'Soberania nacional e Soberania de classe' (Camarada J.T.)

Camaradas, se a Soberania é a defesa do poder da classe que governa o Estado, então o projeto comunista deve abarcar uma concepção proletária da mesma, uma política externa independente e que busque preservar e expandir a revolução.

'Soberania nacional e Soberania de classe' (Camarada J.T.)
"É preciso que o Estado Proletário se preocupe não apenas com o apoio material a processos revolucionários mas também apoio ideológico, substituindo o nacionalismo dentro de suas fronteiras pela concepção da classe trabalhadora enquanto classe internacional."

Por Camarada J.T. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, a presente tribuna tem como objetivo debater o significado de Soberania Nacional para nós comunistas. Com certa frequência, vejo marxistas, de nosso partido ou não, celebrando projetos nacionais-desenvolvimentistas, adotando uma concepção burguesa de soberania ou até mesmo apoiando o reacionário Estado brasileiro por supostas atitudes de “independência” dentro do sistema internacional. Este trabalho não pretende ser uma teoria marxista da soberania, pelo contrário, busco apenas introduzir este debate à nossa militância e saúdo todes es camaradas que quiserem contribuir através de críticas e complementos.

O que significa Soberania ?

O conceito de Soberania surge nas Relações Internacionais com a assinatura do Tratado de Vestfália em 1648 através da organização de um sistema de Estados europeus com variados graus de independência prática e jurídica, abrangendo desde grandes potências (ex: França e Espanha) até pequenos Estados sob administração de dinastias, como o caso dos Países Baixos sob domínio Habsburgo. Neste sentido, a Soberania extrapola o princípio de cujus regio, ejus religio[1] (Cada reino, sua religião) para além da ruptura religiosa, transformando-o numa ruptura com a ideia de que um Estado poderia governar sobre outros (Watson, 2004).

A Soberania costuma ser definida em linhas gerais como a legitimidade e capacidade do Estado em exercer seu poder de forma exclusiva sobre determinados territórios. Contudo, analisando de forma materialista, tal exercício de poder se dá de muitas formas: justiça, polícia, legislação, tributação, censura e por aí vai, mas em essência o poder do Estado é violência de classe, pois o Estado surge das contradições do sistema vigente e se constitui enquanto aparato para a repressão da classe dominada pela dominante (Lênin, 2017). Neste sentido deve-se entender a Soberania como o direito à exclusividade desta violência sobre determinado território, pois quando falamos de Soberania Nacional na verdade estamos falando a respeito da manutenção e exercício do poder de uma classe.

A Soberania brasileira

Atualmente, o Estado brasileiro[2] é composto por alguns representantes do proletariado, oriundos especialmente de movimentos sociais, mas dominado por diferentes frações da burguesia, que vão desde o agronegócio mais reacionário aos resquícios de um desenvolvimentismo nacionalista, além de especuladores e rentistas. Muito se diz que nossa burguesia seria “entreguista”, subserviente e disposta à dar de mãos beijadas nossas riquezas aos Yankees e Europeus e que por isso o Brasil não seria um Estado soberano. Contudo, camaradas:

(I) Soberania significa a legitimidade e capacidade do Estado para exercer seu poder sobre determinado território.

(II) O Estado é burguês.

(III) Para reproduzir seu capital, setores dominantes da burguesia dependem da subserviência ao imperialismo e ao capital estrangeiro.

(IV) É possível separar a Soberania nacional da Soberania de Classe?

Questiono: Não seria justamente tal subserviência uma forma da burguesia preservar a sua Soberania? Isto é, se a subserviência é a condição necessária para a manutenção e reprodução do poder da classe dominante no Estado brasileiro, isso não significa que a violação de nossa Soberania é no fundo o respeito à mesma, pois esta na verdade pertence à burguesia?

Um exemplo para esclarecer: Quando o agronegócio desmata uma floresta para exportar soja e isto é feito com aval ou omissão do Estado, a burguesia reproduz seu poder e seu capital, reproduz sua soberania. Pode-se dizer que tal soberania é limitada ou condicionada pela relação de dependência com o mercado exterior, mas em nenhum momento a burguesia se propôs a superar tal condição, pelo contrário, o que ocorre é seu aprofundamento.

Neste sentido, vejo que nossa militância frequentemente aponta o problema das privatizações como um problema de “violação” da Soberania mas na verdade isso é uma perspectiva reformista, talvez desenvolvimentista, por desconsiderar que as estatais dentro do Estado burguês ainda estarão servindo à classe dominante. Não podemos entregar a Petrobrás na mão de acionistas estrangeiros, mas o Estado brasileiro não apresenta um projeto para que ela de fato sirva à industrialização e desenvolvimento do país, pelo contrário, continuamos a “exportar petróleo, importar gasolina”. A privatização das indústrias de base na década de 1990 também levou ao mesmo problema, se durante o século XX elas serviam à burguesia industrial nacional, sua venda para estrangeiros ou nacionais só fez com que elas trocassem de senhor, as relações de produção permaneceram iguais, pois mesmo dentro de uma “social-democracia” ou de um capitalismo “reformado” , as empresas ainda servirão para o lucro de seus proprietários. O projeto desenvolvimentista se mostra limitado justamente por conta disso mas também por acreditar no mito de uma “burguesia nacionalista’ interessada no desenvolvimento do país através do comprometimento com um projeto político mas a realidade nos mostra que o dito “interesse nacional” é o interesse da burguesia, se em alguns momentos, especialmente no século XX, existia o objetivo de industrializar o Brasil e desenvolver suas capacidades econômicas, então o que vemos hoje é justamente o contrário. Por mais que governos possam ser disputados por diferentes atores, a própria razão-de-ser do Estado sempre vai favorecer os grupos que tiverem mais poder material e ideológico, por isso pressionar para que o governo brasileiro adote uma política mínima de desenvolvimento nacional é uma ideia vã, pois desconsidera os interesses das classes que compõe o Estado.

Aonde vai o BRICS?

Acredito que nossas tese congressuais acertam ao caracterizar o BRICS enquanto um bloco subimperialista, mas a organização ainda requer uma análise um pouco mais complexa. É verdade que a desdolarização e formação de uma contra-hegemonia são questões importantes, porém, devemos pensar a fundo os limites disso dentro do sistema capitalista.

Ao meu ver, analisando a história enquanto processo, o BRICS caminha para a formação de uma ordem paralela à ordem liberal unipolar. Falo na existência de duas ordens simultâneas em que o Brasil, e outros países, estarão inseridos. Acredito que isto influenciará nossa polítca externa na medida em que estaremos sendo disputados e estaremos disputando os dois lados. Explico: A dependente burguesia brasileira buscará o caminho que lhe servir melhor, criando assim novas relações de dependência e se desfazendo de antigas. Talvez os EUA passem a ter uma influência menor na nossa política mas ao mesmo tempo a China pode aproveitar essa brecha para expandir seu capital, como tem feito na África. Neste mesmo sentido, o Brasil pode aproveitar o bloco para projetar sua influência na África e América Latina, nossas teses novamente acertam ao denunciar este processo que já ocorre.

É verdade que a política externa chinesa é muito menos agressiva que a americana, que muitas vezes tal política é vista com bons olhos seja por ser supostamente contra-hegemônica, seja por apresentar novas possibilidades de financiamento de áreas como infraestrutura. Contudo, é importante frisar que a China ainda não é uma potência hegemônica e a partir disso surgem as questões: (I) Pequim tem o interesse de se tornar uma hegemonia? (II) O que os chineses entedem por hegemonia? (III) As práticas[3] geradas por este entendimento serão diferentes das práticas adotadas pelos EUA?

Se no ocidente, a hegemonia significa a concentração quase-total de poder material e se no capitalismo é impossível que um Estado burguês escape da lógica de reprodução de capital e maximização de lucros, então é difícil imaginar que a China (ou a Rússia, ou Índia, ou o Brasil) fuja disso. Deste modo, precisamos ter claro que independemente do resultado do BRICS, o que teremos provavelmente será um reforço da Soberania Burguesa no Brasil, talvez com mudanças significativas em nossas relações de dependência mas sem alterações radicais no caráter de nossa burguesia.

Uma provocação: 1964 foi um ato de Soberania?

Ainda pensando sobre a questão se é possível separar “Soberania Nacional” do caráter classista do Estado trago a provocação acima. Uma análise do resultado das eleições de 1962 revela que na câmara se formava uma ala trabalhista liderada pelo PTB, especialmente com o Presidente Jango, e uma ala liberal, apoiada pelos EUA, na figura da UDN. O PCB, por sua vez atravessava um racha, que daria origem ao PCdoB, e ainda se encontrava preso a um programa etapista, mas apesar de não eleger nenhum candidato o partido avançava nos sindicatos, no movimento estudantil e no movimento de cultura, especialmente através dos Centros Populares de Cultura (CPC-UNE). Além do Partido Comunista, outras forças de esquerda como a Ação Popular (AP) e a Política Operária (POLOP) tinham inserção nas massas e disputavam até mesmo o movimento camponês. É verdade que não haviam condições, talvez nem interesse, para uma revolução no Brasil, mas os comunistas tinham influência no meio trabalhista a ponto de influenciarem a formação do programa de reformas de base de Jango, tais reformas que mexeriam de forma significativa nas estruturas do Brasil (Lovatto, Dez/2011).

Tais reformas de base incluíam a regulamentação da remessa de lucros[4], o fim da instrução nº113[5], proibição de financiamento estrangeiro para a aquisição de máquinas que a indústria nacional pudesse fabricar, instalação da Eletrobrás para ocupar todo o setor de eletricidade, criação do Conselho Nacional de Telecomunicações, aumento de 100% do salário mínimo e criação do Estatuto do Trabalhador Rural e a realização da reforma agrária (Moreira, 2011). Nota-se que apesar de ser um programa bastante influenciado pelo varguismo e em certa medida limitado, as reformas de base ainda seriam significativas e atenderiam à burguesia industrial e ao mesmo tempo enfrentariam o latifúndio, já denunciado pelo PCB à época como principal classe da política brasileira e a mais reacionária de todas (Carone, 1982).

Deste modo, se considerarmos que a Soberania é o direito de um Estado exercer seu poder com exclusividade e se considerarmos que o Estado brasileiro era majoritariamente dominado por latifundiários, então o Golpe de 1964 na verdade foi um ato de soberania desta classe, que se aproveitou dos aparelhos repressivos do Estado para perpetuar e expandir seu poder através da repressão a grupos dissidentes (comunistas, anarquistas…) e a grupos que se encontrassem em seu caminho (indígenas, quilombolas e trabalhadores do campo e da cidade). Também pode-se afirmar, neste sentido, que a soberania nacional da burguesia nunca foi ameaçada pelo imperialismo, mas sim por inimigos internos: VAR, VPR, Araguaia e outros, muito pelo contrário, o imperialismo serviu como auxílio à sua preservação.

Infelizmente, por falta de tempo e conhecimento sobre o período, não irei me estender muito além, mas é imprescindível fazermos uma análise materialista do significado de Soberania e colocá-la num contexto de luta de classes. Devemos ser anti-imperialistas e rechaçar as intervenções estrangeiras mas não devemos proteger uma Soberania em abstrato. Ademais, o golpe de 2016 foi menos violento mas operou sob a mesma lógica, não há dúvidas de que o impeachment da Presidente Dilma serviu para intensificar o avanço do neoliberalismo no Brasil, trocar uma liderança que fazia algumas concessões para hegemonizar a burguesia no Estado, colocá-la de forma ainda mais agressiva no poder executivo.

Considerações finais - Por uma Soberania Proletária

Camaradas, se a Soberania é a defesa do poder da classe que governa o Estado, então o projeto comunista deve abarcar uma concepção proletária da mesma, uma política externa independente e que busque preservar e expandir a revolução. Considerando que a reação virá de todos os lados, mas especialmente nos campos ideológico, militar e econômico, então é necessário que o Estado socialista busque a independência e o fortalecimento dessas áreas. Não vou discutir a necessidade da bomba atômica ou de uma revolução cultural, mas acredito que a Soberania Proletária deva atravessar fronteiras, e posteriormente, o Estado-Nação.

É preciso que o Estado Proletário se preocupe não apenas com o apoio material a processos revolucionários mas também apoio ideológico, substituindo o nacionalismo dentro de suas fronteiras pela concepção da classe trabalhadora enquanto classe internacional. Não tenho a resposta de como fazer isso, talvez nem seja ainda o momento de discutir sobre, mas é importante que tenhamos essas questões em mente.

Essa tribuna tem o objetivo de apenas iniciar esse debate, muitas questões como defesa e segurança acabaram sendo deixadas de lado, outras questões podem não ter sido abordadas de forma satisfatória mas de qualquer forma senti que precisava escrever algo e convido toda a militância a contibuir.


[1] Princípio cunhado na assinatura do Tratado de Augsburgo (1555), que conferia aos governantes dos reinos sob domínio do Sacro Império Romano-Germânico a liberdade de se associarem ao Luteranismo ou ao Catolicismo.

[2] Aqui pensando o Estado brasileiro a nível federal: Ministérios, Senado, Câmara… mas acredito que a análise talvez ainda seja válida para estados e uma parte significativa de munícipios.

[3] Por práticas de hegemonia quero dizer: a intervenção na política de outros países através da ideologia e propaganda, através do controle do meios de produção e capital financeiro e em última instância, através da ação militar direta.

[4] Limitando que apenas 10% do capital investido (não considerando reinvestimentos) pudesse ser enviado ao estrangeiro.

[5] Instrução que permita ao capital estrangeiro trazer máquinas obsoletas ao Brasil. Tal medida favoreceu a indústria brasileira de capital fixo.


Referências Bibliográficas:

WATSON, Adam. A Evolução da Sociedade Internacional: uma análise histórica comparativa. Brasília: Editora da UNB, 2004. p. 264-65

LÊNIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. São Paulo: Boitempo, 2017. cap. 1

LOVATTO, ANGÉLICA. Partidos, Sindicatos e  Movimentos Sociais nos anos 1950-64: balanço histórico-bibliográfico preliminar. Marília, UNESP, Aurora Ano V/núm. IX, Dez/2011.

MOREIRA, Cássio Silva. O Projeto de Nação do Governo João Goulart. Porto Alegre, UFRGS, 2011.CARONE, Edgard. O P.C.B Volume II (1943-1964). Difel: São Paulo, 1982. Parte I, capítulo C.