'Sobre assombrações e natimortos' (Pedro Alcântara)
O processo de rompimento com a social-democracia da II Internacional teve na sua frente, entre outros, o próprio Lênin. Se a história não prova a justeza dessa tática (em determinadas condições, num determinado momento), podemos tirar o “comunista” do nome do partido, pois não iremos a lugar nenhum.
Por Pedro Alcântara para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Por isso, as divergências [...] eram indissolúveis: eles discutiam o futuro de uma criança morta”
Francisco Martins Rodrigues, Novas Lições Sobre a Revolução Russa
Camaradas, é preciso coragem para dizer: o PCB, hoje em dia, e já antes da crise, é um partido natimorto. Dentre alguns motivos para declarar isso, um salta aos olhos: nos falta coragem. Não da coragem individual e militante, dessa temos de sobra, mas a coragem coletiva de afirmarmo-nos comunistas e tomar nosso lugar como organizadores da classe trabalhadora.
Isso fica evidente ao analisar algumas posições tomadas e trabalhados conduzidos neste ciclo que atravessamos. Um internacionalismo vacilante, que, por um lado, oferece apoio “irrestrito” a qualquer experiência que se declare “popular” e, por outro, tem medo de denunciar os desvios revisionistas do “socialismo real”. A recusa de formular uma política de finanças robusta e unificada e, consequentemente, da profissionalização dos nossos militantes, gerando uma cultura de divisão desigual de tarefas e sobrecarregamento dos camaradas. Uma campanha eleitoral que, na maior parte dos casos, foi do puro reacionarismo ao reformismo tacanho. Fica claro que exemplos não faltam.
Acredito agora ter chegado ao ponto central da tribuna: a crise, infelizmente, nos revelou mais uma situação em que tivemos medo de afirmar que somos, sim, comunistas. Camaradas, não quero parecer pedante, mas as atitudes tomadas pelo CC, escoradas no programa absolutamente vacilante do partido, justificam completamente uma cisão. Não só isso, mas deveria ser orgulho de todo comunista consequente “bater no peito” e dizer: sim, somos uma fração e não pretendemos levar para frente a política pequeno-burguesa que se apoderou do PCB.
É de se entender o receio de admitir uma coisa dessas. A todo momento escutamos que o partido leninista deve possuir o maior grau de unidade, que o fracionismo busca unicamente liquidar o partido, e assim em diante. Por mais que não sejam ideias completamente erradas, afinal a unidade de ação só pode alcançar sua eficiência máxima com a unidade ideológica, uma compreensão dogmática de qual deve ser nossa postura perante as frações pode vir a nos causar um mal maior do que qualquer liquidacionismo.
Antes de prosseguir com a argumentação, vale a pena nos referir ao texto “Organização Comunista e a Disciplina”, de Amadeo Bordiga, para uma pequena digressão histórica. Sobre a assombração das frações e o clamor dos dirigentes pela mais estrita disciplina, tem ele a dizer:
Este método acabou por se tornar o principal recurso através do qual aqueles partidos puderam desempenhar, sobretudo com a eclosão da guerra mundial, a função de instrumentos de mobilização ideológica e política da classe trabalhadora pela burguesia, função que significou a sua degeneração final.
Vemos aqui uma estratégia familiar, afinal o oportunista é, acima de tudo, pouco original, a de denunciar com veemência a “falta de disciplina” de alguns, enquanto os que desviam da doutrina marxista são os próprios dirigentes! Continua:
Desta forma, uma ditadura de direita foi construída nesses partidos; os revolucionários tiveram que combatê-la, não porque princípios intrínsecos da democracia interna do partido eram violados, ou para se opor à ideia de centralização do partido de classe (da qual a esquerda marxista era a favor), mas porque na situação concreta era necessário combater as verdadeiras forças anti-proletárias e anti-revolucionárias.
Os comunistas pouco têm a ver com o democratismo que, por vezes, se prolifera entre nossas fileiras. Ora, de que vale a democracia interna e as instâncias se o marxismo está sendo desfigurado? Por que deveríamos “jogar limpo” enquanto as forças anti-revolucionárias usam de todo tipo de artifício para barrar o avanço do partido? Conclui, então, de forma magistral:
Assim, dentro daqueles partidos, justificava-se plenamente o método de criação de frações, opostas às direções e dedicadas a criticá-las impiedosamente; essa atividade acabaria levando a separações e cisões que possibilitaram a fundação dos atuais partidos comunistas. É portanto óbvio que o princípio da disciplina pela disciplina é, em determinadas situações, utilizado pelos contrarrevolucionários para impedir o desenvolvimento conducente à formação do verdadeiro partido revolucionário de classe.
Vejam bem: essa não é uma defesa das frações, por princípio, mas a defesa do uso de um determinado método de disputa em um determinado momento do desenvolvimento do movimento comunista. No mais, camaradas, lembremos que o processo de rompimento com a social-democracia da II Internacional teve na sua frente, entre outros, o próprio Lênin. Se a história não prova a justeza dessa tática (em determinadas condições, num determinado momento), podemos tirar o “comunista” do nome do partido, pois não iremos a lugar nenhum.
Num exemplo ainda mais próximo de nossa militância, podemos citar o início da Reconstrução Revolucionária, em que, à revelia de Roberto Freire e sua corja de liquidacionistas, decidiu que não abandonaria o marxismo. Como explicar que alguns camaradas, que à época combateram as direções antimarxistas, agora mal conseguem dormir por conta da “assombração das frações” que ronda o partido?
Camaradas, volto agora para o início do texto: enquanto nos faltar coragem de tomar posições realmente comunistas, não passaremos de uma triste história de um partido que morreu antes mesmo de nascer. Devemos, assim como Lênin disse a Bogdanov e Gusev, nos livrar “de todos os velhos hábitos de imobilidade, de respeito hierárquico e assim por diante”. Ousadia é a ordem do dia! Se não ousarmos lutar, jamais ousaremos vencer.