'Sobre o Estado de São Paulo e a nacionalização' (Victor Plasa)
Ao definirmos uma proporcionalidade que valoriza a quantidade de militantes, estabelecemos uma desigualdade entre os estados. Deixamos de formar quadros mais qualificados nas regiões menores, deixamos de incorporar seus debates, acúmulos e práticas a nossa política nacional.
Por Victor Plasa para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Em numerosas ocasiões defendi que o estado de São Paulo formulasse meios de ampliar nossa integração nacional, fortalecer os estados mais distantes e com níveis diferentes de desenvolvimento. Esse debate sempre esbarra em dois obstáculos: parte da militância paulista desconhece as dinâmicas de fora do estado – as vezes da capital; e parece haver uma resistência em dialogar com estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
O primeiro ponto é um problema que vai além dos comunistas, o eixo Sudeste ignora e estereotipa as outras regiões, talvez com exceção do Sul. Nossa formação é deficitária e baseada em textos históricos que consideram a história do Brasil como a História do Rio de Janeiro e de São Paulo. É comum, por exemplo, que o Nordeste seja reduzido a Recife ou a Salvador, que o Norte seja apenas Belém, ou que o Amazonas seja toda a floresta, até mesmo a reprodução da piada de que “o Acre não existe”.
Camaradas, tenhamos seriedade. Vivemos em um dos países mais complexos e diversificados do planeta, não há tempo para alimentar estereótipos e ignorar outras regiões. Precisamos defender a água, a floresta, os recursos que serão atacados pelo imperialismo a todo momento. Precisamos defender e tratar os povos originários como pessoas, como parte de nossa sociedade.
Se nosso antigo jornal demorava meses para chegar a algumas regiões, ou nem chegava, significa que não temos qualquer estrutura para ser um partido nacionalizado. Se a militância precisa viajar três mil quilômetros para participar de um congresso em São Paulo e não temos como financiar, como faremos uma revolução?
Nossa política atual ocorre majoritariamente em São Paulo, é pensada a partir da conjuntura paulista, com adaptações a outros locais. Isso acontece porque é o estado com maior número de militantes, consequentemente, tem mais formulações, recursos e tudo que é necessário. Seguimos, para nossas direções e para nossas tarefas nacionais, a mesma proporção que a câmara dos deputados!
Tal proporção é problemática, pois mantém vícios e perspectivas do estado como linhas majoritárias. É interessante, ainda, que o estado de São Paulo, durante grande parte da história do PCB era um estado problemático e politicamente fraco. Entre o I, de 1922 e o II Congresso, de 1925 o estado não recrutou um único militante, mantendo o número de 12 militantes, por exemplo. É recorrente na documentação do partido as críticas a São Paulo, pois os militantes paulistas pareciam não conseguir se inserir na luta de classes, nem aproveitar as movimentações da classe trabalhadora para se tornar sua vanguarda.
Acredito que evoluímos ao longo desses cem anos, mas trago a história para dizer que ter a maior quantidade de militantes significa muito pouco. O estado mais populoso tem a obrigação de ter a maior quantidade de militantes, e deveria ter números muito maiores. Mas a quantidade não deve se sobrepor à qualidade. Ter um número maior nos torna mais importantes que outros estados? Compreendo o argumento de que mais militantes permite dividir melhor o trabalho, mas nem isso fazemos. Defendo que os debates sejam nacionalizados ao máximo, não só por meio das tribunas e do jornal, mas com reuniões periódicas, repasses e outras ferramentas de acesso à base. Poderíamos pensar, até, em uma espécie de “Diário Oficial” interno com os principais debates e circulares de todos os estados.
Apontarei, agora, algumas medidas que acredito serem importantes para construir uma organização com maior nível de integração nacional. São quatro pontos centrais, a formação, as finanças, a agitprop e a participação no XVII Congresso.
Precisamos realizar formações periódicas, com a participação de militantes de todos os estados. Essas formações não podem se restringir a militantes com tarefas específicas ou direções, devem ter a participação mais ampla possível. Com a profissionalização de nossas fileiras, podemos criar um fluxo de militantes especializados em formação, para aprofundar pontos específicos e o diálogo entre os estados.
Além da logística e da comunicação que envolvem esse aspecto, existe a seleção do material a ser utilizado. Nossos sistemas de formação escolhem alguns textos que não representam o melhor da tradição marxista. Textos desatualizados que sequer são clássicos, que acabam tomando o tempo que poderíamos dedicar aos textos bons do sistema de formação e a outros materiais com análises historiográficas atualizadas e uma perspectiva ampliada do Brasil. Quando buscamos textos sobre nossa história, é importante ter em mente que as pesquisas mais gerais tendem a analisar os aspectos da vida política, econômica e social a partir de regiões “mais relevantes” no momento. Como grande parte dos autores é de São Paulo ou Rio de Janeiro, os fenômenos estudados são quase sempre lidos a partir dessas realidades.
Nesse sentido, precisamos reunir publicações que tratem de aspectos importantes para outras regiões também. Por exemplo, entre 1870 e 1920, os estados do Acre, Amazonas e Pará eram extremamente relevantes para a economia nacional, responsáveis por 40% do valor das exportações do país. Sua relevância era tamanha que a região do Acre foi motivo de conflitos entre o Brasil e a Bolívia até os primeiros anos do século XX. A borracha urbanizou cidades como Manaus e Belém, proporcionou o acesso à energia elétrica e ao crescimento demográfico. Hoje, Manaus é um dos centros industriais mais importantes do país, com um potencial político e organizativo inegável, enquanto o ABC Paulista sofre um processo de desindustrialização.
Essa região é costumeiramente lembrada apenas pela floresta e pelos rios, mas tem uma relevância muito grande para a manutenção do poder e do latifúndio. São estados compostos por fazendas de soja e gado, cujos donos são, em sua maioria, membros da burguesia do Sul ou do Sudeste. Tal dinâmica garante que a produtividade cresça, a fiscalização e o controle sejam praticamente inexistentes e a atenção nacional se mantenha distante, o que evita qualquer tipo de denúncia.
Outro exemplo é o estado do Mato Grosso, que gera mais de 15% das exportações do agronegócio. É lá que a luta pela reforma agrária precisa ser construída. Muito falamos sobre o verdadeiro poder político estar ligado diretamente à terra, mas muitos de nós não compreende a dimensão da violência e da opressão que os trabalhadores do campo sofrem no Centro-Oeste, tampouco o papel de órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que regulamentam a ocupação do campo e a reforma agrária, na manutenção do poder do agronegócio.
O eixo Sudeste concentra os fluxos de mercadoria e informação, tem a maior população do país, mas não é onde o latifúndio está concentrado, ainda que ele exista. Pouco adianta focar nossa estratégia e tática na construção do poder popular em São Paulo, por exemplo, se a sustentação do poder da burguesia está no Mato Grosso, no Tocantins ou no Amazonas. Não defendo que abandonemos o sudeste, mas que nossa análise de conjuntura e nosso planejamento compreendam a base real sobre a qual ocorre a luta de classes.
Palmares
O jornal é o órgão fundamental de um partido comunista, é sua maior ferramenta de Agitação e Propaganda, é uma fonte de recursos, é um meio de profissionalizar a militância, criar uma estrutura logística e organizativa, e “treinar” a militância para tarefas mais complexas, que a situação revolucionária exigirá. O jornal do PCB era algo estranho à militância, grande parte dos militantes de menos de três anos nunca chegaram a ver uma versão impressa dele. As matérias pouco agitavam sobre situações locais, atuavam como colunas de membros do CC. O Futuro de São Paulo se mostrou um embrião do que poderia ser um jornal nacional, mas nunca saberemos se seria capaz de se ampliar com a mesma qualidade para além do estado.
Antes de tratar do novo jornal, quero pontuar que o nome Palmares é no mínimo ridículo. Ele busca representar a força, a resistência e o aspecto revolucionário, brasileiro e negro do Quilombo dos Palmares, o que seria uma homenagem extraordinária, se nossa organização representasse algum desses pontos com ao menos metade da seriedade que os quilombolas o fizeram.
Ainda somos um partido majoritariamente branco, ainda não solucionamos a questão dos coletivos, ainda existem silêncios formulativos, casos de racismo entre militantes. É insuficiente dizer que estamos inseridos em uma sociedade capitalista, colonial, machista, racista, etc. Porque tal argumento é costumeiramente usado para justificar algum desses desvios, em vez de tratá-los com a devida seriedade. Penso que podemos criar um jornal que represente nossos ideais sem parecer uma tentativa identitária forçada de apelar a um passado que não representamos.
O esboço de jornal que chamam de Palmares tem o dever de ser nacional, de estar disponível em todos os estados com rapidez, e de agitar sobre questões locais de todo o país. Para isso, precisa ser composto por militantes de todos os estados, formados e capazes de construir o jornal e formar seus camaradas para essa tarefa. Isso exige a formação de estruturas do jornal em diversas regiões, ainda que subordinadas ao órgão central. Exige que levemos em consideração o tamanho do país, as dificuldades de transporte e meios de comunicação. Utilizar uma gráfica em Recife ou em Belém pouco influencia no tempo que os jornais demoram para chegar até Rio Branco, até Porto Velho ou até Cuiabá, pois, mesmo o Pará sendo um estado do Norte, as distâncias, obstáculos e a precariedade das estradas do Norte e do Centro-Oeste ainda são um problema.
Precisamos de políticas de finanças sólidas, consequentes e de longa duração para sustentar essa e outras empreitadas. É preciso começar a pensar em maneiras de formalizar algumas estruturas, como a criação de um CNPJ, de pequenas empresas que tragam recursos e gerem empregos entre nossa militância. Uma gráfica deve ser uma das primeiras tentativas nesse sentido.
O Congresso será em São Paulo de novo?
Uma das questões pouco levantadas sobre o XVII Congresso é seu local. A etapa nacional é sempre uma preocupação, pois envolve transporte, acomodação, espaço para as plenárias, organização das delegações e uma série de outros elementos. Exige recursos altos, conseguidos com diversas campanhas de finanças. Com o aumento do número de militantes, e, consequentemente, de delegados, o que é realmente muito positivo. Contudo, desde a fundação do PCB, São Paulo e Rio de Janeiro sediaram quase todos os Congressos e Conferências. No início, porque a militância só existia nesses estados, até surgir no Nordeste e no Sul, mas hoje a justificativa é que são regiões de fácil acesso, e que a maioria da militância é da região sudeste, portanto, os custos de transporte seriam enormes.
Realizar eventos tão fundamentais como esses sempre na mesma região reafirma, de certa forma, a desigualdade regional que vivemos no Brasil. Por que os camaradas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste precisam sempre se deslocar milhares de quilômetros até São Paulo ou Rio de Janeiro? Eles são menos importantes, ou podem resistir ao desconforto das longas horas de viagem mais do que os sudestinos?
Entendo que a alocação de recursos é um desafio, mas, da forma que a etapa nacional é composta, com base na quantidade de militantes de cada estado, realmente é muito caro enviar a militância paulista para Manaus, Belém, Recife ou Fortaleza. Questiono até que ponto essa forma de representação é a mais efetiva para nossos trabalhos, pois, ainda que o número de militantes seja diferente nos estados, nossa política é construída de maneira desigual.
A delegação para a etapa nacional, em tese, representa os quadros mais avançados de um estado, que carregam os debates e as polêmicas mais fundamentais. Se um estado como São Paulo precisa de dezenas de delegados para levar seus debates, não faz sentido que estados como Acre, Rondônia, Roraima, Piauí, Ceará consigam transmitir todas suas questões com pouquíssimos delegados, as vezes compondo delegações de três pessoas ou menos.
Ao definirmos uma proporcionalidade que valoriza a quantidade de militantes, estabelecemos uma desigualdade entre os estados. Deixamos de formar quadros mais qualificados nas regiões menores, deixamos de incorporar seus debates, acúmulos e práticas a nossa política nacional. Por isso, defendo que adotemos uma divisão igualitária de número de delegados entre todos os estados, e que a etapa nacional seja pensada de maneira rotativa entre as regiões, para estimular, inclusive, a militância a conhecer as dinâmicas de outros locais.
Espero ter demonstrado a importância de pensarmos formas ativas de nacionalizar nosso partido, compreendendo a desigualdade e as conjunturas de cada estado. Nossas direções nacionais e nosso jornal têm um papel fundamental nesse processo, como órgãos que conectam e direcionam toda nossa atuação. É preciso que a militância do sudeste, especialmente de São Paulo, compreenda seu papel no processo, não no sentido de atrasar seus trabalhos para avançar os de outros estados, mas de abandonar sua posição arrogante de maior estado, visando aprender e integrar uma rede nacionalizada de comunicação, formação, atuação conjunta e deliberação que seja composta de maneira mais igualitária por todo o país.