'Sobre a presença de mulheres: por que iremos falhar se não pensarmos em permanência?' (Deisy)
É preciso construir uma organização que crie condições concretas para que nossos camaradas sejam capazes de conciliar a militância com a materialidade de sua vida pessoal e profissional.
Por Deisy para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Por que nunca tivemos no Partido um número igual de homens e mulheres, nem mesmo na República soviética? Por que é tão diminuto o número de mulheres trabalhadoras filiadas aos sindicatos? Tais fatos devem levar-nos a refletir. […] Somente se milhões de mulheres estiverem conosco poderemos exercer a ditadura do proletariado, poderemos construir segundo diretrizes comunistas. Devemos encontrar a maneira de uni-las, devemos estudar para encontrar essa maneira.”
Lenin em diálogo com Clara Zetkin (1920) [In: O Socialismo e a Emancipação da Mulher, 1956]
A necessidade de publicar essa tribuna surge a partir de uma preocupação com o agravamento dos casos de afastamento e desligamento da Célula Feminista Classista da capital paulista. A partir de uma breve avaliação do período pré e pós-racha - pois não pretendo repetir as queixas já extensamente formuladas sobre o esgotamento dos coletivos e o oportunismo do Comitê Central -, fomos de um coletivo que oscilava na casa dos vinte em número de militantes orgânicas ao cenário atual de apenas quatro militantes ativas. Devemos todos refletir que essa queda não ocorreu por desacordo com a linha política partidária, mas a um processo muito mais preocupante de intensificação das medidas predatórias que a superexploração do trabalho impõe sobre a nossa classe e afeta, principalmente, grupos marcados por gênero, raça e sexualidade.
Camaradas, por mais que nossos militantes consigam se organizar organicamente durante um período de tempo, não podemos ignorar o avanço desse processo sobre as suas vidas. Enquanto coletivo, conseguimos nos manter em um número razoável de pessoas porque tínhamos consistência na realização de recrutamentos, os quais vinham a suprir o também alto número de afastamentos e desligamentos. A diferença para o período atual é que estamos nos mantendo sem realizar recrutamento algum, de forma que esse processo passou a se evidenciar com mais clareza. Por isso, para além de integrar mais pessoas, precisamos formular sobre como mantê-las conosco.
É verdade que houveram avanços na nossa relação com as direções, mas ainda há muito o que ser pensado sobre nosso eixo de trabalho específico e sobre como superar os vícios que muitos camaradas herdaram do antigo PCB. Para nossa célula é exaustivo ter que lutar contra o identitarismo de outras organizações partidárias e sindicais que tentam conduzir o movimento feminista da capital a partir de um programa neoliberal, ao mesmo tempo que tentamos combater o estigma marginalizante dado por nossos próprios companheiros de fileiras. Pois, ora camaradas, não foram poucas as vezes que as militantes do CFCAM foram tidas como um “desvio liberal”, que foram expostas de forma misógina e vítimas de questionamentos sobre a linha política que seguem ou sobre a capacidade em tocar tarefas por mais simples que fossem.
Enquanto confabulamos numa tentativa frustrada de sancionar as questões de como vamos nos defender dentro de nossa própria organização, o governo do estado avança contra a integridade e a vida de milhares de mulheres, seja pela omissão frente ao agravamento dos casos de estupro e feminicídio, que se inflam a cada ano, seja pela guinada conservadora contra os serviços de aborto legal na cidade de São Paulo, evidenciada pela suspensão da realização do procedimento de aborto no Hospital Vila Nova Cachoeirinha - submetendo vítimas de estupro a um processo desumanizador de espera enquanto o feto se desenvolve em seu corpo - e cassação de profissionais da saúde que realizaram o procedimento sob acusações, pasmem, de tortura e assassinato de fetos, feitas de forma ilegal a partir de uma violação do sigilo médico.
Essa múltipla preocupação, com questões internas para além do peso de lidar com os rumos do movimento de mulheres da cidade de São Paulo, corrói as nossas militantes e as afastam da nossa organização, essa crise causada por exaustão e esgotamento está nos fazendo perder, cada vez mais, quadros importantíssimos para nós. Conflitos internos sempre existirão, mas temos que priorizar o nosso compromisso, enquanto comunistas, com a mulher trabalhadora e com o avanço do feminismo classista.
É preciso construir uma organização que crie condições concretas para que nossos camaradas sejam capazes de conciliar a militância com a materialidade de sua vida pessoal e profissional. Não podemos permitir que nossa base quebre enquanto ainda preserva o ímpeto de nossa luta. Não podemos apenas operar com quem mais disponibiliza tempo para se organizar, pois até o mais solícito de nossos militantes está à mercê de um limite imposto pela realidade agressiva do capitalismo tardio. Nós, enquanto um partido revolucionário, temos que colocar nossos esforços em agir antes que esse estágio de esgotamento se efetue, não conseguiremos sobreviver se continuarmos num eterno ciclo de pessoas que entram e saem de nossa organização. É preciso manter a base que conquistamos e avançar cada vez mais ao lado de nossa classe.
Não podemos perder mais nenhuma de nossas militantes esperando que nossa organização se aproprie inteiramente do feminismo classista, pois, ainda que essencial - uma vez que se trata de um deficiência ideológica - é um processo que demanda um tempo caro de nossa realidade objetiva. O capital em seu maior estágio de desenvolvimento intrínseco e dependente do estado patriarcal não aguarda para sugar o engajamento de cada uma de nós. É necessário que medidas emergenciais sejam tomadas para que mais militantes, tanto da base quanto das direções, se apropriem de pautas que há anos foram relegadas a apenas um grupo de pessoas. Devemos todos lutar para suprir as necessidades imediatas das mulheres sob o horizonte da derrocada da sociedade de classes e motivá-las para que permaneçam conosco. Precisamos, com urgência, nos apropriar da luta pela legalização e descriminalização do aborto para nos impor verdadeiramente como uma vanguarda.
Portanto, essa tribuna, mais do que um desabafo, é um apelo para que um trabalho sistemático sobre a tarefa de despertar as massas femininas seja parte central da nossa unidade de ação e que a Reconstrução Revolucionária seja capaz de superar os seus limites e permita a presença de nossa classe em suas fileiras, de modo que o capital se torne incapaz de sugar nossos militantes de nós.