'Sobre a criação de uma intelectualidade popular e revolucionária' (Bruno dos Anjos)

Se a tendência academicista não for propriamente discutida e superada, simplesmente superaremos um erro de uma situação específica, mas não examinamos as causas deste.

'Sobre a criação de uma intelectualidade popular e revolucionária' (Bruno dos Anjos)
Este divórcio de pensamento/realidade significa também que não se encara a intelectualidade pelo que realmente é: uma prática, que precisa ser testada sempre que exigida nas mais diversas circunstâncias."

Por Bruno dos Anjos, de Belém do Pará, para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Desde a eclosão da crise interna que o PCB passa neste momento, houve uma grande discussão, tanto publicamente quanto nos espaços internos da militância, sobre que papel os intelectuais estão exercendo no nosso partido atualmente, e o diagnóstico é bastante crítico. As "cabeças" do nosso partido hoje são professores universitários, muitos dos quais brancos e de origem de classe média, o que não só está em flagrante dissonância com o perfil da população brasileira hoje, como é igualmente responsável por algumas das maiores deficiências e vícios que podem hoje ser constatados no PCB. As tribunas de debate, medida aprovada no XVI Congresso do Partido e que permitiria uma oxigenação interna do pensamento de seus militantes, não foi posta em prática até a fundação do movimento de Reconstrução Revolucionária; a Fundação Dinarco Reis e o Instituto Caio Prado Jr, mecanismos de divulgação das ideias do partido para fora, tem pouco trabalho a mostrar em termos quantitativos e qualitativos; o jornal do PCB, O Poder Popular, não funciona como deveria e não tem suas deficiências jornalísticas propriamente investigadas; e os meios de agitação e propaganda nas mídias digitais são, por inação ou preconceito ativo (em especial dos militantes mais velhos), jogadas às traças, tendo que ser construídas individualmente pelos militantes do complexo partidário. Todos os problemas listados tem relação com a presença excessiva e acrítica dessa fração universitária no partido, que está contaminada de vícios academicistas que travam ou até prejudicam o progresso do socialismo no Brasil. No entanto, para além do ressentimento ou chiste para com este grupo, é necessário dar alguns passos para trás e entender como chegamos a este ponto.

Conforme Jones Manoel apontou detalhadamente em seu vídeo "O que está acontecendo no PCB?", o PCB pós-tentativa de liquidacionismo entrou em um momento de defensiva, onde o partido meramente sobrevivia e tentava não perder (ainda) mais posições. Com isso, a organização perdeu inserção popular e só conseguia contar com grupos sociais bastante específicos, um dos quais sendo uma fração de professores universitários, os quais, por falta de concorrência, assumiram um papel central tanto na formulação teórica do PCB quanto em sua militância. Esta dominância dos intelectuais na composição social do partido não é somente um sintoma evidente do estado em que se encontra a Revolução Brasileira; é também um terreno fértil para degeneração ideológica e do individualismo. Para compreender melhor, proponho dar alguns passos para trás e entender como o marxismo se desenvolveu no ambiente acadêmico no contexto mundial e brasileiro.

Longe do espantalho de "espaço de doutrinação marxista" que a extrema-direita contemporânea prega, as universidades foram uma das trincheiras anticomunistas na batalha das ideias. Por ser um ambiente historicamente burguês, e com a responsabilidade de formas os quadros administrativos da sociedade (tendo, portanto, papel central como um aparelho ideológico do Estado). a universidade sempre resistiu à doutrina de Marx e Engels desde seu surgimento no século XIX e começo do século XX. Por conseguinte, os marxistas dessa época sabiam que, com raras exceções individuais, não podiam contar com o aparato universitário em sua integridade para divulgar suas ideias, pelo menos não mais do que a imprensa popular e os sindicatos. Somente com o triunfo das revoluções russa e chinesa e a consequente popularização dos princípios marxistas-leninistas que a Academia, em seu coletivo, se voltou ao estudo do marxismo-leninismo, e ainda assim a imenso contragosto - é sabido que Eric Hobsbawm foi preterido de promoções como professor de Cambridge e foi perseguido por décadas por agentes do MI5, isso para não mencionar as perseguições da ditadura militar brasileira à Caio Prado Jr, Josué de Castro, Marilena Chauí, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Horácio Macedo, etc. Quando não seduzia alunos e professores, o marxismo-leninismo era estudado no Academia como quem observa seu inimigo a fim de poder prever seus movimentos, já que não era mais possível simplesmente fingir que o movimento não existia. Entretanto, com o abandono do marxismo-leninismo por boa parte de esquerda depois de 1956, e com a desorganização de outras correntes revolucionárias como o maoísmo e o trotskismo, se criou um ambiente fértil para que se cresça, nas universidades, um certo marxismo higienizado, que foge do socialismo real como o diabo foge da cruz, e que, em última instância, se põe apenas como um método de estudo da sociedade, e não (também) como uma arma revolucionária. Este marxismo domesticado encontraria novo fôlego com o colapso do bloco socialista em 1989-91, não só com a proclamação do "fim da história", mas também com a consolidação do neoliberalismo. É nesse momento que a Academia adota o modelo produtivista que está em voga ainda hoje, focado em produção de artigos e resenhas para circular internamente, modelo o qual feriu de morte o ideal de intelectual público que vigorou por boa parte do século XX nas mais diversas matizes ideológicas. Em consequência disso, este marxismo acadêmico se elitizou ainda mais e oferece ainda menos perspectiva de real transformação da sociedade.

Todo esse contexto global está refletido também na realidade brasileira, e com um imenso agravante. Por conta da formação socioeconômica do país, submetido à dinâmica de capitalismo periférico, a educação no Brasil nunca se democratizou de fato, tendo seus níveis mais altos e influentes restritos às elites, à classe média e a um punhado de proletários, os quais entram como verdadeiras exceções à regra, ainda que essas exceções tenham aumentado no século XXI graças às políticas assistenciais dos governos petistas. Em consequência desta estrutura, a universidade burguesa brasileira assume mais abertamente um papel que as universidades europeias sempre tentaram esconder, o de crivo das desigualdades brasileiras, tanto pelo perfil discente e docente como pelos currículos de seus cursos. Em decorrência da posição dependente de nosso país, o ensino, a pesquisa e a (falta de) extensão são pensados não para servir ao povo, mas para mimetizar um ideal europeu de progresso e de civilização, fazendo com que a democratização de acesso não seja o suficiente para caracterizar uma universidade como popular. Ao(à) estudante de engenharia ou arquitetura: preste atenção na sua seção na biblioteca e repare se há livros sobre métodos de construção dos povos indígenas ou do chamado Oriente. A elitização é muito mais profunda quando se leva em conta o currículo.

Em consequência desse aburguesamento do espaço de ensino, os intelectuais que desejam aprender sobre marxismo nas universidades encontrarão um marxismo ainda mais domesticado, visto que não só já abre mão do discurso revolucionário como não se atenta às particularidades nacionais. O marxismo que é estudado nas universidades brasileiras é majoritariamente branco, masculino, cis, hétero e eurocêntrico, e o conteúdo pouco se esforça em preencher esse vão que há entre o perfil desses estudiosos e do (a)trabalhador(a) brasileiro(a). Esta realidade aberrante, já denunciada há tempos, aous poucos começa a mudar - mas de fora para dentro. A pressão para a inclusão de pensadoras como Beatriz Nascimento e Lélia González no currículo e debate universitários se deu por pensadores e pensadoras externos à Academia, sendo uma verdadeira mudança à fórceps. Todavia, não basta apenas atualizar os autores que estudamos que as contradições estarão resolvidas.

Na intelectualidade militante de hoje, falta um senso agudo de integração de pensamento com realidade. Explico: no modelo que nós temos hoje, o intelectual transforma o pensar não mais em uma atividade, mas em um trabalho, e trabalho se faz em hora e local específico. O intelectual tem seu objeto de estudo (cada vez mais específico, diga-se de passagem) e dedica-se a ele compartimentado da realidade como um ofício tão mecânico quanto ao de um carpinteiro. Se, por exemplo, eu dedico um projeto de pesquisa a estudar a realidade da luta pela terra no Sul do Pará, a luta de classes revelada a partir deste estudo diz respeito apenas a esse tempo e a esse espaço específico e nada mais, ou, quando muito, é mais um dos tentáculos da luta de classes, mas é uma luta de classes que está presa ao papel, que eu posso ignorar assim que eu não estiver executando esse trabalho.

Em suma, o nosso modelo do que significa o pensar o descompromissa totalmente de uma ligação com a realidade em sua esfera cotidiana - botando de forma mais simples: muitos pensadores que se veem como progressistas ou até marxistas não fazem a mínima ideia do que essa opção política implica na prática do dia a dia. Isso não significa apenas que um pesquisador com uma pesquisa avançadíssima possa ser um marido horrível na esfera privada; não estou falando apenas de incoerência entre discurso e prática. Este divórcio de pensamento/realidade significa também que não se encara a intelectualidade pelo que realmente é: uma prática, que precisa ser testada sempre que exigida nas mais diversas circunstâncias. É o que Marx e Engels põem a prática ao conceber, n'A Ideologia Alemã, as bases do materialismo histórico-dialético. Em vez de um modelo fechado e pré-fabricado, temos uma práxis intelectual, com certas regras e suas justificativas - por isso o marxismo é uma ciência. Infelizmente, a prática partidária, calcada pelos acadêmicos e seus apoiadores, trai esse princípio fundamental, e já que estamos falando entre aliar teoria e prática (cotidiana), darei um exemplo contemporâneo de nosso campo.

No momento em que escrevo esse texto, quase todos os estados do Norte do Brasil aderiram ao projeto da Reconstrução Revolucionária - não apenas a juventude, mas o partido em sua integridade. Ou seja, a luta pelo XVII Congresso (Extraordinário) assumiu um caráter regionalista. Há também um caráter geracional nesta luta, tendo em vista o extraordinário e massivo apoio da UJC ao projeto congressual. Supondo que eu fosse um apoiador do atual Comitê Central e que tenta compreender as causas da luta interna, seria de se supor que a direção atual do partido, no mínimo, cometeu erros muito graves para que fique uma divisão tão nítida entre "fracionistas" e formalistas. Esta não é, no entanto, a postura dos militantes deste lado da história. Na amostra que obtive do (anárquico) debate nas redes sociais, sobra deboche para com os jovens. Pintando-os como imaturos, inconsequentes, manipulados, enfim, todo tipo de deboche, que denota uma postura totalmente imatura, preconceituosa e anti-materialista. No caso regionalista é pior: simplesmente isso não está sendo reconhecido no debate. Nós, "fracionistas", somos vistos como uma oposição solta, personalista, e sem recorte social de nenhum tipo. A ala que pretende manter a unidade do partido a todo custo parece não se dar conta da gravidade da divisão que está acontecendo. Ambos os erros que analiso podem ser vistos sob óticas individuais, como o etarismo ou a tradicional concentração de renda e protagonismo político na região sudeste, mas acredito que ambos os erros podem ser traçados na mesma raiz da separação da teoria e prática intelectual. Muito de teoria pode ter sido lido e escrito por essas pessoas, mas quando se exige uma resposta imediata para uma situação de urgência, o materialismo histórico e dialético é jogado pela janela.

Cito este exemplo de nossos opositores não para instar um sentimento de superioridade moral - ao contrário, é um vício generalizado dentro do partido e que nada garante que possa ser superado apenas com a abertura de um congresso extraordinário. Se a tendência academicista não for propriamente discutida e superada, simplesmente superaremos um erro de uma situação específica, mas não examinamos as causas deste, o que pode levar a novos vícios de velhas raízes, e isso se provou fatal, por exemplo, para a geração que venceu o liquidacionismo de 1992, mas não soube a hora de parar, de escutar o novo. Por isso, tendo posto tudo isso, a pergunta fundamental: que fazer?

Muito já se discutiu pela luta por uma universidade popular, que acolha e atenda aos interesses da classe trabalhadora, e isso é fundamental na perspectiva da Revolução Brasileira. Esta, no entanto, é uma proposta de médio e longo prazo, que pode não ter fôlego se não adotarmos paliativos imediatos, sendo um deles a profissionalização dos militantes. Ainda persiste na cultura partidária a ideia de que só há alguns autorizados a formular teoria e falar em nome do partido, e quando não se dá, por exemplo, na ausência de cursos de formação para a militância e/ou a população geral, este preciosismo intelectual se manifesta no ataque às figuras públicas do partido que praticam agitação e propaganda nas redes. Quando nós vemos ataques a Jones Manoel e Gustavo Gaiofato como sendo "webcomunistas", "performáticos", "midiáticos", o que está ocorrendo na prática não é só a negação da crítica científica aos métodos de agit&prop, mas também um preconceito pueril de que o intelectual é uma figura pretensamente séria e pura, que não se envolve em espaços tidos como menores, como a internet. Claro que o trabalho dos camaradas citados pode (na verdade, deve) receber críticas como forma de avançar o trabalho digital do partido, mas não pode ocorrer tendo em vista um modelo totalmente aristocrático de intelectual, visto de forma cada vez mais distanciada e apática. É preciso combater esse vício dizendo em alto e bom som: pensar é direito e dever de todo indivíduo, por quaisquer meios necessários! Seja por uma aula de 2 horas ou um TikTok, o intelectual existe e pode (deve!) ser preto, jovem, enfim, gente como a gente.

A superação do academicismo também passa por fornecer uma cultura alternativa à da universidade burguesa, e para que isso se efetive, é essencial que se lute por novas oportunidades de trabalho para historiadores, sociólogos, filósofos, críticos literários, etc. Estes profissionais muitas vezes tem na Academia sua única opção de sustento e, no caso de origem pobre, até de ascensão social - as bolsas de pós-graduação, sucateadas durante 9 anos, ainda oferecem aos estudantes um salário maior que o oferecido à esmagadora maioria dos trabalhadores deste país. O problema desta (falta de) escolha é o engessamento do potencial intelectual destes profissionais, não só pelo ambiente cultural da universidade, mas até pelas condições práticas, tendo em vista a produtividade massacrante exigida nos cursos de mestrado e doutorado nos dias de hoje. Lutar para que, por exemplo, os arquivos estaduais façam concursos públicos não só dá a historiadores e arquivistas contato com outras parcelas da classe trabalhadora (melhorando, assim, nossa inserção de classe) como também oferece outras possibilidades de pensar o ofício da história naquele contexto.

Posto tudo isso, termino dizendo que a renovação intelectual em nosso partido não é só desejável, mas é também inevitável para nossa sobrevivência como comunistas. Se o socialismo é a doutrina de libertação da classe trabalhadora no plano material, nada mais justo que também a seja no plano mental.

Pelo XVII Congresso Extraordinário do Partido Comunista Brasileiro!

Pelo Poder Popular!

Pelo Socialismo!