inserir.

Alguns métodos de inserção e minha experiência prática 

É preciso ter em mente que os estudantes não se importam com o movimento estudantil primariamente, o partido necessita ter um trabalho que desperte esse interesse pela política nos estudantes. A experiência que tive foi bem marcante e esclarecedora. Cheguei ao 1° ano do Ensino Médio empolgadíssimo com o movimento Estudantil, empenhado em organizar atividades e manifestações, disputei as eleições do Grêmio da minha escola e… bom, o discurso bonito mostrando a “linha correta” em nada resultou na prática. A maior parte dos estudantes não têm interesse em ouvir alguém que eles nunca viram na vida falar sobre o novo ensino médio, sobre luta política e sobre os nossos direitos.

Aprendi na prática que antes de tudo é preciso conquistar a confiança. Para os estudantes secundaristas, qual a melhor forma de conquistar essa confiança? Conheça a situação dos estudantes que você quer organizar um trabalho de base, pergunte, antes de expor sua linha política escute o que os estudantes têm a dizer, entenda suas demandas mais imediatas e formule formas de superação dessas demandas. Para isso, pergunte aos estudantes o que incomoda eles na escola, o que eles mais percebem que prejudica a experiência deles com a educação, quais são as suas perspectivas de uma escola ideal, quais são os espaços da escola que mais incomodam eles e o porquê.

Depois, organize eventos e atividades de lazer para criar um entrosamento com eles, procure descobrir quais são os esportes e jogos eletrônicos que mais os encantam e organize eventos e competições para gerar uma conexão com eles. Evite chegar falando que você é fulano de tal que constrói um trilhão de movimentos diferentes, se apresente primeiramente como um estudante, seja secundarista ou universitário, e evite ser muito palestrante, mas nunca esconda sua organização, seja sempre sincero. Particularmente o Grêmio Estudantil de minha escola organizou algumas atividades culturais e de esporte, como um Show de Talentos, festas em datas comemorativas e um interclasse. Essas atividades precisam ser permanentes para movimentar os estudantes, fazer com que eles tenham entrosamento com você e com o partido e se empenhem em construir atividades coletivas.

Conquistada a confiança e com o entendimento da categoria que você quer se inserir, agora é só pôr a mão na massa. Com o entendimento das demandas imediatas dos estudantes de determinada escola você pode começar a construir uma luta sobre aquela demanda. Se aquela escola tem problema com a merenda e o almoço escolar, por exemplo, chame por uma assembleia para que eles possam pôr suas indignações com a situação da merenda e proponha uma solução prática para aquela situação (uma paralisação, um ato, um manifesto, por exemplo).

No Ceará estamos enfrentando uma situação de que o Governo do Estado não está repassando as verbas para o funcionamento das escolas, fazendo com que a merenda escolar fique em condições precárias e falte dinheiro para a manutenção das escolas. A consequência imediata disso foi: a qualidade da merenda e do almoço diminuiu e o sistema de climatização das escolas parou de funcionar por falta de manutenção. Aí surgiu uma possibilidade de tocar a luta com os estudantes de forma prática. Resolvemos escrever um manifesto reivindicando o repasse das verbas e denunciando a situação de insalubridade vivida pelos alunos e coletamos assinaturas. O entendimento da demanda imediata dos estudantes e uma proposta prática de solução foi de tal tamanho qualitativa que o assunto rondou as conversas cotidianas dos estudantes por semanas, gerando um espírito de rebelião e debates sobre como conquistar nossas reivindicações.

Aproveitando o movimento de greve dos professores do Estado, que lutavam pelo reajuste salarial, reajuste no seu plano de carreira, entre outras demandas, enxergamos uma possibilidade de construir o movimento secundarista em cima dessa luta. Mais ainda quando a maior entidade do estado, a Unefort, publicou seu posicionamento em relação ao ocorrido na Assembleia da APEOC, onde os professores se revoltaram contra a burocracia sindical. A posição vacilante da Unefort em reprovar a ação dos professores e não somar no movimento de greve foi amplamente rechaçada pelos estudantes, que viram razão na revolta dos professores, aproveitando dessa situação dada puxamos a palavra de ordem “pela Greve Geral da Educação!” como forma de explicitar a necessidade de unificar a luta dos professores e dos estudantes, expressamos amplo apoio aos professores e seu movimento de greve e entramos em contato com diversos grêmios do Estado para construir uma plenária online para que pudéssemos debater quais eram as pautas imediatas do movimento estudantil secundarista no estado do Ceará e elaborar uma cartilha para aquela situação.

A articulação foi um sucesso. O contato direto que o MEP Ceará teve com os grêmios estudantis do estado e sua flexibilidade tática fez com que conseguirmos elevar o grau de consciência dos estudantes e começar a construir um trabalho permanente com esses estudantes. No momento, o movimento dos professores terminou, entretanto, a articulação formada em defesa dos professores e pela unificação da luta continua. As pautas estabelecidas pela articulação montada em torno do movimento de greve seguem atuais e o MEP Ceará segue atuando para construir e expandir cada vez mais essa luta. Organizamos assembleias em escolas para debater as pautas estabelecidas na plenária e o movimento segue quente.

É nesse tipo de “gingado” político que conseguimos crescer nossa atuação, é necessário compreender intimamente os secundaristas e suas demandas mais imediatas para se inserir com propostas práticas de luta e conquistar a confiança dos secundaristas. Esse tipo de trabalho precisa de um estudo especial e de um esforço dos camaradas que se dedicam a fazer esse trabalho de base, por isso precisamos que nossos quadros tenham formação e entendimento para superar seus desvios que os impedem de ter esse tipo de aproximação e construção desse trabalho de base. Para construir qualquer trabalho de base é preciso estar ligado a essa base, compreender essa base e ter a confiança dessa base e não somente expor a linha revolucionária que instantaneamente seremos reconhecidos e abraçados pelas massas.

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Essa é minha pequena contribuição ao debate sobre onde residem nossos erros ao organizar o trabalho de base geral e minha perspectiva de como fazer o trabalho de base secundarista. Como complemento a minha contribuição gostaria de recomendar a tribuna do camarada Gabriel Xavier, já citada, “Trabalho Sindical: como fazer?” e minha tribuna “O que é ‘Trabalho de Base’ e como executá-lo?”

Além dessas duas tribunas que se casam diretamente com o assunto aqui tratado, quero deixar destacado a tribuna do camarada Douglas Santos  “Teses Sobre a Hegemonia Pequeno-Burguesa no Movimento Comunista” que elabora uma das discussões que considero mais importantes para serem debatidas no XVII Congresso Extraordinário por se tratar de um debate que engloba a estrutura e constituição do partido do proletariado, o Partido Comunista, o PCB-RR.