‘Sobre forjar e fingir democracia interna – Debate organizativo com Victorio Codovilla’ (Teylor Lourival)

Um Partido à altura de suas tarefas precisa ter seus acúmulos sistematizados e socializados, ou então cada vez que formos dar saltos qualitativos em nossa atuação local, precisaremos abrir o caminho em mata fechada e cometer erros que já foram enfrentados e encaminhados em outros locais.

‘Sobre forjar e fingir democracia interna – Debate organizativo com Victorio Codovilla’ (Teylor Lourival)
"Democracia interna é apostar na crítica e na autocrítica como método de trabalho, de responsabilidade coletiva, de formação de quadros e de camaradagem."

Por Teylor Lourival* para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Se há algo a ser dito sobre Victorio Codovilla, fundador do Partido Comunista Argentino, seu maior organizador, formulador político e internacionalista, é que suas contradições superaram sua caminhada. Mesmo sendo operário oriundo do anarquismo, ter produzido a obra mais robusta entre seus intelectuais orgânicos e ter sido o Secretário Geral mais longevo do PCA, pouco se fala sobre suas contribuições: sua vida e obra foram legadas ao ostracismo no movimento comunista latino-americano pois, justamente, a história não só não o absolveu como o provou equivocado em diversas oportunidades.

Codovilla foi a “correia de transmissão” do Comintern – e depois da URSS – na América Latina, defensor de fórmulas prontas para os PCs no cone-sul que foram impedidos de explorar as particularidades da luta de classes no Peru, Equador, Chile, Brasil, etc. A polêmica com Mariátegui, na ‘famosa’ Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul, em 1929, é um dos exemplos perfeitos de como a burocracia de Codovilla brecou a interpretação da realidade peruana e enfiou goela abaixo de quem esteve presente na Conferência a linha já encaminhada pela Internacional Comunista. Para não alongar a reflexão sobre este fato, basta a anedota: Mariátegui e o movimento comunista peruano entraram para a história como gigantes incontornáveis, cada vez mais estudados e debatidos, ao passo que é preciso forçar a vista pra encontrar uma nota de rodapé a respeito de Codovilla.

Organizar, traduzir e publicar pela primeira vez em português obras escolhidas de Victorio Codovilla – como temos feito – não é uma tentativa de reabilitá-lo. É compreender que mesmo obscuro, sua envergadura nos guiou por muito tempo e seguirá fazendo sombras na América Latina por mais tempo do que gostaríamos. Assim, só nos resta o caminho de compreendê-lo em sua totalidade, nos apropriarmos de seu ponto mais alto e, negando-o, superá-lo dialeticamente. A batalha pública da crítica fez de Codovilla um dirigente vitorioso em vida, isto é um fato nas mais de cinco décadas que foi membro da executiva do PCA. Mas a prática histórica o derrotou, enterrando sua política junto com seu cadáver, e por isso no Brasil ele segue como um gigante desconhecido. Mantendo-o na escuridão não corremos o risco de reivindicar o melhor de seu legado, mas corremos o risco de cometer os mais graves seus erros.

Dito isso, é fato que o camarada teve diversos acertos, especialmente no que tange a pasta de organização do PCA. Não há espaço aqui para debater a história política do PCA – recheada dos erros capitaneados por Codovilla –, mas gostaria de trazer polêmicas organizativas contidas nos textos “Organizar e Educar (1945)” e “Firmeza nos princípios do marxismo-leninismo e flexibilidade na tática (1956)”. Acredito que o debate sobre esses trechos deva provocar algumas reflexões importantes sobre nossa concepção de democracia interna, de unidade, de centralismo-democrático, de formação, de crítica e autocrítica. Por último, vale dizer que as citações colocadas aqui têm problemas e ensejam discussões importantes pro movimento comunista, então na melhor hora vamos publicar os textos completos e o livro com as obras escolhidas pra gente poder descer a lenha no argentino com qualidade.

Ao falar sobre um período passado de clandestinidade, Codovilla reforça a importância de se utilizar da legalidade para fortalecer a circulação de informações e promover a educação da militância:

“Agora existem organizações de bases amplas, locais para reuniões, e não há motivo para que os organismos do partido sigam tendo somente órgãos executivos, ao invés de ter organismos políticos em que sejam discutidos todos os problemas a fim de que seus membros estejam melhor armados para a aplicação da linha política e tática do partido.
Para enriquecer este trabalho de educação dos membros do partido, assim como da classe operária e do povo, o partido conta também com historiadores, poetas, romancistas, artistas, médicos, engenheiros, arquitetos e economistas que se empenham em assimilar a doutrina marxista-leninista. É preciso que o partido lhes facilite oportunidades de formarem-se para colocarem-se em contato com os filiados e com as massas populares, a fim de que ensinem e aprendam com o partido e com o próprio povo.”

Ora, camaradas, não é essa uma de nossas principais reivindicações? O dever de nós, militantes comunistas, não é organizar a nossa classe, tornando o Partido um operador político da revolução brasileira? Longe do iluminismo barato, é responsabilidade coletiva educar a nossa militância e a classe trabalhadora. Trata-se de criar os espaços para que sejam socializados os acúmulos da totalidade da nossa militância para que tenhamos cada vez mais instrumentos para intervir em nossos locais de atuação. Me respondam, vocês sabem como alcançamos os principais êxitos e quais as dificuldades recorrentes das diferentes experiências de ocupações urbanas e rurais, cursinhos populares, associações de moradores, batalhas de rima, política de frentes, chapas sindicais e estudantis, greves, atuação em territórios indígenas e quilombolas? Porque eu não sei.

Um Partido à altura de suas tarefas precisa ter seus acúmulos sistematizados e socializados, ou então cada vez que formos dar saltos qualitativos em nossa atuação local, precisaremos abrir o caminho em mata fechada e cometer erros que já foram enfrentados e encaminhados em outros locais. Um Partido centralizado nacionalmente, em unidade de ação e em amadurecimento ideológico garante que a riqueza de seu trabalho militante seja plenamente apropriada pelo conjunto da militância. Esta é uma tarefa de organização, que vai garantir a educação do Partido e verificar os avanços onde quer que apliquemos cientificamente esses acúmulos.

Pode ser cômodo atacar os espantalhos da “polêmica pública” e “liberdade de crítica” para esconder o que as críticas à Reconstrução Revolucionária parecem ter menos disposição para admitir: atualmente a única forma de obter informações e acúmulos de outras experiências é através do coleguismo e do boca-a-boca, em conversas particulares, bares, confraternizações e redes sociais. Que sorte a minha ter conhecido o camarada Felipe Bezerra, coordenador da Ocupação Carlos Marighella, em um bar, e que sorte a nossa o camarada e a própria Ocupação terem redes sociais ativas, do contrário pouco ou nada saberíamos sobre essa que é uma das atuações mais avançadas que temos nacionalmente na frente de moradia.

Quantos outros exemplos poderiam ser citados? Muitas vezes não temos capacidade organizativa para articular informações e atividades entre organismos de uma mesma cidade e passamos os últimos anos babando ao nos autoproclamar uma organização nacionalizada e centralizada. Sequer entrarei na consequência direta disso que é o histórico abandono da militância no Norte e Nordeste; sobre isso, declaro completo apoio à moção aprovada por aclamação no IX Congresso da UJC a respeito do tema. Não é à toa, é claro, que os primeiros estados a saírem em defesa da Reconstrução Revolucionária foram exatamente os que sentem na carne essa contradição perpetrada pela nossa atual estrutura.

Precisamos de uma política sólida de sistematização e socialização dos acúmulos e das informações, sem depender do amiguismo ou das “redes sociais de Musk e Cia” (sic). Sem esta política, não é possível fortalecer a democracia interna:

“É sabido que o princípio básico em que reside a força de nosso partido é a unidade de ação de nossos membros e a disciplina voluntariamente admitida. Mas justamente, para que a disciplina e a unidade de ação no partido sejam cada dia mais fortes e mais eficazes, é preciso que no seio das organizações do partido se discutam as diversas opiniões, que se permita a crítica, que se pratique a autocrítica, única forma de que a linha política e tática do partido seja o resultado da elaboração comum, e que seja aplicada sem reservas. Isso servirá também para demonstrar a alguns dos novos filiados que durante certo tempo estiveram na porta do partido, e a outros que ainda o estão, apesar de estar de acordo com sua política, que seu temor à disciplina comunista, que lhes aparece algo como uma disciplina cega, de quartel, é infundado, porque a nossa disciplina é a que consciente e livremente estabeleçam seus próprio filiados de forma democrática.”

Bem, camaradas, sabemos que nos últimos tempos com a ausência da ‘discussão de diversas opiniões’, da ‘crítica e autocrítica’, o resultado foi uma ‘disciplina cega e infundada’, ‘aplicada com reservas pela militância’. Só com muita abnegação – e isso tivemos e temos de sobra – para continuar dedicando horas dos fins de semana, da madrugada, horário de trabalho e lazer, do cuidado doméstico, familiar e financeiro, e tocar tarefas nos quatro cantos da cidade e do estado confiando numa direção iluminada, onisciente e esclarecida, que não se presta a ser transparente e persegue quando questionada ou contrariada. Democracia interna é apostar na crítica e na autocrítica como método de trabalho, de responsabilidade coletiva, de formação de quadros e de camaradagem. Se não for essa a metodologia, a relação direção-base se torna coorporativa e mecânica, onde a direção não tem respaldo político efetivo e se mantém através de outros mecanismos:

Assim, em nosso partido não há lugar para lutas de frações, de grupos ou tendências, que conduziriam à formação de vários centros dirigentes, paralisando assim a ação do partido ou levando-o a sua desagregação. Tal liberdade de ação no seio de nosso partido, nós a entendemos. A experiência nos demonstra que partidos políticos poderosos tiveram sua ação travada em momentos decisivos, porque precisamente, havia grupos e tendências que reivindicavam a tradição política do partido e o direito de dirigi-lo. Nossa disciplina se baseia na aceitação da linha depois desta ser discutida. Mas tomada a decisão pela maioria, desaparecem maioria e minoria, a decisão tomada é obrigatória para todos e o partido em seu conjunto lhe aplica sem reservas. Contudo, é na democracia interna e no debate coletivo que reside a força de nosso partido, e essa força não devemos renunciar.

Só é possível abrir a boca pra falar de unidade e disciplina num Partido onde a democracia interna é plenamente praticada. Do contrário, o Partido surdo e mudo vai servir como instrumento para o silenciamento e a perseguição que, não coincidentemente, quebra todo mês mulheres, pessoas racializadas e trabalhadoras precarizadas em nome de uma fraseologia mesquinha contra fracionismos abstratos. Sem debate crítico e autocrítico e democracia interna, o único meio de influenciar na linha do Partido é através de posições e cargos, os quais podem e serão usados para tensionar e coagir as discordâncias e fingir uma unidade que não existe na realidade.

Para isso, é hora de abandonar de vez os métodos artesanais de organização:

Nosso partido cresce impetuosamente. Operários, camponeses, empregados, profissionais, intelectuais, artistas, pessoas avançadas em diversos setores sociais, ingressam em nossas fileiras. Bem-vindos sejam a nosso partido, que é seu. Mas o desenvolvimento de nosso partido tem ainda caráter de espontaneidade. Muitas de nossas posições que conquistamos ainda não estão consolidadas. Não existe um recrutamento constante e metódico, planejado.
(...)
Por isso é preciso que cada uma de nossas organizações, de acordo com as características econômicas e sociais de sua província ou território, estabeleça um plano de recrutamento, orientado às grandes fábricas, às grandes indústrias, às grandes empresas e aos diversos ramais de transporte. Nas regiões agrícolas, aos trabalhadores assalariados. Isso não quer dizer, é claro, que vamos nos descuidar ou desalentar no recrutamento de outras camadas sociais; mas, repito, o essencial é que o partido mantenha e amplie seu caráter de partido proletário.

Precisamos organizar a casa ao mesmo tempo em que realizamos o giro operário-popular. Desta inflexão política no movimento comunista brasileiro, é inaceitável que saiamos tão amadores na pasta de organização quanto entramos. É inaceitável continuarmos com a divisão sexual, racial e classista do trabalho, com a dicotomia entre trabalho braçal e intelectual e com o carreirismo pequeno-burguês. Educar a militância nestes princípios e apostar na (form)ação coletiva é retirar as formulações das mãos exclusivas das direções que são majoritariamente brancas, universitárias e de classe média, e fazer com que a construção da formulação política seja o resultado sintético do conjunto da militância, cada vez mais proletarizada.

A quem possa desmerecer as questões organizativas ou gritar contra o moinho de vento de que esse debate levaria ao “basismo”, “assembleísmo” ou “lutainternismo”, Codovilla responde sobre a importância das questões organizativas:

Os camaradas devem levar em conta que a organização deve servir para a melhor aplicação da linha do partido, e, por consequência, deve ser construída de modo a aproximar os organismos do partido das massas, e não de modo que as massas tenham que sair em busca dos organismos do partido, como tem acontecido frequentemente. Quer dizer que os organismos de base do partido devem ser criados no seio das próprias massas, em seus locais de trabalho, em seus locais de moradia. É preciso recordar que somos o partido da classe operária e do povo! Que em nossas fileiras militam operários, camponeses, empregados, pequenos industriais, profissionais, intelectuais, artistas e pessoas avançadas em todos os setores sociais!

Um Partido não é um ente com fim em si mesmo, nem um departamento acadêmico ou uma ONG: a função de um Partido Comunista é organizar nossa classe para a revolução. Organizar a polêmica é garantir a construção franca e plural de nossas sínteses políticas. É um delírio – e com tristeza, mas não surpresa, o vimos na boca de dirigentes do PCB – separar nossa qualidade organizativa da nossa atuação política. Educar o Partido, a classe operária e o povo nos princípios do marxismo-leninismo é, portanto, criar as condições para o avanço político:

A experiência internacional demonstra que, para triunfar, os partidos comunistas devem ser partidos monolíticos teórica e organicamente, devem praticar a democracia em sua vida interna sobre a base do centralismo democrático, devem atentar-se para a crítica e a autocrítica, devem estimular toda iniciativa que tenda a melhorar sua linha política e tática, mas de nenhum modo devem chegar a praticar o liberalismo e permitir a circulação de ideias inimigas do marxismo-leninismo no seio do partido, contrárias ao internacionalismo proletário, ou a luta contra a linha do partido e a tolerância de grupos ou frações.

Por fim, encerradas as considerações organizativas e para que não restem dúvidas, é preciso deixar claro que foram muitas as linhas avançadas que foram arrancadas no XV e XVI Congresso do PCB, e a “fração da maioria” tem trabalhado paralelamente para garantir que elas não saiam do papel. Nosso partido tem se rebaixado de modo silencioso, realizando um giro à direita mais antigo do que minha trajetória e o escopo desse texto permitem falar: convido a lerem o livro “O Fogo da Conjuntura”, de Mauro Iasi, Milton Pinheiro e Edmilson Costa. Este livro foi publicado com recursos partidários na boca do XVI Congresso e é um livro horrível. Quem quiser conferir, é só abrir essa tribuna paralela numa página aleatória e ler pra ver o que o Trio Parada Dura pensa. Me surpreende ver camaradas entendendo que a direção tem seguido as linhas mais avançadas de nosso último Congresso, e que o que ocorreram foram apenas percalços orquestrados por fracionistas, ao invés compreender que a direção trabalhou ativamente para brecar estas linhas, contrapô-las paralelamente e silenciar, quebrar e, no limite, expulsar quem cobra. Esse é o verdadeiro fraciocismo conspiracionista tech turbo que querem nos acusar. Mas, claro, sempre que as denúncias e provas das perseguições e da degeneração ideológica do Comitê Central aparecem na timeline de quem está “em defesa do PCB contra o fracionismo”, não se ouve nem um piu a não ser para falar que a ABIN está vendo os prints das mensagens e e-mails, reprovar os métodos utilizados para a disputa e assumir um nem-nem vazio.

PELO GIRO OPERÁRIO-POPULAR, PROLETARIZAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DA MILITÂNCIA!

CONTRA O GIRO À DIREITA DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO!

PELO XVII CONGRESSO EXTRAORDINÁRIO E UNIFICADO!

*Militante da Zona Oeste de São Paulo, garçom, professor de espanhol e tradutor.