'Sobre Carta a um camarada e a estrutura do POSDR' (J.V.O.)

Outra questão importante é que o jornal, como o organizador ideológico do partido, deve ser a tarefa principal, e com ela se consegue ramificar e organizar as demais atividades do partido.

'Sobre Carta a um camarada e a estrutura do POSDR' (J.V.O.)
"Sejamos criativos e audaciosos em nossa proposta. Não temos motivo algum para partir de uma mera repetição mecânica do que tínhamos"

Por J.V.O. (UJC-PE) para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, trago essa tribuna para debater o Partido Operário Social-Democrata Russo, a sua estrutura, analisando um pequeno texto “Carta a um camarada” de Lênin, onde o mesmo basicamente elabora parte do estatuto do partido. Escrito em 1902, Lênin estava preocupado em defender uma estrutura do partido, visto que a organização de então estava muito aquém desse seu escrito. Convido a todos uma leitura atenta do mesmo, para futuros debates congressuais e propostas.

O texto se inicia com Lênin colocando a estrutura superior do partido como a principal estrutura a comandar todas as demais estruturas abaixo dela. Sendo o OC (Órgão Central) o responsável pela unidade ideológica do partido, aquele que organizaria toda a literatura do partido que deveria orientar ideologicamente como o partido deveria divulgar sua linha política para fora da organização, assim como formar seus quadros internos. Além dele, há o CC (Comitê Central) do partido. Esse objetiva organizar o trabalho prático da organização, o eixo mais executivo das tarefas. Ambos os órgãos devem estar em perfeita sintonia, se reconhecerem e estarem em atuação articulada e constante.

Ao jornal cabe a tarefa de centro dirigente do partido, coloco aqui a citação de Lênin comentando o escrito de outro camarada:

“O centro dirigente do partido (e não apenas de um comitê ou de uma região) é o jornal Iskra, que possui correspondentes permanentes entre os operários e está estreitamente ligado com o trabalho interno da organização”. Eu [Lênin] só faria uma ressalva, a de que o jornal pode e deve ser o dirigente ideológico do partido, desenvolvendo as verdades teóricas, as situações táticas, as ideias organizativas gerais, as tarefas gerais de todo o partido, neste ou naquele momento. Quanto ao dirigente prático direto do movimento, somente pode ser um grupo central especial (que podemos chamar até mesmo de Comitê Central), que se relacione pessoalmente com todos os comitês, que integre em seu seio as melhores forças revolucionárias de todos os social-democratas russos e comande todos os assuntos partidários: a distribuição da literatura, a edificação de panfletos, a distribuição das forças, a nomeação de pessoas e grupos para a direção de empreendimentos especiais, a preparação de manifestações de caráter nacional e também da insurreição em toda a Rússia, etc."

É óbvio que o OC e o CC do partido estão dirigidos diretamente pelo “programa único do partido” como cita o mesmo no texto, e com isso, elaboram toda a sua atuação. O programa único do partido é aprovado em congresso.

O OC e o CC precisam se reunir constantemente e se articularem para a realização de sua tarefa. Em Lênin, a preocupação dessas reuniões e com esses militantes é sempre citada por questões de perseguição direta da polícia. Lênin cita como deve existir dentro do OC e do CC do partido, um comitê extraordinário para se organizar quando a reunião for arriscada de se realizar, tendo um número reduzido, de no máximo 5 membros, com objetivo de dar encaminhamentos quando for necessário de forma célere e com menor exposição e risco de afetar todos os principais comitês de uma vez só.

Há logo em seguida uma fundamental citação de Lênin onde o mesmo coloca que “o comitê deverá ser, na medida do possível, não muito grande (para que o nível dos membros seja alto e sua especialização na profissionalização revolucionária completa), mas ao mesmo tempo suficiente para garantir a direção de todos os aspectos do movimento e assegurar a riqueza das reuniões e a firmeza das decisões”. Os “membros” aqui são todos os que estão abaixo de ambos os comitês, em seus comitês de distritos, e na atividade prática em si. Há aqui algo de muito valor, tanto no sentido de que os comitês devem ser reduzidos, assim como o fato de que o número de membros nas demais atividades do partido sejam a maior possível. Mas tem um além, o fato de que é a profissionalização dos membros que tornam a atividade da direção dos comitês possível. Retornarei mais à frente nesse ponto.

Abaixo do CC e do OC estão os comitês de distrito, tendo como condição para existirem que o distrito sejam em grandes cidades, grandes o suficiente para justificar a existência do comitê. Abaixo dos comitês de distrito, todo o tipo de grupos e círculos devem ser formados, sendo no caso de Lênin o principal os grupos de fábrica, mas vários outros grupos.

“No que se refere aos grupos distritais, estou de pleno acordo quando diz que uma de suas tarefas essenciais é a correta difusão de literatura. Penso que os grupos distritais deveriam ser fundamentalmente intermediários entre os comitês e as fábricas e, antes de mais nada, órgãos transmissores. Sua primeira tarefa deverá ser organizar conspirativamente uma correta distribuição da literatura recebida do comitê. Tarefa do mais alto grau de importância porque, se é garantida a ligação regular do grupo especial de distribuidores do distrito com todas as fábricas e com o maior número possível de bairros operários do mesmo distrito, isso assumirá uma importância, imensa, tanto para as manifestações quanto para a insurreição. Estabelecer e organizar uma difusão rápida e correta da literatura, dos panfletos, das proclamas etc., educar para isso toda uma rede de agentes significará realizar mais da metade da tarefa de organização de futuras manifestações e a insurreição.”

Aqui uma questão da maior importância, tanto a articulação dos comitês com os comitês de distrito, e dos comitês de distrito com os seus diversos “círculos” (não confundir com célula). Sejam fábricas, bairros, agitadores, propagandistas, transporte, leitura de literatura ilegal (basicamente toda literatura revolucionária na época), etc. Outra questão importante é que o jornal, como o organizador ideológico do partido, deve ser a tarefa principal, e com ela se consegue ramificar e organizar as demais atividades do partido. Penso eu que Lênin entendia que a condição de unidade ideológica perpassava primeiro em todo lugar que houvesse atividade prática do partido, o jornal chegasse, mas também o jornal fosse o primeiro contato do partido com as pessoas de cada distrito, e com isso, se tornasse o principal elemento a organizar os círculos, comitês e recrutamento para o partido. Um lugar em que a sua área consegue ser organicamente e constantemente coberta pelo jornal é um local em que o trabalho dos revolucionários pode se consolidar, se manter constante. Os revolucionários fazem parte da vida daquela localidade, e em um momento de insurreição será fácil para os revolucionários organizarem toda a população “em uma única noite”, como o próprio Lênin cita.

É sempre importante ligar a lógica dos comitês e do jornal com a dimensão militar da organização de um processo revolucionário. No dia a dia, o jornal chega em cada pessoa distribuindo a sua literatura, espalhando as suas ideias. Em épocas de efervescência política, a estrutura da distribuição de jornal, já adaptada àquele local, àquela população, rapidamente pode se converter em um instrumento de convocação geral da população para manifestações. Em um período revolucionário e de insurreição, tal jornal torna-se a estrutura logística tanto para distribuição de ordens e contato com toda população, quanto de distribuição de armas e tudo que for pertinente e necessário. O jornal é a teia, os tentáculos, que se espalham por todo lugar onde há atividade do partido, ou onde o partido ainda pretende se consolidar, portanto é mais que apenas a dimensão ideológica, mas organizativa, logística, militar, etc. Já os comitês de distrito, os círculos tornam-se cadeias de comando de um processo revolucionário, a lógica do partido ser estruturado com proximidade à uma estrutura militar não é atoa, são armas, brigadas, e estado-maior da revolução. Todos os militantes leninistas devem ter esse fato em nossa mente, pois o nosso objetivo é insurrecional e a ligação entre política e a sua dimensão militar deve estar presente em toda estrutura partidária, mesmo que ainda distante de qualquer possibilidade concreta de aplicá-la.

Cabe aqui outra nota, “círculo”, em Lênin, é um grupo do partido, que estão submetidos aos comitês, e que se reúnem para executar suas diversas e possíveis funções práticas. Seja operar o trabalho nas fábricas, distribuir literatura, os círculos de propagandistas, transporte, agitadores, etc. Todos esses círculos são filiados ao comitê, mas nem todos os membros necessariamente o são, isso depende da função do círculo em si, entro em mais detalhes logo a frente.

Para ficar mais fácil de identificar, Lênin está aqui falando de vários grupos e círculos que são mais ou menos amplos. Alguns como o círculo de distribuidores de literatura, devido ao seu alto grau de perseguição, precisam ser bastante restritos, outros como o de leitura da literatura ilegal, podem ser mais amplos e contar com não militantes. Para ir direto ao ponto.

"Segundo meu ponto de vista, o tipo geral de organização deverá ser o seguinte: na cabeça de todo o movimento local, de todo o trabalho social-democrata se encontrará o comitê. Dele partirão os seus organismos subordinados e as seções filiadas, sob a forma de, em primeiro lugar, uma rede de agentes executivos que abarcará (na medida do possível) toda a massa operária e organizada sob a forma de grupos distritais e subcomitês de fábrica. Nos tempos de paz, essa rede de agentes irá difundir a literatura, panfletos, proclamações e informações conspirativas do comitê; em tempos de guerra, organizará manifestações e outras ações coletivas. Em segundo lugar, sairá do próprio comitê uma série de círculos e de grupos que sirvam para assegurar os diversos aspectos do movimento (propaganda, transportes, as mais variadas atividades clandestinas etc.). Todos os grupos, círculos, subcomitês etc. deverão ser organismos ou sessões filiais do comitê. Alguns deles manifestarão claramente seu desejo de se filiar ao partido operário social-democrata russo e, desde que aprovados pelo comitê, passarão a integrar o partido recebendo (por determinação do comitê ou por acordo com ele) determinadas funções, obrigando-se a se submeter às decisões dos organismos do partido, passando a ter os mesmos direitos de todos os membros do partido, serão considerados os mais próximos suplentes de membros do comitê etc. Outros, cuja situação é a de círculos organizados por membros do partido ou ligados a este ou àquele grupo do partido, não se filiarão Partido Social-Democrata Russo."

Ou seja, vários desses grupos tem suas determinadas funções, a depender do quanto determinada função for restrita a atividades de membros do partido, como distribuição de literatura ou propagandistas, que são importantes para a centralização ideológica e segurança dos membros, até grupos de leitura e de escrita de reivindicações de trabalhadores, por exemplo, que podem ser mais amplos. E destaca-se aqui que Lênin diz que nos casos das organizações mais amplas, por motivos de segurança, sequer deve-se saber que existam membros do partido dentro de cada um dos círculos e grupos, para preservar essas figuras de serem presas, pois com grupos abertos era mais fácil a presença de policiais presentes para mapear e prender as figuras, já nos grupos mais restritos, todos os membros precisam ser necessariamente membros do partido. Mas, mesmo sendo o mais restrito e menos amplo possível, todos os membros do partido em todos os círculos devem constantemente elaborar relatórios para as instâncias superiores das suas atividades para que o comitê tenha ciência da composição dos círculos e grupos, das atividades, de quem compõe, quantos compõem, sua localidade, etc. Para que dê a ciência de todo o comitê da tarefa que está sendo executada.

É importante destacar que Lênin ao longo do texto fala de subcomitês de círculo. Que é algo próximo do que convencionamos chamar de “secretariado”. Um grupo seleto do círculo, com função de ser ele mesmo instrutor e dirigir os trabalhos práticos do círculo, sendo este submetido ao comitê distrital que está diretamente alinhado.

"Há também uma outra questão quanto os círculos, que é a disciplina militar e rigorosa. Grupos de distribuição de literatura são mais perseguidos, portanto precisam ser além dos mais restritos (apenas militantes do partido), também devem ser os mais versados no trabalho clandestino, portanto os mais disciplinados. Já os de propagandistas, por exemplo, são igualmente restritos, porém sua disciplina, pela natureza da sua atividade é menos exigida, embora ainda seja alta, pois propagandistas são raros no partido e devem ser prezados com zelo. Já os círculos de leitura junto aos diversos operários, não só não são restritos, como precisam de muito menos disciplina rigorosa, justamente pelo fato de que os membros do partido não precisam se identificar como membros aos demais integrantes."

Aqui cabe destacar que não precisamos repetir no Brasil atual de forma rígida esse texto (embora seja sempre importante estarmos preparados), trago como elemento de ponderação para sabermos relacionar de forma científica e inteligente a correlação entre disciplina e amplitude dos círculos e grupos do partido a partir de sua função.

Agora cito uma das minhas passagens favoritas do texto do Lênin:

"Para que o centro possa trabalhar bem, é necessário que os comitês locais se transformem, se tornem organizações especializadas e mais práticas, que adquiram verdadeira perfeição nesta ou naquela função prática. Para que o centro possa, não somente aconselhar, convencer e discutir (como se fez até agora), mas também efetivamente dirigir a orquestra, é necessário que se conheça exatamente quem conduz os violinos, onde e como, quem aprendeu e aprende cada um dos instrumentos, onde e como o faz, quem (quando a música começa a desafinar) é responsável pela desafinação e quem é necessário mudar para a correção das dissonâncias."

Essa citação demonstra que a profissionalização das atividades é condição necessária para que um dirigente execute sua função de dirigente. O trabalho de aconselhar, convencer, discutir, instruir é do dirigente da organização. Porém, este precisa que as funções passadas para aqueles que são membros do partido nos diversos círculos e grupos, aprendam a sua função prática para que os demais trabalhos de um dirigente possam ser executados. Ao contrário do que costumamos ter problemas no nosso trabalho prático e de dirigentes, onde basicamente impera o amadorismo, os métodos artesanais, o basismo e o federalismo, onde simplesmente se joga numa célula com determinada função vários militantes que por vezes nunca tiveram qualquer atividade prática ou são bem formados ideológica e praticamente pelo partido e espera-se que tirem do nada as suas atividades e reuniões. Além das experiências que nunca são cientificamente analisadas e socializadas, sendo um eterno reinventar da roda que os militantes têm que fazer em todo e qualquer lugar. Direção dirige. Precisa partir de uma análise científica a atividade e formação dos círculos e que os membros das funções práticas sejam devidamente instruídos para que realizem de forma profissionalizada uma função específica.

Lênin sempre reflete a partir de vários elementos fundamentais para pensar organização, como a questão da segurança, da função em si dos grupos, círculos, comitês, jornal, luta de classes futura etc., o que torna esse texto ainda mais precioso, pois nós militamos em uma organização em que temos uma lógica diferente de se estruturar. Temos células e não círculos e grupos, coletivos partidários que não existiam, não temos um Órgão Central, etc. Assim como é importante percebermos que com as ferramentas de comunicação e com a maior abertura democrática atual, várias restrições existentes naquele período nós não temos, embora seja sempre importante nos atermos ao momento em que será. Tudo isso deverá moldar a nossa organização, e pensar a sua estrutura e formar quadros capazes de fazê-lo é fundamental, pois tal arte não é óbvia e não está “tudo dado”.

Todos nós fomos formados em determinada estrutura partidária e práxis política de nossa organização, porém ela não é uma organização com a mesma estrutura defendida por Lênin. Ao mesmo tempo em que tal estrutura é uma estrutura para um partido específico, em uma situação e país específico, com todas as suas particularidades, e mais importante, é um estatuto de um partido em seu momento de consolidação. Como o próprio Lênin coloca, tal estatuto se modificaria na medida em que o partido cresceria, se tornaria complexo, tem atividades mais diferenciadas, portanto se adapta sempre. E mais, existem momentos da luta de classes em que uma estrutura precisa ser uma ante-sala de uma estrutura posterior, para momentos decisivos de um processo revolucionário, como a própria insurreição.

Recomendo fortemente uma leitura atenta dos camaradas nesse texto, e que com ele possamos discutir uma forma melhor de organizar o partido, com correta formação de comitês, subcomitês, círculos, ou sabe-se lá o que mais iremos colocar. Entender a prioridade das tarefas. A necessidade de um jornal e do OC do partido. Entender melhor a função de um membro de comitê e dos demais membros e a necessidade da profissionalização. Tudo isso é fundamental para rompermos com a forma antiga de organização e possamos acelerar o nosso crescimento e inserção junto à classe, elaborando um novo estatuto, condizente com a realidade brasileira, mas também com o que tem de melhor no legado do movimento comunista, rompendo com vícios e diversas formas organizativas que nada tem a ver com o que tem de melhor em nossa história e com isso avançar. A reconstrução revolucionária do movimento comunista no país perpassa reelaborarmos diversas questões, pois fomos formados em concepções profundamente diferentes de organização. O estudo, a discussão, a divisão do trabalho durante o congresso será fundamental para que possamos construir um partido à altura do desafio e superar o que não nos serve mais.

Sejamos criativos e audaciosos em nossa proposta. Não temos motivo algum para partir de uma mera repetição mecânica do que tínhamos, nem simplesmente replicar o texto de Lênin de forma dogmática. É hora de propor algo muito melhor e condizente com a nossa realidade.

Saudações comunistas!