‘Sobre a imprensa revolucionária’ (Pietro)
A produção da imprensa revolucionária não serve para dar o que fazer aos militantes, ou como termômetro de sua organicidade. Esta visão é demasiado estreita, e afasta para a venda do jornal a possibilidade de efetiva mobilização e inserção no proletariado.
Por Pietro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
O jornal revolucionário já foi alvo de alguns textos nesta tribuna. A discussão tem dois eixos: um político e outro técnico. O eixo político confronta os métodos e formas aplicados pelo nosso agora ex-Comitê Central; o técnico fala sobre a necessidade ou relevância do jornal impresso em contraste com os formatos digitais. E, surpreendentemente, é no debate sobre o formato que tem residido a polêmica, enquanto o caráter político do jornal é tratado como mera técnica e procedimentos, ou seja, também como forma.
Tanto a proposta de aplicativo feita pelo camarada Franzoni, quanto a defesa da imprensa física feita pelos camaradas Machado e Deutério ignoram o conteúdo da atividade de produção do jornal revolucionário. A primeira observa a imprensa revolucionária como consumo de notícias, para tornar este consumo mais ágil e acessível; a segunda, como mecanismo de profissionalização e monitoramento das atividades, aparentemente defendendo a função do jornal como organizador. Aparentemente, pois que o que se descreve é um órgão que se organiza para poder se organizar, onde o processo é o fim em si, como se pretendêssemos construir uma ponte não para atravessar o rio, mas para medir a nossa capacidade de construir a ponte. Estamos aí a pôr a forma à frente do conteúdo.
A produção da imprensa revolucionária não serve para dar o que fazer aos militantes, ou como termômetro de sua organicidade. Esta visão é demasiado estreita, e afasta para a venda do jornal a possibilidade de efetiva mobilização e inserção no proletariado. Coloca a sua produção e distribuição como penitência que se deva cumprir em troca de comprometimento e profissionalização. Pelo contrário: o jornal não é só organizador do Partido, mas organizador da classe. Se na sua face organizativa o jornal servisse somente para profissionalizar os militantes, seria mais racional encontrar outra atividade central que exigisse a mesma dedicação mas oferecesse impulso político, e a imprensa fosse entregue a um grupo restrito de militantes responsáveis por curar, escrever e divulgar notícias. Esta última hipótese é inclusive apresentada como desejável pelo camarada Deutério, quando comemora a tecnologia de processamento de texto que agora exigiria menos militantes para a escrita, para que “possamos nos ocupar de trabalhos de organização da classe”. Afirmações como essa revelam o mau juízo subjacente à toda nossa fraseologia leninista sobre o jornal: chamamo-lo de “fio condutor” ou “órgão central”, enquanto negamos a sua centralidade para a tarefa mais importante de um partido revolucionário. A descrição que o camarada Machado faz da função mobilizadora do jornal também é exemplo dessa estreiteza, especialmente quando diz que uma brigada de venda de jornais poderia se transformar em apoio a uma greve. Ora, se é na venda que apoiamos, e não no debate, construção e divulgação da greve em curso pela nossa imprensa, não mobilizamos, fomos mobilizados! Esta é a fórmula para ficarmos a reboque da espontaneidade da classe e sermos sua retaguarda, jamais sua vanguarda.
Então para que ainda um jornal? Como ele pode servir ao proletariado? O próprio camarada Machado, quando cita a entrevista de trabalhadores, tangencia como mera possibilidade parte do que deve ser o combustível da imprensa revolucionária. Um jornal, antes de tudo, noticia fatos. Para isso, deve conhecê-los, apurá-los e escrever sobre eles. A notícia, portanto, é produzida, não vem pronta dos fatos. Precisamente no processo de produção da notícia reside o cerne da nossa atividade. Isto porque este processo exige dos militantes sair às ruas, às casas, aos locais de trabalho, aos comércios, às associações, às igrejas e onde mais se possa entrar para saber da vida local, entrevistar trabalhadores e trabalhadoras, pequenos lojistas, observar, falar e conhecer gente. Saberemos assim dos rostos, gostos, habilidades, opiniões e hábitos de cada entrevistado, e tão importante quanto isso, seremos conhecidos. Ainda que algumas notícias possam prescindir da participação da massa, cabe a nós remar na direção oposta. Se a imprensa burguesa encontra espaço para que membros do povo falem sobre a inflação, a taxa de juros, a corrupção, a falta de saneamento, a violência, as guerras e um sem número de problemas gerais da vida nacional e internacional, não será a imprensa revolucionária a ignorar a opinião do proletariado em qualquer questão que seja, ainda que para combatê-la quando expressar uma visão turva e rebaixada dos fatos. Procurar fontes, apurar e entrevistar não é efeito colateral ou oportunidade advinda da tarefa jornalística, mas antes é a tarefa jornalística. A necessidade de produzir a notícia, e não a de vendê-la, é que nos lançará no interior da classe.
Isso não significa que o produto em si seja menos relevante. A notícia é o meio pelo qual os trabalhadores e trabalhadoras reais e concretos do país saberão o que outros trabalhadores e trabalhadoras, tão reais e concretos como eles, experimentam na sua luta diária. Encontrarão, na vida e nas particularidades dos outros proletários as próprias particularidades, ou seja, encontrarão a si mesmos. O papel do jornal é promover este encontro. Entenderão, não só porque afirmamos, mas pela experiência compartilhada e pela denúncia concreta, quem são seus aliados e quem são seus inimigos. Também saberão dos movimentos das outras classes, suas contradições, as origens dos acontecimentos, as consequências para cada setor da sociedade, em cada âmbito da vida. E “em cada âmbito da vida” significa que não podemos nos circunscrever a falar apenas sobre política e economia. É nossa tarefa falar de todas as áreas de relevância ou interesse, discutindo cinema, música, declarações de celebridades; não nos furtar de debater mesmo aqueles fatos que nos pareçam inconvenientes. Se somos científicos e nossa teoria é correta para entender a totalidade, não há de ser uma totalidade seletiva. Isso significa também expor nossos erros perante as massas e nos responsabilizar pela sua correção.
Somente um jornal deste tipo servirá à constituição de uma forma partidária adequada, na medida em que será resultado de um conteúdo revolucionário. A participação do proletariado na produção de um jornal político significa sua atuação como sujeito, e não somente objeto, da disputa política. E significa também dar a extrema unção aos vícios advindos do nosso jornalismo de gabinete: o muito falar e pouco ouvir, o hábito de discorrer sobre o que não sabemos, de não estudar os fatos, de repetir fórmulas genéricas e abstratas, de privilegiar a forma sobre o conteúdo, o tarefismo, a autocrítica como confissão comiserada para afagar o sentimento alheio. O intenso e contínuo debate com o proletariado pelas páginas da nossa imprensa e fora delas exigirá de nossos militantes cada vez mais perspicácia, mais estudo, mais ação. Com isso poderemos finalmente tratar a política como ciência, e não como esperança.
Debatido o conteúdo político, faço coro com o camarada Rafael Gelli quanto à técnica. O órgão central do partido deve reunir todas as expressões da imprensa moderna, como jornal impresso, jornal digital, produção audiovisual, revista teórica etc. Ao mesmo tempo, a entrega e venda do material produzido deve ser tão pessoal quanto possível, aos informantes que colaboraram com as notícias daquela edição, nos locais de trabalho, nas associações, aproveitando cada oportunidade de ouvir de todos o que pensam das notícias e debatê-las. Certos contatos feitos durante a produção do jornal poderão, se de confiança, servir também como distribuidores, uma rede de bancas informais que possam espalhar entre os mais diversos círculos as ideias do Partido e apresentá-lo como catalisador dos anseios dos trabalhadores e trabalhadoras, pequenos comerciantes e intelectuais.
Quanto às finanças, esquecemos que a publicidade é tradicional fonte de receita da imprensa, algo que vemos nos antigos jornais do PCB, a Tribuna Popular e a Imprensa Popular. Ao mesmo tempo e conforme advertência feita nas diretrizes do 3º Congresso do Comintern, imprescindível ter cautela para não nos tornarmos dependentes de quaisquer anunciantes.
Em resumo: o jornal revolucionário é instrumento para a classe, não para o Partido. Serve à inserção e organização. Informa e veicula a denúncia concreta. É bem curado, com editores técnica, teórica e politicamente capazes em funções bem estabelecidas. Tem em cada militante um repórter, em cada trabalhador uma fonte; em todas as classes, informantes. Une os trabalhadores e contribui com a sua formação em classe. Critica todos os aspectos da vida, com rigor científico e ânimo; evita, no entanto, apelos melodramáticos ou clamores impraticáveis. Trata cada edição com o devido “pessimismo da razão e otimismo da vontade”. Motiva, sem ser ridículo.
Uma vez bem constituído o jornal, não faltará a qualquer militante o que fazer, pois todos e cada um poderão ser repórteres, denunciando diariamente as contradições da sociedade burguesa. Também não faltarão outras tarefas, pois que a reportagem nos levará por toda parte às faíscas espontâneas de luta dos trabalhadores e trabalhadoras. Aí também, caberá ao jornal incendiá-las e alastrá-las através da imprensa comunista.