Sobre a atitude do Partido Operário em relação à religião
"A religião é o ópio do povo – esta máxima de Marx é a pedra angular de toda a concepção do mundo do marxismo na questão da religião. Todas as religiões e igrejas atuais [...] sempre foram categorizadas pelo marxismo como órgãos da reação burguesa [...]."
Vladímir Ilitch Uliánov Lênin
Publicado em Proletárii, n. 45, em 13 (26) de maio de 1909
Transcrito a partir da coletânea Lênin e a religião
O discurso do deputado Surkov na Duma de Estado durante a discussão do orçamento do Sínodo e os debates na nossa fração na Duma durante a discussão do projeto deste discurso – os quais publicamos abaixo – levantaram uma questão extraordinariamente importante e atual, precisamente neste momento [1]. O interesse por tudo o que está ligado à religião abarcou indubitavelmente vastos círculos da “sociedade” e penetrou nas fileiras da intelectualidade próxima do movimento operário e também em certos círculos operários. A social-democracia tem a obrigação absoluta de apresentar uma exposição da sua atitude em relação à religião.
A social-democracia baseia toda a sua concepção do mundo no socialismo científico, isto é, no marxismo. A base filosófica do marxismo, como Marx e Engels repetidamente declararam, é o materialismo dialético, que assimilou inteiramente as tradições históricas do materialismo do século XVIII na França e de Feuerbach (primeira metade do século XIX) na Alemanha, um materialismo incondicionalmente ateísta, decididamente hostil a qualquer religião. Recordemos que todo o Anti-Dühring de Engels, lido no manuscrito por Marx, acusa o materialista e ateísta Dühring de inconsequência do seu materialismo, de deixar brechas à religião e à filosofia religiosa. Recordemos que, na sua obra sobre Ludwig Feuerbach, Engels o censura por ele não lutar contra a religião com intuito de a aniquilar, mas para a renovar, para criar uma religião nova e “elevada” etc. A religião é o ópio do povo – esta máxima de Marx é a pedra angular de toda a concepção do mundo do marxismo na questão da religião [2]. Todas as religiões e igrejas atuais, todas e quaisquer organizações religiosas, sempre foram categorizadas pelo marxismo como órgãos da reação burguesa, que servem para proteger a exploração e para intoxicar a classe operária.
E ao mesmo tempo, contudo, Engels condenou repetidamente as tentativas, de pessoas que queriam ser “mais de esquerda” ou “mais revolucionárias” do que a social-democracia, de introduzir no programa do partido operário um reconhecimento explícito do ateísmo, no sentido de uma declaração de guerra à religião. Em 1874, falando sobre o famoso manifesto dos fugitivos da Comuna, os blanquistas que viviam exilados em Londres, Engels trata como tolice a sua ruidosa proclamação de guerra à religião, afirmando que essa declaração de guerra é o melhor meio de fazer reviver o interesse pela religião e de dificultar uma real extinção da religião. Engels culpa os blanquistas de não serem capazes de compreender que só a luta de classe das massas operárias, atraindo, em todos os aspectos, as mais amplas camadas do proletariado para uma prática social consciente e revolucionária, está em condições, de fato, de libertar as massas oprimidas do jugo da religião, enquanto a proclamação da guerra à religião como tarefa política do partido operário é uma fraseologia anarquista [3]. E em 1877, no Anti-Dühring, atacando impiedosamente as menores concessões do filósofo Dühring ao idealismo e à religião, Engels condena não menos decididamente a ideia pretensamente revolucionária de Dühring de proibir a religião na sociedade socialista. Declarar semelhante guerra à religião significa, diz Engels, “ser mais bismarckista que Bismarck”, isto é, repetir a estupidez da luta de Bismarck contra os clericais (a famigerada “luta pela cultura”, Kulturkampf, isto é, a luta de Bismarck nos anos 70 contra o partido alemão dos católicos, o partido de “centro”, por meio da perseguição policial do catolicismo). Com tal luta, Bismarck só reforçou o clericalismo militante dos católicos, só prejudicou a causa da cultura verdadeira, pois empurrou para o primeiro plano divisões religiosas em vez de divisões políticas, desviou a atenção de algumas camadas da classe operária e da democracia das tarefas urgentes da luta de classes e da luta revolucionária para o mais superficial e falso anticlericalismo burguês. Acusando Dühring, que queria ser ultrarrevolucionário, de querer repetir sob outra forma a mesma estupidez de Bismarck, Engels exigia do partido operário que soubesse trabalhar pacientemente para organizar e esclarecer o proletariado, o que conduziria à extinção da religião, e não se lançar nas aventuras de uma guerra política contra a religião [4]. Este ponto de vista enraizou-se profundamente na social-democracia alemã, que se pronunciou, por exemplo, pela liberdade para os jesuítas, pela sua admissão na Alemanha, pela liquidação de quaisquer medidas de luta policial contra uma ou outra religião. “Declarar a religião um assunto privado” – este célebre ponto do Programa de Erfurt (1891) consolidou a referida tática política da social-democracia [5].
Essa tática conseguiu transformar-se já numa rotina; conseguiu gerar uma nova deturpação do marxismo para o lado oposto, para o lado do oportunismo. A tese do Programa de Erfurt começou a ser interpretada no sentido de que nós, social-democratas, o nosso partido considera a religião um assunto privado, que para nós, como social-democratas, como partido, a religião é um assunto privado. Sem entrar em polêmica direta com esta concepção oportunista, nos anos [18]90 Engels considerou necessário manifestar-se decididamente contra ela não de uma forma polêmica, mas positiva. A saber: Engels o fez sob a forma de uma declaração, propositadamente sublinhada por ele, de que a social-democracia considera a religião um assunto privado em relação ao Estado, mas não, de modo nenhum, em relação a si própria, não em relação ao marxismo, não em relação ao partido operário [6].
Tal é a história externa das manifestações de Marx e Engels acerca da questão da religião. Para pessoas com uma atitude descuidada em relação ao marxismo, para pessoas que não sabem pensar, ou que não querem pensar, esta história é um emaranhado de absurdas contradições e de vacilações do marxismo: que mistureba, dizem elas, de ateísmo “consequente” e de “condescendências” para com a religião, de oscilação “sem princípios” entre a guerra r-r-revolucionária contra Deus e o desejo covarde de “se adaptar” aos operários crentes, o medo de assustá-los etc., etc. Na literatura dos charlatães anarquistas, podem encontrar-se não poucos ataques deste tipo contra o marxismo.
Mas quem seja minimamente capaz de ter uma atitude séria em relação ao marxismo, de refletir sobre suas bases filosóficas e sobre a experiência da social-democracia internacional, verá facilmente que a tática do marxismo em relação à religião é profundamente consequente e foi profundamente pensada por Marx e Engels, que aquilo que os diletantes ou ignorantes consideram vacilações é uma conclusão direta e inevitável do materialismo dialético. Seria profundamente errado pensar que a aparente “moderação” do marxismo em relação à religião se explica por assim chamadas considerações “táticas” no sentido de querer “não assustar” etc. Pelo contrário: a linha política do marxismo está, também nesta questão, indissoluvelmente ligada às suas bases filosóficas.
O marxismo é materialismo. Como tal, ele é tão implacavelmente hostil à religião como o materialismo dos enciclopedistas do século XVIII [7] ou o materialismo de Feuerbach. Mas o materialismo dialético de Marx e Engels vai mais longe que os enciclopedistas e Feuerbach, aplicando a filosofia materialista ao domínio da história, ao domínio das ciências sociais. Devemos lutar contra a religião. Isto é o ABC de todo o materialismo e, por conseguinte, também do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que se deteve no ABC. O marxismo vai mais longe. Ele diz: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é necessário explicar de modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas. Não se pode limitar a luta contra a religião a uma pregação ideológica abstrata, não se pode reduzi-la a essa pregação; esta luta precisa estar conectada com a prática concreta do movimento de classe dirigido para a eliminação das raízes sociais da religião. Por que é que a religião se mantém nas camadas atrasadas do proletariado urbano, em vastas camadas do semiproletariado e também na massa do campesinato? Por causa da ignorância do povo, responde o progressista burguês, o radical ou o materialista burguês. Consequentemente, abaixo à religião, viva o ateísmo, a difusão das concepções ateístas é a nossa principal tarefa. O marxista diz: não é verdade. Essa concepção é um culturalismo superficial limitado e burguês. Essa concepção explica de modo insuficientemente profundo, não de modo materialista, mas idealista, as raízes da religião. Nos países capitalistas contemporâneos são raízes principalmente sociais. A opressão social das massas operárias, a sua aparente impotência completa perante as forças cegas do capitalismo, que causa todos os dias e a todas as horas aos simples operários sofrimentos mil vezes mais horríveis e martírios mil vezes mais bárbaros do que quaisquer acontecimentos extraordinários como guerras, terremotos etc. – eis em que consiste a mais profunda raiz moderna da religião. “O medo criou os deuses”. O medo da força cega do capital, que é cega porque não pode ser prevista pelas massas do povo, que a cada passo da vida do proletário e do pequeno proprietário ameaça infligir-lhe e lhe inflige uma ruína “súbita”, “inesperada”, “acidental”, a perdição, a sua transformação num pobre, num miserável, numa prostituta, a morte por fome – eis a raiz da religião moderna que o materialista deve ter em vista em primeiro lugar – e acima de tudo – se não quiser permanecer um aprendiz do materialismo. Nenhum livro educativo erradicará a religião das massas oprimidas pelos trabalhos forçados do capitalismo, massas dependentes das cegas forças destruidoras do capitalismo, enquanto essas massas não aprenderem, elas próprias, a lutar unidas, organizadas, sistemática e conscientemente contra esta raiz da religião, contra a dominação do capital sob todas as formas.
Decorrerá daqui que o livro educativo contra a religião é prejudicial ou inútil? Não. O que daqui decorre não é nada disso. Daqui decorre que a propaganda ateísta da social-democracia deve ser subordinada à sua tarefa fundamental: desenvolver a luta de classe das massas exploradas contra os exploradores.
Uma pessoa que não tenha refletido nas bases do materialismo dialético, isto é, da filosofia de Marx e Engels, pode não compreender (ou, pelo menos, não compreender logo) esta tese. Como isso? Subordinar a propaganda ideológica, a pregação de certas ideias, a luta contra o inimigo da cultura e do progresso que persiste há milênios (isto é, contra a religião), à luta de classe, isto é, à luta por determinados objetivos práticos nos domínios econômico e político?
Tal objeção é uma das objeções correntes ao marxismo que testemunham uma completa incompreensão da dialética de Marx. A contradição que perturba aqueles que objetam desta maneira é uma contradição viva da vida, isto é, uma contradição dialética, não uma contradição verbal, inventada. Separar por uma fronteira absoluta e intransponível a propaganda teórica do ateísmo, isto é, a destruição das crenças religiosas em certas camadas do proletariado, e o êxito, a marcha, as condições da luta de classe destas camadas – significa raciocinar de modo não dialético, transformar numa fronteira absoluta aquilo que é uma fronteira móvel e relativa, significa desligar forçadamente aquilo que está indissoluvelmente ligado à realidade viva. Tomemos um exemplo. O proletariado de uma dada região e de um dado ramo da indústria divide-se, suponhamos, numa camada avançada de social-democratas bastante conscientes, que são evidentemente ateus, e em operários bastante atrasados, ligados ainda ao campo e ao campesinato, que acreditam em Deus, vão à igreja ou se encontram mesmo sob a influência direta do sacerdote local, que fundou, admitamos, uma associação operária cristã. Suponhamos, além disso, que a luta econômica nessa localidade conduziu a uma greve. Para um marxista, é obrigatório colocar o êxito do movimento grevista em primeiro plano, é obrigatório contrariar decididamente a divisão dos operários nesta luta em ateus e cristãos, lutar decididamente contra essa divisão. A pregação ateísta pode revelar-se, nessas condições, inútil e prejudicial, não do ponto de vista das considerações filistinas acerca de não assustar as camadas atrasadas, acerca da perda do mandato nas eleições etc., mas do ponto de vista do progresso real da luta de classes, que nas condições da sociedade capitalista contemporânea conduzirá cem vezes melhor os operários cristãos à social-democracia e ao ateísmo do que a mera pregação ateísta. Um pregador do ateísmo nesse momento e nessas condições apenas faria o jogo do padre e dos padres, que nada desejam tanto como substituir a divisão dos operários segundo a participação na greve pela divisão segundo a crença em Deus. Um anarquista, ao pregar a guerra contra Deus a qualquer preço, estaria de fato ajudando os padres e a burguesia (como os anarquistas ajudam sempre de fato a burguesia). Um marxista deve ser materialista, isto é, inimigo da religião, mas um materialista dialético, isto é, que coloca a luta contra a religião não de modo abstrato, não no terreno da pregação abstrata, puramente teórica, sempre igual a si própria, mas de modo concreto, no terreno da luta de classes que tem lugar na prática e que educa as massas mais e melhor do que tudo. Um marxista deve saber ter em conta toda a situação concreta, encontrar sempre a fronteira entre o anarquismo e o oportunismo (esta fronteira é relativa, móvel, mutável, mas existe), não cair no “revolucionarismo” abstrato, verbal, de fato vazio, do anarquista, nem no filistinismo e no oportunismo do pequeno burguês ou do intelectual liberal, que teme a luta contra a religião, esquece sua tarefa, se reconcilia com a crença em Deus, se guia não pelos interesses da luta de classes, mas por cálculos pequenos e mesquinhos: não ofender, não afastar, não assustar, pela sapientíssima regra: “vive e deixe os outros viverem” etc., etc.
É do ponto de vista mencionado que se deve resolver todas as questões parciais que dizem respeito à atitude da social-democracia em relação à religião. Por exemplo, frequentemente é levantada a questão de saber se um sacerdote pode ser membro do partido social-democrata, e habitualmente responde-se positivamente e sem quaisquer reservas a esta questão, referindo-se à experiência dos partidos social-democratas europeus. Mas esta experiência foi gerada não só pela aplicação da doutrina do marxismo ao movimento operário, mas também pelas condições históricas particulares do Ocidente, ausentes na Rússia (falaremos adiante dessas condições), de modo que aqui uma resposta incondicionalmente positiva não é correta. Não se pode declarar, de uma vez para sempre e para todas as condições, que os sacerdotes não podem ser membros do partido social-democrata, mas não se pode de uma vez por todas estabelecer a regra contrária. Se um sacerdote se dirige a nós para um trabalho político conjunto e realiza conscienciosamente o trabalho partidário, não se manifestando contra o programa do partido, podemos aceitá-lo nas fileiras da social-democracia, porque a contradição do espírito e dos fundamentos do nosso programa com as convicções religiosas do sacerdote poderia permanecer, nessas condições, uma contradição pessoal que só a ele diga respeito, e uma organização política não pode submeter os seus membros a provas acerca da ausência de contradição entre as suas concepções e o programa do partido. Mas, evidentemente, semelhante caso poderia ser uma rara exceção mesmo na Europa, e na Rússia ela é pouquíssimo provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse no partido social-democrata e se pusesse a fazer neste partido, como seu trabalho principal e quase único, um sermão ativo das concepções religiosas, o partido deveria absolutamente expulsá-lo do seu seio. Nós devemos não só admitir, como atrair sem rodeios para o partido social-democrata todos os operários que conservam a fé em Deus; somos absolutamente contra o menor insulto às suas convicções religiosas, mas os atraímos para se educarem no espírito do nosso programa, e não para lutarem ativamente contra ele. Nós admitimos a liberdade de opinião no interior do partido, mas em certos limites, determinados pela liberdade de agrupamento: não somos obrigados a andar de mãos dadas com pregadores ativos de concepções repudiadas pela maioria do partido.
Outro exemplo: é possível, em todas as condições, condenar igualmente os membros do partido social-democrata por declararem: “o socialismo é a minha religião” e pela pregação das concepções correspondentes a esta declaração? Não. O desvio do marxismo (e, consequentemente, também do socialismo) é aqui inegável, mas o significado deste desvio, o seu peso específico, por assim dizer, pode ser diferente em situações diferentes. Uma coisa é um agitador, ou uma pessoa que intervém perante a massa operária, falar assim para ser mais compreensível, para começar a exposição, para ilustrar mais realisticamente as suas concepções em termos mais habituais para as massas não desenvolvidas. Outra coisa é um escritor começar a pregar a “Construção de Deus” [8] ou um socialismo construtor de Deus (no espírito, por exemplo, dos nossos Lunatchárski e cia). Na mesma medida que, no primeiro caso, a condenação poderia ser uma picuinha, ou até mesmo uma restrição inadequada da liberdade do agitador, da liberdade de influência “pedagógica”; no segundo caso, a condenação do partido é necessária e obrigatória. A proposição “o socialismo é uma religião” é, para uns, uma forma de transição da religião para o socialismo; para outros, do socialismo para a religião.
Passemos agora às condições que geraram, no Ocidente, a interpretação oportunista da tese: “declarar a religião um assunto privado”. Naturalmente, há aqui influência de causas gerais que engendram o oportunismo em geral, como o sacrifício dos interesses fundamentais do movimento operário em troca de ganhos monetâneos. O partido do proletariado exige do Estado que a religião seja declarada um assunto privado, não considerando como “assunto privado”, de modo nenhum, a questão da luta contra o ópio do povo, da luta contra as superstições religiosas etc. Os oportunistas deturpam o assunto como se o partido social-democrata considerasse a religião um assunto privado!
Mas além da deturpação oportunista habitual (que de modo nenhum foi esclarecida no debate realizado pela nossa fração na Duma ao se discutir a intervenção sobre a religião), existem condições históricas particulares que provocaram a atual indiferença excessiva, se assim nos podemos exprimir, das social-democracias europeias em relação à questão da religião. São condições de dois tipos. Em primeiro lugar, a tarefa da luta contra a religião é uma tarefa histórica da burguesia revolucionária, e no Ocidente esta tarefa foi realizada (ou começada) pela democracia burguesa na época das suas revoluções ou dos seus ataques contra o feudalismo e o medievalismo. Tanto na França como na Alemanha há uma tradição de guerra burguesa contra a religião, começada muito antes do socialismo (os enciclopedistas, Feuerbach). Na Rússia, de acordo com as condições da nossa revolução democrática burguesa, também esta tarefa recai quase inteiramente sobre os ombros do proletariado. A democracia pequeno-burguesa (narodnik) [9] não fez muito, neste aspecto, no nosso país, (como pensam os novos democratas-constitucionalistas cem-negristas ou membros das Centenas Negras democratas-constitucionalistas da Vékhi) [10], mas muito pouco em comparação com a Europa.
Por outro lado, a tradição de guerra burguesa contra a religião criou, na Europa, uma deturpação especificamente burguesa desta guerra pelo anarquismo, o qual se encontra, como já há muito e repetidamente esclareceram os marxistas, no terreno da concepção do mundo burguesa, apesar de toda a “fúria” dos seus ataques contra a burguesia. Os anarquistas e os blanquistas nos países latinos, Johann Most (que foi, a propósito, discípulo de Dühring) e companhia, na Alemanha, os anarquistas nos anos 80 na Áustria, levaram até ao nec plus ultra [grau mais extremo] a fraseologia revolucionária na guerra contra a religião. Não é de espantar que, agora, os social-democratas europeus caiam no extremo oposto aos anarquistas. Isto é compreensível e, em certa medida, natural, mas para nós, social-democratas russos, não é bom esquecer as condições históricas particulares do Ocidente.
Em segundo lugar, no Ocidente, depois da conclusão das revoluções nacionais burguesas, depois da introdução de uma liberdade de consciência mais ou menos completa, a questão da luta democrática contra a religião fora já historicamente tão relegada para segundo plano pela luta da democracia burguesa contra o socialismo que os governos burgueses tentaram conscientemente desviar a atenção das massas do socialismo através da organização de uma “campanha” pretensamente liberal contra o clericalismo. Tal foi o caráter tanto da Kulturkampf, na Alemanha, como da luta dos republicanos burgueses de França contra o clericalismo. O anticlericalismo burguês como meio de desviar a atenção das massas operárias do socialismo, foi isso o que no Ocidente precedeu a difusão entre os social-democratas da sua atual “indiferença” em relação à luta contra a religião. E, mais uma vez, isto é compreensível e natural, porque os social-democratas tiveram de contrapor ao anticlericalismo burguês e bismarckiano precisamente a subordinação da luta contra a religião à luta pelo socialismo.
Na Rússia, as condições são completamente diferentes. O proletariado é o guia da nossa revolução democrático-burguesa. O seu partido deve ser o guia ideológico na luta contra todo o medievalismo, incluindo tanto a velha religião oficial como todas as tentativas de renová-la ou de dar-lhe uma fundamentação nova ou diferente etc. Por isso, se Engels corrigiu de modo relativamente suave os social-democratas oportunistas alemães que substituíam a reivindicação do partido operário de que o Estado declarasse a religião um assunto privado, pela declaração da religião como assunto privado para os próprios social-democratas e para o partido social-democrata, é evidente que a imitação pelos oportunistas russos desta deturpação alemã mereceria uma condenação cem vezes mais viva de Engels.
Declarando da tribuna da Duma que a religião é o ópio do povo, a nossa fração atuou de modo perfeitamente correto, e criou, dessa maneira, um precedente que deve servir de base a todas as intervenções dos social-democratas russos sobre a questão da religião. Deveríamos ter ido mais longe, desenvolvendo ainda mais pormenorizadamente as conclusões ateístas? Pensamos que não. Isso poderia ter comportado a ameaça de exagero da luta contra a religião por parte do partido político do proletariado; isso poderia ter conduzido ao apagamento da linha divisória entre a luta burguesa e socialista contra a religião. A primeira coisa que a fração social-democrata devia fazer na Duma das Centenas Negras foi feita com honra.
Em segundo lugar, e talvez a mais importante para os social-democratas: a explicação do papel de classe da Igreja e do clero no apoio ao governo das Centenas Negras e à burguesia na sua luta contra a classe operária foi igualmente realizada com honra. Naturalmente, sobre este tema pode-se ainda dizer muitíssimo, e as intervenções posteriores dos social-democratas saberão completar o discurso do camarada Surkov; mas, mesmo assim, o seu discurso foi excelente, e a sua difusão por todas as organizações partidárias é um dever direto do nosso partido.
Em terceiro lugar, era necessário explicar detalhadamente o sentido correto da proposição tão frequentemente deturpada pelos oportunistas alemães: “declarar a religião um assunto privado”. O camarada Surkov infelizmente não o fez. Isso é tanto mais lamentável porque, na atividade anterior do grupo da Duma, um erro foi cometido sobre esta questão pelo camarada Beloússov, e tal erro já havia sido apontado, na época, pelo jornal Proletárii. Os debates na fração mostram que a discussão sobre o ateísmo lhe fez esquecer a questão da forma correta de colocar a célebre reivindicação de que a religião seja declarada assunto privado. Não culparemos apenas o camarada Surkov por este erro de todo o grupo da Duma. Mais ainda, reconhecemos francamente que aqui há culpa de todo o partido, que não esclareceu suficientemente esta questão, que não preparou suficientemente a consciência dos social-democratas para o significado da observação de Engels dirigida aos oportunistas alemães. Os debates na fracção demonstram que se tratou precisamente de uma compreensão pouco clara da questão e de modo nenhum de falta de desejo de ter em conta a doutrina de Marx, e estamos certos de que este erro será corrigido nas intervenções posteriores da fração.
No geral, repetimos, o discurso do camarada Surkov é excelente e deve ser difundido por todas as organizações do partido. A fração demonstrou, com a clareza deste discurso, o cumprimento plenamente consciencioso do seu dever social-democrata. Resta desejar que as correspondências sobre os debates dentro da fração sejam publicadas mais frequentemente na imprensa do partido para aproximar a fração do partido, para trazer à luz, ao partido, o árduo trabalho interno realizado pela fração, para estabelecer a unidade ideológica na atividade do partido e da fração.
Notas
[1] Lênin se refere à intervenção de P. I. Surkov – social-democrata (bolchevique) eleito deputado na III Duma de Estado – durante a discussão do orçamento das despesas do Sínodo em 14 (27) de abril de 1909.
[2] Ver K. Marx, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel.
[3] Ver F. Engels, Literatura dos Refugiados, artigo II: Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna.
[4] Ver F. Engels, Anti-Dühring.
[5] Vide Engels: Para a crítica do projeto de programa social-democrata de 1891: “5. Completa separação de Igreja e Estado. Todas as comunidades religiosas sem excepção serão tratadas pelo Estado como associações privadas. Perdem toda a subvenção de meios públicos e toda a influência sobre as escolas públicas. (Não se pode, contudo, proibi-las de fundarem escolas próprias com meios próprios e de aí ensinarem os seus disparates).”
[6] Lênin se refere à Introdução de Engels à brochura de Marx A guerra civil na França.
[7] Enciclopedistas: grupo de iluministas franceses do século XVIII, filósofos, naturalistas, publicistas, que se agruparam para publicar a Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (“Enciclopédia ou Dicionário Explicativo das Ciências, das Artes e dos Ofícios”). Em 1751-1780, foram publicados 35 tomos. O organizador e dirigente do grupo era o materialista Denis Diderot. Os enciclopedistas eram ideólogos da burguesia revolucionária e desempenharam um papel decisivo na preparação ideológica da Grande Revolução Francesa.
[8] Corrente político-filosófica surgida no período da reação de 1907-1910 no seio de uma parte dos intelectuais do partido. Os “Construtores de Deus” (A. V. Lunatchárski, V. A. Bazárov, Bogdánov e outros) pregavam a criação de uma nova religião, “socialista”, tentando conciliar o marxismo e a religião. A reunião da redação do jornal Proletárii de junho de 1909 condenou a “Construção de Deus” e declarou, numa resolução especial, que a fração bolchevique nada tinha em comum “com semelhante deturpação do socialismo científico”. A essência reacionária de tal grupo foi exposta por Lênin na sua obra Materialismo e empiriocriticismo (1908).
[9] Em russo, literalmente, “populistas”: idealizadores da pequena produção comunitária remanescente sob o nascente capitalismo russo, os populistas acreditavam que o campesinato, e não a classe operária, seria a força motriz da revolução russa. Lênin criticou as concepções filosóficas, econômicas e sociológicas dos narodnik extensamente.
[10] Vékhi (“Marcos”): coletânea de sete artigos de notórios publicistas Kadets publicada em Moscou, na primavera de 1909. Nos seus artigos, os “vékhistas” tentavam difamar as tradições democráticas revolucionárias russas, condenavam o movimento revolucionário de 1905 e agradeciam ao governos czarista por salvar a burguesia da “fúria do povo, com suas baionetas e prisões”. O artigo de Piotr Struve tratava da relação entre a intelligentsia russa e a revolução. Em outros escritos, como os de Nikolai Berdiaiev e de Serguei Bulgákov, eram tratados temas filosóficos e éticos, como o niilismo, o heroísmo e a verdade intelectual.
[11] O deputado menchevique T. O Beloússov, ao discutir as estimativas do Sínodo em uma sessão da III Duma do Estado, em 22 de março (4 de abril de 1908), referiu-se à religião como “um assunto privado de cada pessoa individual”. Sua formulação ambígua foi criticada no editorial do jornal Proletárii, n. 28, 2 de abril (15 de abril) de 1908.