Sobre a posição de Sofia Manzano no 23º EIPCO
As questões do papel do Estado burguês na sociedade de classes, o lugar da China na cadeia imperialista global, a atualidade do marxismo-leninismo – nenhum desses temas é mencionado na Declaração de Sofia. Nem sequer a palavra “marxismo” consta na declaração.
Por Gabriel Lazzari
Há alguns dias, a direção do Partido Comunista Brasileiro fez publicar em seu portal sua declaração ao 23º Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários (EIPCO), apresentada em Izmir, na Turquia. Compreendemos que tenha uma grande importância a exposição não apenas dos erros presentes nessa declaração, mas também demonstrar como a atual direção do PCB segue no rumo de abertamente violar as resoluções do XVI Congresso Nacional do PCB, depois de ter provocado a cisão de nossas fileiras e o expurgo daqueles que defendiam as linhas aprovadas nesse mesmo Congresso – afastando-se cada dia mais do marxismo-leninismo e da estratégia revolucionária.
Em primeiro lugar, como temas secundários, é preciso mencionar alguns aspectos incomuns na declaração e na presença do PCB no EIPCO. O primeiro aspecto incomum é o fato de que, pela primeira vez em suas participações no EIPCO, a declaração não parece ter sido aprovada pelo Comitê Central do Partido, recebendo a assinatura pessoal da atual Secretária de Relações Internacionais, Sofia Manzano. O segundo aspecto incomum é a ausência do Secretário-Geral, Edmilson Costa, no evento – junto à Secretária de RI, estava o Secretário de Formação Política, Milton Pinheiro.
Em segundo lugar, como tema principal, estão mais e mais sintomas da degradação política e ideológica que vem sofrendo o PCB já há anos e que a atual crise só fez agudizar. É preciso demonstrar claramente os problemas na linha política agora adotada pelo CC do PCB em desacordo com suas próprias resoluções congressuais a fim de demonstrar esse processo.
O primeiro sintoma mais gritante é o abandono completo de qualquer perspectiva de solidariedade internacional. Já tinha ficado claro que o compromisso internacionalista estava sendo deixado de lado e substituído por uma perspectiva reboquista das burguesias que se opõem ao polo EUA-UE nas disputas interimperialistas atuais quando, no 22º EIPCO, a Declaração do PCB contrariava as resoluções do próprio Comitê Central e tomava, envergonhadamente, o lado da burguesia russa na guerra da Ucrânia. Possivelmente para evitar maiores problemas, a declaração para o recente Encontro sequer tocou no assunto da guerra – mesmo que já tenhamos mais de um ano e meio de um conflito que tem colocado trabalhadores russos e ucranianos para matarem-se uns aos outros em nome dos interesses de suas burguesias.
É verdade, em um aspecto, poderíamos até pensar que houve um avanço em relação ao apoio à burguesia russa do 22º EIPCO: Sofia Manzano mencionou, em sua declaração, as “guerras interimperialistas”. Infelizmente, não é autocrítica (método abraçado pelos comunistas para corrigir seus erros teórica e praticamente), mas apenas a forma medrosa de agradar a todas as alas que se mantiveram no PCB – fala-se que existem as guerras interimperialistas em abstrato, de modo a reafirmar quase protocolarmente uma formulação teórica; mas não se aponta, não se denuncia, não se critica, nem sequer se aborda a atual guerra interimperialista travada no Leste Europeu. Seria demais, creio, para o nível do giro à direita na política internacional já em curso.
Tampouco é mencionada na declaração a existência ou as lutas da América Latina. Nenhuma menção às lutas de nossos povos irmãos, nem mesmo em apoio ao Partido Comunista de Venezuela, vítima de perseguição de um governo cada vez mais a serviço da burguesia e, mais grave ainda, nenhuma solidariedade a Cuba Socialista e repúdio ao bloqueio de mais de meio século que lhe move o imperialismo estadunidense.
Mas a ausência mais absurda é outra. Mesmo o EIPCO tendo começado no dia 19 de outubro, já com mais de uma semana de uma nova ofensiva sionista contra o povo palestino, não há nenhuma menção na declaração apresentada. Enquanto literalmente milhões de pessoas vão às ruas, em todo o mundo, de Nova Iorque a Sidney, de Sarajevo a Buenos Aires, de Nairóbi a Londres, e em milhares de outras cidades, demonstrando seu apoio a um dos processos mais duradouros e sanguinários de colonialismo recente… nem uma única palavra foi dita por Sofia Manzano, em Izmir, a pouco mais de 1.000 km de Gaza.
O segundo sintoma é o descaso absoluto com as principais questões que o Movimento Comunista Internacional (MCI) enfrenta nos últimos anos. As questões do papel do Estado burguês na sociedade de classes, o lugar da China na cadeia imperialista global, a atualidade do marxismo-leninismo – nenhum desses temas é mencionado na Declaração de Sofia. Nem sequer a palavra “marxismo” consta na declaração.
O mais próximo que se chega dessa temática é a compreensão de que o movimento comunista sofreu grandes derrotas e ainda não se recuperou delas. Também aí é ensurdecedor o silêncio sobre as causas da derrota passada e presente do MCI. Mantendo a lógica do anterior Secretário de RI, Eduardo Serra, que protagonizou a violação tanto da linha internacional deliberada pelo XVI Congresso quanto decisões expressas do CC, o método do PCB segue sendo o da diplomacia cínica entre os PCs, sem abordar os pontos fundamentais de divergência e debate no seio do MCI e contribuindo para a confusão ideológica entre os blocos que hoje tem certo grau de definição no movimento. O método propriamente comunista, do amplo debate das divergências (inclusive entre os Partidos), buscando a superação das debilidades e mesmo a definição ainda mais aguda de posições distintas, o método da crítica e da autocrítica, não é utilizado.
Mas, de maneira implícita, existem, sim, posicionamentos claros na declaração. O primeiro deles é um posicionamento eclético sobre o anti-imperialismo. Sabemos, ao menos desde as formulações de Lênin, a divergência inconciliável que há nas visões sobre o imperialismo no movimento operário internacional. De um lado, a visão marxista-leninista, que compreende o imperialismo como fase superior do capitalismo, a forma contemporânea do capitalismo monopolista, que condiciona e organiza o ciclo de reprodução do capital, tendo implicações não só econômicas, mas políticas, ideológicas, militares etc.; é a visão de que a luta anti-imperialista é indissociável da luta anticapitalista e percebe o desvio oportunista das tentativas de separar uma da outra (inclusive com concessões filosóficas antidialéticas). Do outro, a visão do imperialismo como uma política de Estado ou de governo, como uma forma de gestão do capitalismo, intercambiável por outras conforme a situação e a conjuntura; é a visão que enxerga a necessidade de primeiro lutar contra o imperialismo (geralmente identificado apenas com os EUA e com a Europa), contra as “amarras ao desenvolvimento” impostas exogenamente. Trata-se, portanto, uma visão de que são coisas distintas a luta anticapitalista e a luta anti-imperialista.
Assim, quando Sofia Manzano afirma as posições da atual direção do PCB (e não as do XVI Congresso) em matéria internacional, é nessa confusão que ela se apoia. Isso fica ainda mais claro na posição envergonhada expressa no último parágrafo da declaração, que eu cito integralmente, com grifos meus:
“Por tudo isso, temos agido para impulsionar a organização e a luta do proletariado no sentido de fazer avançar seus interesses imediatos e construir o Poder Popular na perspectiva de um bloco revolucionário do proletariado. No plano internacional, seguimos atuando pelo fortalecimento do campo revolucionário, ao mesmo tempo em que não nos eximimos da responsabilidade de buscar pontes com outras organizações no sentido da construção de uma frente anticapitalista e anti-imperialista.”
O cerne da posição oportunista (não no sentido moral, mas no sentido político do termo) está representado muito bem nessa “dualidade” apresentada por Sofia Manzano e que remete diretamente às violações já perpetradas pelo CC às resoluções do XVI Congresso. Mesmo sem abordar qualquer tarefa específica do fortalecimento do campo revolucionário (do MCI? Da política brasileira?), a dirigente diz que é uma “responsabilidade” do partido “buscar pontes com outras organizações” para construir uma “frente anticapitalista e anti-imperialista”. A que se refere Sofia Manzano? Certamente à faísca que iluminou as divergências no seio do PCB e que instou a atual direção a tomar a decisão por cindir o Partido: a participação na Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI). A PMAI, como já foi noticiado extensamente, é uma articulação de partidos (entre eles alguns que se reivindicam comunistas; outros que perseguem comunistas, como o PSUV) criada no início da guerra interimperialista na Ucrânia. Aqui, dois elementos chamam a atenção.
O primeiro deles é que Sofia Manzano dá seguimento à política que “derubou” seu antecessor, Eduardo Serra, da Secretaria de Relações Internacionais. Em vez de, como comunistas, fazer a autocrítica do posicionamento “negativo para a classe trabalhadora [dos] Partidos Comunistas [que] abrem mão de defender o programa revolucionário proletário para abraçar programas reformistas pequeno-burgueses, seja em nome da ‘unidade contra o neoliberalismo’, seja pela ‘unidade antifascista’.” [Resolução 131, Programa de Lutas, XVI Congresso Nacional do PCB], isso é, de reconhecer que participar de um fórum internacional, a PMAI, que tem como objetivos não apenas apoiar a burguesia russa na guerra, mas polarizar contra o próprio bloco revolucionário do MCI, é o oposto de construir esse mesmo bloco revolucionária; Sofia camufla (sem citar) que o PCB continuará nessa articulação.
O segundo elemento é o abandono completo da formulação estratégica da Frente Anticapitalista e Anti-Imperialista. A própria formulação de Sofia aponta para uma oposição entre, por um lado, o bloco revolucionário do MCI e, por outro, a Frente Anticapitalista e Anti-Imperialista. Dada a vagueza da nota, poderia ser dito que não se trata de “oposição” entre ela e o bloco revolucionário do MCI, mas de complementariedade. Mesmo aí precisaríamos abertamente polemizar contra essa posição oportunista. Se consideramos que a mais estratégica das articulações é aquela entre as forças revolucionárias em nível global, dos Partidos comunistas revolucionários entre si, desenvolvendo e aprofundando uma luta internacional da classe trabalhadora pela revolução socialista em seus países e pelo comunismo global, então o que seria a Frente Anticapitalista e Anti-Imperialista, se não são a mesma coisa? É possível pensar em uma unidade estratégica, com a unidade ideológica e prática da vanguarda dos trabalhadores, que “passe por fora” dos Partidos revolucionários no Movimento Comunista Internacional? Para Sofia Manzano, o que são “outras organizações”? É o PSUV, que persegue judicialmente o Partido Comunista da Venezuela? É o Partido da Democracia Popular sul-coreano, que é abertamente contra a unificação da Coreia sob o socialismo?
O movimento já está bastante claro. Em nome da unidade contra o bloco revolucionário dos Partidos Comunistas, o PCB seguirá em oposição a suas próprias resoluções congressuais em uma posição “em cima do muro”. Não dará consequência ao combate às posições reformistas e etapistas dentro do MCI e seguirá fora da Revista Comunista Internacional (RCI). Afinal o próprio PCB já disse que a RCI é o polo contra o qual se levanta a PMAI, de 1º de agosto, que já criticamos em outro artigo. O mesmo se aplica às questões nacionais: em vez de se declarar oposição ao governo burguês de conciliação de classes de Lula e Alckmin, como o XVI Congresso determinava, a luta “no plano tático” do PCB é contra medidas do governo, e não apresentam uma posição de princípio contra a social-democracia e sua gestão “humanizada” do capitalismo.
Faço estas críticas também em respeito à parte da militância que optou por permanecer no PCB-CC, muitos deles certamente constrangidos com o fato de a fração academicista anti-leninista (portanto, não internacionalista) ter forçado a cisão do partido, negando-se a convocar um congresso unitário, pela certeza de que suas posições oportunistas seriam derrotadas, além de expulsar centenas de camaradas que identificavam como divergentes de suas opiniões, no objetivo de levar o partido a completar o giro à direita na política nacional e internacional.
Alguns permaneceram por coincidirem com as opiniões da fração reformista; outros por motivos menores, como vaidades, afetos e amizades, interesses pessoais e profissionais, corporativismo, fetichismo do culto da sigla etc. Mas provavelmente há muitos que, ainda que tenham críticas políticas às posições do que restou do CC e aos métodos utilizados para forçar a cisão, compraram a narrativa desonesta de que os fracionistas somos os que lutamos pelo XVII Congresso Extraordinário e Unitário, para que a crise fosse resolvida politicamente e não pela burocracia, ou seja, os que defendíamos o verdadeiro centralismo democrático, o amplo debate na militância e a unidade.
Minha expectativa é que estes camaradas percebam e lutem internamente contra o reformismo, o aparelhamento do partido e o uso deste para a auto promoção de carreiristas que se sentem donos do partido.
Ainda que a finalmente anunciada Conferência Política Nacional do PCB formal não possa estatutariamente alterar com soberania resoluções congressuais nem eleger o Comitê Central, ela poderá ser um espaço importante para barrar a atual guinada à direita do partido e condenar a opção que a maioria do CC escolheu para impor sua linha política reformista com o expurgo dos divergentes.
Falando em nome pessoal, minha esperança é que os resultados dessa Conferência Política se aproximem das conclusões do XVII Congresso (Extraordinário) que o Movimento em Defesa da Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro (PCB-RR) promoverá na mesma época.
Pelo menos para que possamos compartilhar ombro a ombro as lutas anticapitalistas e anti-imperialistas que serão cada vez mais intensas, inconciliáveis e dramáticas.