'Sobre a questão LGBT, o lesbianismo e a revolução, por uma lésbica' (Contribuição anônima)
Que esta provocação possa contribuir aos debates internos e que nós, lésbicas, possamos ser vistas e estarmos organizadas
Contribuição anônima para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A todos os camaradas escrevo essa tribuna com a intenção de introduzir as contribuições lesbianas à questão comunista. Tendo entrado em contato com o recente debate sobre o tratamento de pessoas lgbts e sobre os termos apropriados tanto à realidade brasileira quantos às identidades referidas, não pude deixar de notar a não menção de lésbicas no debate e suas respectivas posições quanto ao tema, que, irremediavelmente nos atravessa. Portanto, gostaria de abordar uma breve reflexão sobre a mulher lésbica, o movimento comunista, a questão revolucionária, e o gênero.
Primeiramente, identifiquemos o lugar das lésbicas no contexto geral da sociedade. A estrutura familiar burguesa assenta-se nas bases do patriarcado e com isso, no pilar da heterossexualidade. Sabe-se que a heterossexualidade cumpre seu papel classista sobre a divisão de gênero e a hierarquização dada pela relação homem e mulher enquanto par conjugal. Ou seja, reconhece-se a divisão sexual do trabalho. Esta relação estrutura a base mesma da opressão feminina, desde as jornadas duplas ou triplas da mulher trabalhadora, até as violência mais brutais cometidas por homens dentro ou fora do matrimônio, sem falar da própria agência do capital e a mercantilização do corpo feminino.
O modelo familiar burguês como núcleo da violência de gênero coagiu a mulher a um segundo ato de alienação. Sendo a primeira alienação promovida pelo capital e pelo trabalho, a segunda alienação é promovida pelo homem. A alienação entendida, muito brevemente, como a privação do ser genérico, reincide sobre a mulher sobrepondo-se à primeira forma. Enquanto trabalhadora, a mulher é privada de sua vida não-laboral, assim como é o homem, deriva-se disso que sente-se humana em suas atividades mais animais e sente-se tão obrigada quanto um animal adestrado em suas atividades humanas. Em seu segundo ato de alienação, a mulher encontra-se privada daquilo que já não a pertencia: humanidade, contudo, por meio de outros mecanismos, e aqui poderíamos exemplificar, sem aprofundarmos, a maternidade, a feminilidade, os cuidados domésticos, e por fim, a sexualidade.
O rompimento com a heterossexualidade atenta contra todas as ferramentas de dominação citadas, apesar de sua hierarquia interna e sua estruturalidade, em outras palavras, não as atinge uniformemente. Sem maiores distinções, tende-se a equivaler o lesbianismo como a versão feminina da homossexualidade, e este ponto constitui a inflexão deste debate. A homossexualidade masculina, outrora aplaudida, apesar de sim disrruptiva em relação à tradição judaico-cristã e ao modelo familiar citado, não desvencilia-se de seus sujeitos: homens. Neste caso, o afeto sexual entre homens é, ainda, expressão de sua própria liberdade e da máxima cumplicidade entre si. Isto, obviamente, não os impede de sofrer violências homofóbicas, ou serem vítimas do mesmo machismo que os beneficia, mas a presente análise irá enfocar-se no lesbianismo. De forma oposta, o lesbianismo demonstra outras paredes de ruptura além do molde burguês familiar, isto é: o patriarcalismo. Mesmo que o patriarcalismo suponha a presença de uma mulher para exercício de domínio/coerção, e mesmo que homens gays não estejam em contato direto (conjugal) com mulheres, este comportamento persiste em suas relações com outras mulheres, sejam suas mães, empregadas ou amigas. Neste sentido, a ruptura patriarcal do lesbianismo, e aqui encontro seu traço revolucionário, está no não acesso (não) permitido a homens.
A estrutura capitalista-patriarcal fez, servindo a seus interesses, o molde familiar segundo o qual é garantido a presença masculina em cada um dos núcleos, ou seja, é garantida vigilância masculina para o não desvio da normatividade do gênero, da sexualidade, e da divisão do trabalho em cada uma das esferas de socialização da vida das mulheres. O relacionamento lesbiano rompe este suposto ao negar o acesso masculino no núcleo de sua vida, o que tende a contribuir para o rompimento de diversos outros padrões para além da sexualidade, como o rompimento com a feminilidade. Com base nisso, o entendimento político do lesbianismo nos serve como ferramenta para a análise familiar burguesa e se mostra incontornável para o debate sobre os corpos dissidentes dentro do movimento comunista e de qualquer associação que tenha responsabilidade em tratar de gênero e a mínima pretensão revolucionária.
Por essa e por outras razões, a teorização política do lesbianismo deve ser tida como valiosa dentro do movimento comunista. A feminista e militante chilena, Julietta Kirkwood, em sua análise sobre o papel das mulheres na revolução, nota a dificuldade de sua assimilação, a partir da qual às percebe enquanto dissidentes dentro da dissidencia, percebe a mulher tão unicamente no papel de companheira do companheiro. Complexificando a análise de Kirkwood, pergunto: onde estaríamos nós, as lésbicas? Se as mulheres, em leitura geral, heterossexuais, são dissidentes dentro da dissidência, nossa dissidência está elevada a que potência? Se nossa existência não pode ser atrelada à existência masculina, se não somos companheiras de companheiros, sequer existimos dentro do movimento revolucionário?
Finalmente, gostaria de convidar a todos os militantes, sobretudo às mulheres, a interessarem-se pela construção teórica lesbiana, que por muitas vezes carece de análise materialista. Que esta provocação possa contribuir aos debates internos e que nós, lésbicas, possamos ser vistas e estarmos organizadas.
Obrigada!