'Seria a educação estratégica?' (Alessandro)
O central da luta de classes na universidade é o controle social da produção de conhecimento. Isto é, enquanto a burguesia se insere no setor da educação do ponto de vista da produção, dentre outros, de Ciência e Tecnologia — dado que essa produção voltada ao Estado hoje é bastante diminuta.
Por Alessandro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Vencidos pelas armas, sabíamos perfeitamente que só pela ciência e pela perseverança no esforço voltaríamos a exercer a hegemonia que durante longas décadas desfrutáramos no seio da federação.” (grifos meus).
Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo, patrono da UNESP e um dos fundadores da USP, em discurso proferido sobre a derrota da Guerra Paulista de 1932 como justificativa para criação da Universidade de São Paulo.
PARTE I - A EDUCAÇÃO ENQUANTO SETOR
Iniciamos o processo de reconstrução revolucionária fora da legenda do PCB e hoje nos deparamos com a tarefa de um Congresso Nacional que necessita ser o mais basilar e fundante de um partido marxista-leninista brasileiro quanto possível. Nisso, o debate sobre setores estratégicos tem sido uma importante expressão de uma síntese política anterior em relação à hegemonia do proletariado enquanto classe, no entendimento de que, para a reconstrução do movimento comunista brasileiro não basta somente a organização dos pobres e oprimidos em abstrato, mas sim a organização política primordial dos setores econômicos mais estratégicos para o proletariado em aliança com o povo oprimido.
O debate, porém, da educação enquanto um setor estratégico dispõe de diversas confusões, das quais considero as mais importantes:
a) uma definição vacilante do que é “educação” e seu papel no debate histórico do MCI;
b) a concepção de setores estratégicos cada ala reivindica neste debate;
c) o que é o “setor da educação” por si.
Afinal, seria a educação um setor estratégico para nosso partido? Para conseguir abordar essas questões com profundidade, é preciso analisar todo o processo histórico que teve a questão da educação no seio do movimento comunista internacional. Depois, busquei apresentar o desenvolvimento econômico da educação na América Latina; a análise ideológica de seus atores políticos no movimento estudantil público e privado e seu papel na correlação de forças nacional.
Para iniciar o debate sobre a questão da Educação no MCI, passei pelas acepções de educação nas obras de Marx e Engels, Lenin, Gramsci, Althusser e Mariátegui, em que a educação tomará os seguintes contornos: 1) Educação e Trabalho e o Trabalho enquanto um princípio educativo; 2) o papel do partido frente aos estudantes na experiência pré-revolucionária; 3) a Educação enquanto técnica; 4) as possibilidades de atuação no campo da Educação e o seu desenvolvimento na América Latina. Depois, apresento a análise econômica de Marini que delimita a caracterização mais importante sobre o papel da educação na América Latina e seu atravessamento pelo trabalho também no movimento estudantil.
1. Marx, Engels, Educação e Trabalho
Marx e Engels não dedicaram esforços específicos à análise da educação ou do ensino, nem tampouco abordaram a discussão ou formulação de uma teoria pedagógica. Suas reflexões sobre a educação, o ensino e a formação profissional estão dispersas ao longo de suas obras, muitas vezes entrelaçadas às críticas das concepções e práticas burguesas, como a crítica da economia política, antecedida pela crítica da filosofia alemã e pelas diversas vertentes do movimento socialista da época. Há um exemplo na terceira tese sobre Feuerbach onde Marx afirma que “A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. (...) a coincidência do ato de mudar as circunstâncias com a atividade humana ou autotransformação pode ser compreendida e entendida de maneira racional apenas na condição de práxis revolucionária”. O trecho não avalia, entretanto, a questão do ensino ou da educação em si, mas significa que, na medida em que o homem age sob as circunstâncias transformando-as, tende a ser também, condicionalmente transformado.
A educação toma aspectos programáticos no Manifesto Comunista em que Marx e Engels defendem “educação pública gratuita para todas as crianças” (MARX, 2012, p. 205), relacionando-a com a produção material da vida. Nesta perspectiva histórica, a extensão e gratuidade da educação para todas as crianças significava a ampliação dos direitos sociais fundamentais para o processo revolucionário e para o projeto emancipatório em razão da sua transformação dos sujeitos em proletários. A questão programática é levantada sobre a relação entre a educação e o sistema capitalista refere-se à ação do Estado e sua responsabilidade em relação à educação (a partir da Revolução Francesa de 1789), momento em que a Educação se torna parte importante da reprodução social. Com isso, Marx e Engels não rejeitaram, mas assumiram as conquistas teóricas e práticas da burguesia no campo da educação, tais como: universalidade, laicidade, gratuidade, renovação cultural e primazia do trabalho, ainda que tomassem tais conquistas como insuficientes e agissem na denúncia e na construção de uma emancipação completa.
Em Crítica ao Programa de Gotha do Partido Social Democrata Alemão (1872), Marx aprofunda suas ideias sobre o papel da educação no processo de transformação social e a combinação do trabalho produtivo com o ensino, ou seja, o primeiro momento em que Marx cita a possibilidade objetiva da articulação da educação com a luta socialista. Isso é feito aprofundando a concepção presente no Manifesto sobre a combinação do trabalho produtivo com o ensino:
regulamentada severamente a jornada de trabalho segundo as diferentes idades e aplicando as demais medidas preventivas para a proteção das crianças, a combinação do trabalho produtivo com o ensino, desde uma tenra idade, é um dos mais poderosos meios de transformação da sociedade atual. (MARX, 2012, p. 444).
Ou seja, Marx trabalha a questão da educação para se almejar a condição de trabalhadores produtivos dada a importância que tem o proletariado no processo de reprodução social. Porém, a universalidade do ensino básico — em especial o que chamamos no Brasil de fundamental e médio —, foi conquistado no fim do período militar e no início da Nova República, o que torna a discussão marxiano menos significativa para a questão central de hoje da Educação enquanto um setor estratégico para um partido marxista-leninista. Ao menos nos escritos de Marx e Engels é impossível ainda apontar que a educação, nos limites do capitalismo, supere os limites de uma vitória política da sua universalização no limiar do processo revolucionário. Não considero que nenhuma ala deste debate reivindique essa tese, mas aponto somente para solidificar um entendimento sobre o tema.
2. Lenin e a Educação no pré-revolução
No trabalho leninista, é possível perceber quatro elementos fundamentais da concepção marxista-leninista de educação. Em primeiro lugar, a reforma pedagógica impulsionada na Rússia após a revolução de outubro de 1917, que tornou-se viável somente quando o proletariado assumiu o controle dos meios e instrumentos de produção material e intelectual. Depois, a educação política vinculada especialmente aos interesses da classe operária e dos camponeses pobres. Lênin atribuía papel decisivo à agitação e propaganda para viabilizar esta dimensão da educação. Em terceiro lugar, a prática social do “educador comunista” no terreno da educação pública nas escolas da URSS. Por último, que nesta concepção a transformação estrutural da escola passa, necessariamente, pela transformação estrutural da sociedade capitalista cristalizada no pós-revolução. E ainda que se trate aqui da educação num período pós-revolucionário, a perspectiva leninista considera a escola ao mesmo tempo um espaço de reprodução social e um lócus da luta de classes, o que torna esse assunto significativo para a tribuna.
Porém, durante o período pré-revolucionário russo, Lênin atribuiu um papel de destaque aos estudantes na luta acadêmica e na luta política que pode ser visto no artigo “Por onde começar”? (Publicado em maio de 1901, no ISKRA).
A tarefa que se nos depara é relativamente fácil: apoiar os estudantes que saíram para a rua, nas grandes cidades. É possível que amanhã se nos apresente uma tarefa mais difícil, como, por exemplo, a de apoiar um movimento de operários imobilizados numa determinada região. Depois de amanhã, teremos de estar preparados para tomar parte, de um modo revolucionário, num levantamento campesino [...]. (LENIN, 1977, p. 83).
A relação entre os estudantes e o movimento operário e campesino é explícita na abordagem leninista. Aos estudantes, cabia a tarefa de apoiar as agitações operárias e os levantamentos campesinos. Ao Partido e aos operários e campesinos, o apoio e solidariedade aos estudantes era trivial e as ações do movimento operário contribuem diretamente para emular o “espírito revolucionário” e promover a luta das outras camadas sociais. Em síntese, era a prática política de um programa do proletariado em busca de arrastar as demais classes pela solidariedade da luta cotidiana. Lenin continua esse pensamento no Que Fazer? ao tratar do recrutamento militar forçado de 183 estudantes nas fileiras do exército, acusados de agitação nas universidades. Na obra de 1902 Vladimir destaca que o jornal ISKRA publicou um artigo sobre o fato “e antes que qualquer manifestação principiasse, exortou diretamente “o operário a acudir em auxílio do estudante”, exortou o “povo” a contestar abertamente o insolente desafio do governo...” (LENIN, 1977, p. 80). O “caráter de classe” ou a influência do liberalismo sobre a consciência estudantil também foi identificada, analisada e repelida por Lenin ao destacar o papel do Comitê executivo dos estudantes de Moscou:
os estudantes que, começando a compreender a necessidade da luta política, a empreenderam e, ao mesmo tempo, fustigamos ‘a bárbara incompreensão ‘dos partidários do movimento ‘puramente universitário’ que incitam os estudantes a não participar nas manifestações de rua... quem vir em semelhante tática um obscurecimento da consciência de classe do proletariado e um compromisso com o liberalismo revela que não compreende de modo algum o verdadeiro sentido do programa do ´Credo’ e, na realidade, aplica precisamente esse programa, por muito que o repudie! Porque, por isso mesmo, arrasta a socialdemocracia para ‘a luta econômica contra os patronos do governo’ e retrocede perante o liberalismo, renunciando à tarefa de intervir ativamente em cada problema de natureza ‘liberal’ e determinar, em face de cada um desses problemas, a sua própria atitude, a sua atitude socialdemocrata. (LENIN, 1977, p. 80-81).
Lenin seguiu sua intervenção no meio estudantil e universitário com o célebre excerto sobre o trabalho artesanal e a necessidade de formação de militantes profissionais no partido, não importa se vieram da fábrica, da universidade ou do campo. Para além dessa observação, o líder russo se deteve também a analisar o que seria o programa do proletariado nas organizações estudantis onde a renúncia à luta nas instituições acadêmicas era dada como um traço liberal a ser combatido:
Os estudantes social-democratas não tem o direito de renunciar a semelhante atividade, quaisquer que sejam as circunstâncias, qualquer que seja essa atividade no momento presente; por muitos que sejam os insucessos sofridos por uns ou outros agitadores numa ou outra universidade, associação de estudantes, assembleia, etc, dir-lhe-emos: “Batei e abrir-vos-ão a porta” O seu êxito não se mede apenas pelo fato de termos conseguido, agora e aqui, a maioria ou acordo para a ação política coordenada. É possível que não o consigamos no momento: precisamente por sermos um partido proletário organizado, não nos devemos perturbar com os reveses transitórios, mas realizar a nossa ação com tenacidade, de forma imutável, com firmeza e mesmo nas condições mais difíceis. (LENIN, 1977, p. 38-39).
O que se seguiu do interesse e das intervenções de Lenin à educação são aspectos pós-revolucionários que dizem respeito à implementação do ensino politécnico avançado sobre eletrificação em toda a URSS, que à época se restringia a poucos avanços técnicos esparsos e agrários, como carpintaria, pintura, etc. A tarefa foi de fato implementada em 1920 por Krupskaya. Entretanto, na experiência soviética pré-revolucionária, também não há nada que nos aponte o caráter estratégico da educação enquanto um setor nevrálgico capaz de “assaltar as fortalezas produtivas”. Há, de fato, uma preocupação pela disputa ideológica do segmento estudantil e sobretudo universitário frente às repressões políticas do czarismo, numa demonstração prática da tarefa de tomar, na estratégia da hegemonia do proletariado, as rédeas do movimento de arrastar as demais classes. No que é do meu conhecimento, nada mais me parece relevante de apresentar nos escritos de Lenin sobre a educação para os objetivos desta tribuna.
3. A Educação em Gramsci
3.1 A intelectualidade
Antonio Gramsci se dedicou em seus escritos partidários e jornalísticos a dois temas com relação à educação, o primeiro sobre o papel dos intelectuais na organização da cultura, a luta pela hegemonia e as suas atribuições do partido político; e o segundo sobre a Escola Unitária, este mais expressivo para o tema. Passarei brevemente pelo primeiro ponto e me deterei sobretudo no segundo.
Gramsci (2011, p. 202), ressalta que tende a existir uma contradição na base do pensamento intelectual em relação ao elemento popular, ou seja, ao povo trabalhador, “O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e, menos ainda, “sente”:
O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual ( e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, com uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o “saber”; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo nação. (...) Se a relação entre intelectuais e povo nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de maneira mecânica, mas vivida), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realizar-se a vida do conjunto, a única força social; cria-se o “bloco histórico”. (2011, p. 202).
Ao traçar sua concepção de educação em relação aos intelectuais, Gramsci (2011, p. 203) destaca duas diferenças essenciais. Na primeira cabe destaque a própria função dos intelectuais:
Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político. ...] Pode-se observar que os intelectuais “orgânicos”, que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo, são, na maioria dos casos, ‘especializações’ de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz. (2011, p. 203).
Os intelectuais “orgânicos” são vinculados diretamente a uma classe social determinada historicamente. Os intelectuais “tradicionais”, vinculados às estruturas acadêmicas, grupos editoriais e funções burocrático-estatais. Estes constituem, ao meu ver, a segunda categoria típica dos intelectuais, como destaca Gramsci:
Todo grupo social ‘essencial’, contudo, emergindo na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas. (2011, p. 204).
Gramsci destaca que a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. Seria possível medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua conexão mais ou menos estreita com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para o alto). Neste sentido:
Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 2011, p. 208).
Portanto, ainda que considere relevante o papel da intelectualidade e sobretudo dos intelectuais orgânicos para a estrutura geral da luta de classes, Gramsci atribui a tarefa histórica da formação da consciência da classe operária ao Partido Comunista, que deve promover e elevar a consciência da classe operária, e nos alerta para a seguinte questão:
Não é possível propor, antes da conquista do Estado, a modificação completa da consciência de toda a classe operária; isso seria utópico, já que a consciência da classe enquanto tal só se modificará quando o modo de viver da própria classe também se modificar, ou seja, quando o proletariado se transformar em classe dominante, quando tiver à sua disposição o aparelho de produção e de troca e o poder estatal. (GRAMSCI, 2012, p. 100).
Essa questão é subsidiária na temática central da tribuna mas busquei trazê-la para confrontar a concepção da educação enquanto estratégica em razão do contato “com os filhos da classe trabalhadora”, tese que carrega em si os vícios da abstração política do que é a classe trabalhadora em seu aspecto policlassista, mas que é também equivocada do viés do próprio exercício de elevação de consciência destes filhos da classe, já que não será o trabalho individual de um professor que dará cabo desta tarefa histórica, mas o partido comunista. Dito isso, pode-se argumentar que será o partido, elegendo a educação enquanto setor estratégico, que dará cabo coletivamente desta tarefa de maneira coordenada e profissional e ainda que ambas as tarefas não são contraditórias, ou seja, poderá o partido empreender este empenho em conjunto da atuação das professoras e professores no ambiente escolar. Ora, esta análise ainda é deficitária sobre o próprio caráter do que é estratégico, que não pode ser confundido com aquilo que é “importante”, que “não deve ser deixado de lado” ou que meramente têm um “potencial na mobilização” — que realmente há. Como já argumentado, o critério para aquilo que é estratégico diz respeito ao que é mais nevrálgico, os setores produtivos capazes de assaltar as fortalezas produtivas, e nestes termos foi conceituado nas pré-teses, e não aqueles que dispõem de maior ou menor relação direta com a “classe trabalhadora” — termo este que no exercício de categorizar uma classe é, em si, alheio ao marxismo.
3.2 A Escola Unitária
Adentrando a concepção de educação gramsciana propriamente dita, a Escola Unitária concentrava aspectos políticos mas, tal como em Marx, também programáticos. Gramsci destaca alguns elementos essenciais deste conceito como: a fixação da idade escolar obrigatória (dependendo das condições econômicas gerais); a responsabilização do Estado no financiamento de todas as despesas e manutenção; a função pública da educação, sem divisões de grupos ou castas; a transformação da atividade escola com a ampliação da organização prática da escola (prédios, materiais científicos etc.); a eficiência da escola (com a ampliação do corpo docente, e, redução do número de alunos por turma); e a escola em tempo integral (com dormitórios, refeitórios, bibliotecas especializadas, salas adequadas etc.). Estas questões eram primordiais para a construção da escola unitária.
Neste sentido, o “advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social”. (GRAMSCI, p. 218-219). E, assim como Marx, Gramsci relaciona a educação com o trabalho, sendo este um “princípio educativo”.
Com seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde, às quais é preciso adaptar-se para dominá-las, e de leis civis e estatais, produto de uma atividade humana, que são estabelecidas pelo homem e podem ser por ele modificadas tendo em vista seu desenvolvimento coletivo; a lei civil e estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado a dominar as leis da natureza, isto é, a tornar mais fácil o seu trabalho, que é a forma própria através da qual o homem participa ativamente na vida da natureza, visando a transformá-la e socializá-la cada vez mais profunda e extensamente. Pode-se dizer, por isso, que o princípio educativo no qual se baseavam as escolas primárias era o conceito de trabalho, que não pode se realizar em todo seu poder de expansão e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens entre si, ordem que deve ser respeitada por convicção espontânea e não apenas por imposição externa, por necessidade reconhecida e proposta a si mesmo como liberdade e não por simples coerção. O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. (GRAMSCI, 2011, p. 221).
Neste aspecto, tal como Lenin ousou se deter na prática, a Escola Unitária gramsciana maneja a concepção de trabalho em sua acepção emancipatória, o que basta para dizer que ela não é plenamente realizável nos moldes da sociedade capitalista atual. Disto, o esforço intelectual para pensar a educação toma, tal como em Marx, o caráter programático típico dos comunistas, que é de elevar a consciência da classe operária em suas lutas comuns. Por esta razão a educação sempre esteve presente nos escritos comunistas até então, leia-se: momento histórico onde o analfabetismo era relevante mesmo nos grandes centros (sendo ainda uma pauta jamais sanada no Brasil), as necessidades de força produtiva não sofriam as baixas de hoje na franja marginal e, sobretudo, a universalização do sistema educacional era uma pauta comum necessária para o desenvolvimento do proletariado em sua expansão na estrutura produtiva da sociedade. Este era pois o contexto europeu da época e, na minha visão, os quadros do movimento comunista até aquele momento não apontavam motivos sólidos que pudessem sustentar a educação enquanto um setor estratégico. Até o momento, o debate no MCI sobre a questão da educação e de um novo projeto pedagógico gira em torno de desenvolver uma noção de escola que acompanhe o desenvolvimento daquilo que deveria se tornar o socialismo e, por esta razão, toma em geral o caráter programático apresentado.
4. Althusser e a técnica-educação
Louis Althusser aborda a educação sua materialidade como uma forma-técnica suficiente para reprodução do capitalismo. Decorrência disto é o caráter marginal da luta pela educação no seio da geral pela construção do socialismo. Creio que essa concepção deva ser apresentada pois, ainda assim, ela ressalta na educação sua acepção tática,
Por princípio marxista, a educação não pode ser tomada aqui na usualidade do termo, isto é, como um fenômeno a-histórico que por todo o passado e para todo o sempre demandasse as mesmas atribuições ou se desenvolvesse com métodos semelhantes.
Assim, aquilo que chamamos de escola na Grécia pouco se parecem com o que tornamos a chamar de escola no capitalismo. A educação é um fenômeno histórico desenvolvido em sociedade e que, nos diferentes modos de produção, representou distintos conjuntos de saberes e se desenvolveu sob primas específicos, que doravante chamarei “tipificações” de educação. A título de exemplo, podemos explanar brevemente o modo de produção escravista da Grécia Antiga. Nesta sociedade escravista em que os homens livres dispunham de um mecanismo de democracia direta como a Ágora, o ato de educar-se perpassa necessariamente questões como a retórica, a oratória, visto o emprego destas técnicas para a reprodução das formas sociais ali desenvolvidas, isto é, a manutenção dos grupos senhoriais no centro do debate político e econômico. Esses conhecimentos utilizados e baseados em saberes tradicionais eram vigorados majoritariamente por via da oralidade[1]. Falar bem, ter bons argumentos, saber enaltecer ou refutar uma ideia eram, portanto, provas de educação. E a formação disponível nesta sociedade era a educação suficiente que possibilitasse o entrosamento entre estes grupos senhoriais específicos.
Na idade Média temos outra dimensão de educação, postulada pelo modo de produção feudal. Nesta dimensão de estruturação da sociedade, não é preciso saberes voltados à fala ou ao espaço público, pois não há espaço público. Há a imensidão do feudo e a resignação da fé. Assim, para a Idade Média, efetivamente era considerado educado uma pessoa com uma gama de saberes e uma concepção de mundo teológica. Por um dado divino, a terra do pai passa para o seu filho mais velho, em uma estrutura social medieval, patriarcal, tradicional de apropriação dos meios de produção, isto é, fundamentalmente a terra. Essa estrutura não necessitava que os servos tivessem um saber excedente daquilo que é o saber funcional à servidão. E para explicar essa estrutura social medieval baseada na servidão, disto sim necessitava-se de um saber outro, o conhecimento clerical, para que o entendimento da estrutura do mundo fosse teológico. O arcabouço teórico desenvolvido nestes mil anos foi de acordo com a estrutura social dos senhores feudais, do rei, e da condição vassala. Inclusive de modo a aprazer e fortalecer a placidez das trabalhadoras e dos trabalhadores servos em sua condição espiritual, transcendental de servidão. Isto não foi um capricho, mas o modo pelo qual se estabeleceu em uma sociedade cujo modo de produção é feudal. É preciso entender esse desígnio de deus para a estruturação deste modelo, então tal conhecimento era ensinado. Assim, no máximo, a educação volta-se ao clero, pois era o grupamento social pelo qual a dominação servil emanava das vozes de um deus.
Tais tipificações de educação falam sobre o modo de produção escravista e feudal, e em nada se relacionam com a técnica-educação desenvolvida sob o modo de produção capitalista. Quando se toma pela mão o exemplo das Américas no período daquilo que convencionou-se chamar na teoria marxista de acumulação primitiva de capitais, o continente viveu um regime de escravismo colonial que mais uma vez estabeleceu sua tipificação de educação distinta daquilo demandado pelos modos de produção anteriores. Isso não significa que no modelo de organização do modo de produção escravista colonial nos EUA, no Brasil, no Haiti, Colômbia, etc., a educação seja necessariamente a mesma, da mesma tipificação, daquilo que hoje é a educação no modo de produção capitalista, mas ainda é possível ver seus vestígios. E uma semelhança baseia ambas, pois cá como lá a educação serve àquilo que são as funções sociais suficientes de reprodução, o que para época significava a reprodução agrícola, agrária, da extração mineral deste latifúndio monocultor de exportação.
Neste momento, a erudição perpassada em grupos senhoriais gregos ou a cultura de refinamento herdada pela nobreza europeia não eram mais necessária. Letramento não é algo típico nem das classes dominantes, tampouco das classes dominadas. Vide as características cada vez mais filistinas da burguesia nacional e transnacionalizada de lá até hoje desenvolvidas. Disto, observa-se a desimportância que historicamente se tem a educação, dado a via de regra a posse da terra e o controle desta estrutura social nas colônias portuguesas vieram por meio da violência. Quando tomou-se a terra dos povos originários, os lusitanos não necessitaram de argumentos refinados, tampouco de um convencimento teológico. Nada disto se deveu à educação, pelo contrário. A força bruta, a arma de fogo e a doença trazida pelo europeu foram a regra da dominação. E ainda hoje, vestígios desta herança são vislumbrados em todos os lugares do Brasil e por toda periferia do capitalismo, em geral pela truculência da Polícia Militar, braço-armado do Estado para resignação da nossa classe, ou mesmo pela estrutura do direito, que sutilmente arrasta as condições da classe trabalhadora de forma tão truculenta como antes vimos os portugueses. O colonizador a buscar terras tornou-se também o promotor de justiça e seu mandato de desapropriação.
Essa explanação primeira é necessária inclusive para demarcar uma concepção rasteira, fixada na concepção kantiana e idealista de aparência e que por vezes também é presente na defesa da educação como um setor estratégico que vincula nos muros das universidades europeias uma ideia de perpetuação daquilo que se chama de Educação nos dias atuais. Como se, ao portar as mesmas paredes destas antigas instituições erigidas ainda no feudalismo, necessariamente se teria o mesmo conteúdo educacional de antes. Nessa visão, a educação apenas havia passado de mão, e se antes era disposta ao nobre, hoje seria disposta ao burguês. Essa análise rasa guarda uma aparência de progresso que afagam o gosto amargo da pequena-burguesia. O caráter aparentemente progressista desta visão esconde seu positivismo e sua a-historicidade que verifica uma continuação, ainda que com as suas devidas mediações, dos fluxos e refluxos do desenvolvimento da história somente enquanto transformações tecnológicas. Isto é, entende-se a educação como uma continuidade, no caso europeu da baixa idade média, do que é a universidade nos dias atuais, o que não é real nem na Europa, muito menos em Nuestra América. Seguiremos, então, para o contexto latinoamericano, onde paulatinamente o debate toma outros contornos.
5. A educação em Mariátegui
Mariátegui considera que “o nascimento de uma corrente socialista e o surgimento de uma consciência de classe no proletariado urbano” (2011, p.90), incorpora no debate um novo elemento capaz de modificar os termos colocados pelo Estado no tratamento da Educação. Marcado pela hegemonia dos gamonales, fração burguesa subordinada ao imperialismo inglês, a República Peruana passava por três vetores decisivos para o acirramento da crise da oligárquica: 1) as lutas camponesas, associadas à questão da terra e a questão indígena; 2) as lutas estudantis, catalisadas pelo movimento da reforma universitária; 3) e as lutas operárias, que chegam ao auge com a greve geral em Lima em 1919.
Novidade no cenário peruano e mesmo latinoamericano da época, o movimento estudantil traduz o protagonismo político de um estrato social, cujas expectativas e demandas não cabiam no esquema civilista: o das camadas é médias, proeminentes em especial em Lima e Callao. A principal característica do movimento estudantil foi o de vincular as suas demandas específicas (Reforma Universitária) a exigências políticas e sociais que diziam respeito aos trabalhadores e grupos subalternos urbanos.
A criação da Universidade Popular Gonzélez Prada – UPGP é a principal indicadora da aliança estudantil-operária da época. Organizada pela Federação dos Estudantes do Peru, cuja a frente estava Haya de la torre, a UPGP dispunha de instrumentos editoriais como a revista Claridad e torna-se um viveiro de experiências pedagógicas e políticas no Peru dos anos vinte. Caberia ao movimento operário ser o componente mais fundamental no desfecho da crise da república oligárquica, pois foi a sua ação, em 1919, que conduziu à derrocada de Pardo, e foi sua unidade com o movimento estudantil que faria com que, nos anos de 1920, os movimentos sociais tenham forte incidência na sociedade peruana.. Após o período de ascenso do movimento sindical, estudantil e popular, marcando a derrota da república Oligárquica, concomita à consolidação do governo de Leguía, segue-se uma onda repressiva em face de setores pequeno-burgueses radicalizados e proletários protagonizada pelo governo, o que levará ao exílio de várias lideranças políticas proeminentes no Peru como Haya de la Torre e Mariátegui. Ao analisar o processo da educação pública (ou instrução pública), o Mariátegui destaca que, como consequência do domínio espanhol a “Educação nacional não tem um espírito nacional, e sim um espírito colonial e colonizador.” E, em seus Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, aborda a importância do condicionante econômico, não sendo “possível democratizar o ensino de um país, sem democratizar sua economia e, por consequência, sem democratizar a sua superestrutura política.” (Mariátegui, 2009, p. 115).
Disso, passa a observar as alianças entre estudantes-proletários e observa que “no calor da reforma” ocorreu a formação de núcleos de estudantes que, em estreita solidariedade com o proletariado, se entregaram à difusão de ideias sociais avançadas e ao estudo das teorias marxistas”. Também aponta que com o nascimento de uma corrente socialista e o aparecimento de uma consciência de classe no proletariado urbano, passa a intervir no debate das universidades populares.
a fundação das Universidades Populares ‘Gonzáles Prada’, a adesão da juventude universitária ao princípio da socialização da cultura, a ascensão de um novo ideário educacional entre os professores etc. interrompem definitivamente o diálogo erudito e acadêmico entre o espírito democrático liberal burguês e o espírito latifundiário e aristocrático. (Mariátegui, 2008, p. 160).
E, tal como Gramsci, Mariátegui se debruça em termos programáticos em torno do que chama de “Escola do Trabalho”:
A Escola do Trabalho representa um novo sentido do ensino, um princípio peculiar de uma civilização de trabalhadores. O Estado capitalista evitou adotá-lo e aplicá-lo plenamente. Limitou-se a incorporar no ensino primário (ensino de classe) o “trabalho manual educativo”. Foi na Rússia onde a Escola do Trabalho foi elevada ao primeiro plano da política educacional [...] um conceito moderno de escola coloca na mesma categoria o trabalho manual e o trabalho intelectual [...] a Escola do Trabalho é um produto genuíno, uma concepção fundamental de uma civilização criada pelo trabalho e para o trabalho. (Mariátegui, 2008, p. 159).
Mais uma vez e agora em solo latinoamericano um revolucionário adentra a questão da escola enquanto um ponto de suprassunção da realidade capitalista para uma nova ordem, questão de suma importância no debate programático. Entretanto, essa discussão diz mais respeito ao nosso programa de Escola Popular (MEP) e Universidade Popular (MUP), do que ao setor estratégico da educação enquanto ramo produtivo. Criar uma nova concepção de escola sequer é o debate mais essencial tanto nas palavras de Gramsci quanto nas de Mariátegui, pois o ouro centra-se na relação, enquanto programa máximo, para arrastar o policlassista movimento estudantil às pautas do proletariado organizado, isto é, a exata mesma linha política traçada por Lenin no pré-revolução russa. Trago, assim, esse debate para que não ignoremos aquilo que já foi sintetizado pelo MCI, mas que não deturpemos tais ideias para justificar ser a educação um setor estratégico da economia brasileira para a revolução socialista.
5. Marini e o movimento estudantil brasileiro e latinoamericano
5.1 O caráter de massas como elemento estruturante
Chegado à Mariátegui, Ruy Mauro Marini é ainda mais esclarecedor sobre essa questão. Para apresentá-lo, busquei abordar alguns momentos da história do movimento estudantil a partir da histórica da educação e seu desenvolvimento econômico, pois defendo a linha de que devemos nos tornar, em temos práticos no ME, não somente a direção e a força unificadora dos estudantes, mas também das pautas pelas quais o movimento se unifica, como por exemplo nosso atual esforço de dar peso à disputa da UNE como uma ferramenta política, e não um objetivo estratégico dado. Nesse debate, considerei fundamental entender o caráter de massas do movimento estudantil, que é um fator essencial para sua unificação.
O passado recente das mobilizações do ME nacional, desde as lutas durante o governo Temer e as “Vacina no braço, comida no prato e fora Bolsonaro”, as mobilizações contra a privatização do aparato público nas escolas e universidades, a falta de professores e a questão central da permanência, são exemplos que nos fariam dar como óbvio o caráter de massas do movimento estudantil brasileiro atual que, por si só, apresenta as potencialidades e a necessidade de uma atuação de vanguarda com capilaridade política. Frente a isso, é importante se aprofundar no desenvolvimento deste ME visto que a massificação é fundamentalmente típica do movimento estudantil latinoamericano em geral, principalmente quando posto em contraposição aos seus homólogos europeus onde, até meados da década de 60, a atividade política se orientou sobretudo para o sindicalismo.
Sendo sempre motor e característica pulsante do movimento estudantil latinoamericano, a alta participação política dos jovens no resto do mundo salta em qualidade a partir da guerra da Argélia, trazendo uma crescente politização em solo europeu que logo se reverberou para os Estados Unidos. E enfim, com Maio de 68, a atividade política com caráter de classe já toma ares relativamente homogêneos quanto a essa característica nos países capitalistas desenvolvidos e subdesenvolvidos. Dentre as principais características desse movimento, ressalto:
1) crescente mobilização das massas estudantis, rompendo com a ação das minorias vanguardistas de antigamente, e;
2) Uma definição ideológica mais nítida, que, em vez de fundar a ação sobre os problemas sociais em geral traduzidos em palavras de ordem abstratas e estranhas à consciência estudantil e trabalhadora, dá lugar à militância fundada sobre uma consciência revolucionária do papel dos estudantes na luta de classes. Essa característica, porém, será reavaliada abaixo visto que, ainda que com caráter político claro e maior inserção na luta de classes, não se trata de uma atuação revolucionária capilarizada, tampouco leninista.
Estes traços, porém, eram vistos em maior grau no movimento estudantil latinoamericano há algumas décadas — influência da criação da JC enquanto juventude do PCB em 27 e de nossa atuação nas entidades gerais capazes de integrar as lutas locais, ao menos no eixo Rio-São Paulo, mas com apontamentos nacionais[2]. Tomando por base as manifestações estudantis mais notáveis da segunda metade do século XX[3], percebemos que, apesar de suas singularidades – esquemas organizativos, modos de ação, conteúdos programáticos –, estas se definem precisamente pela mobilização massiva que provocaram e pelo papel que tentaram jogar na correlação de forças sociais prevalecente em seus países. Consequentemente, podemos evidenciar que, em seus aspectos gerais, estes movimentos obedecem a determinações que transcendem a conjuntura do momento e se explicam naturalmente pelos fatores estruturais comuns aos países latinoamericanos, de modo que as condições nacionais desenham apenas a forma particular de cada movimento, tendo a ausência de uma vanguarda revolucionária como outro elemento cotidiano da conjuntura e que impede todo o movimento de elevar-se.
Para aprofundar essa questão e por uma obviedade necessária, na periferia do capitalismo a dinâmica política e de integração das massas à luta é diversa àquela dos países centrais. O traço mais marcante para fundamentar essa diferenciação é a questão da educação em solo latinoamericano. Como ainda quero analisar essa questão para falar mais sobre o pensamento social vigorante no movimento estudantil nacional, busquei exemplos da questão da educação desde a década de 60 em diante, e não os exemplos típicos e conhecidos da “era Lula”, pois eles são mais sonoros no que diz respeito à formação de uma cultura política.
A característica mais significativa da educação latinoamericana desde este recorte histórico é o aumento contínuo no número de matriculados. Entre 1955-65, há um aumento de 60% no ensino fundamental, 111% no ensino médio e de 92% no ensino superior. Isto é, em dez anos se dobra o número de graduandos no subcontinente. O sistema, entretanto, mantém as suas estruturas o que, proporcionalmente, diminui a eficiência do ensino e, em termos menos significativos que hoje, a permanência na universidade — isso porque não haviam políticas de permanência em larga escala, mas já existiam em diversas universidades bandejões e moradias estudantis.
No Brasil, apesar do aumento do número de estudantes no geral, o orçamento para a educação pública diminui gradativamente nessa década — e de forma relativamente constante até hoje. Para o período 1955-1960, 90% do orçamento da escola fundamental foram consagrados a despesas de custeio (administração geral, salários, etc.) e 10% a despesas de investimentos (prédios, equipamentos, etc.); no nível médio, onde a expansão foi mais nítida, a proporção de tais despesas foi, respectivamente, de 95% e 5%, enquanto a do nível superior iguala a do nível fundamental (90% e 10%), pese a diferença na quantidade absoluta de matrículas entre ambos os níveis[4].
5.2. O caráter da educação na periferia do capitalismo
Sem querer ser exaustivo, a forma particular do desenvolvimento da educação na periferia do capitalismo difere da sua fórmula “geralizada”, isto é, do capitalismo central. A educação em qualquer modo de produção serve à sua reprodução específica, como no caso do feudalismo com a criação de instituições educativas militares e teológicas para as classes dominantes. Na sociedade burguesa, submetida às leis de produção e troca de mercadorias, e dirigida por uma classe que funda seu poder sobre o papel diretor da burguesia frente a outras classes sociais, a prática educativa deu lugar pela primeira vez a um sistema nacional, aberto a princípio a todos os cidadãos e tendendo cada vez mais a tornar-se um instrumento regulador do mercado de trabalho, cujo desenvolvimento está intimamente atrelado a essa lógica.
Na periferia do capitalismo e na América Latina em específico, isso se expressa de forma diferente. A formação do sistema de educação e sua ampliação estão aqui relacionadas ao processo de urbanização e, portanto, se desenvolve de uma maneira autônoma em relação ao processo de industrialização nacional e continental. Com isso, a ampliação do sistema educativo latinoamericano não anda de mãos dadas com o desenvolvimento das forças produtivas. Em "Os movimentos estudantis na América Latina" Marini atribui isso a uma “urbanização desproporcionada em relação ao seu desenvolvimento econômico; urbanização resultante, por um lado, de uma tendência natural das economias mineiras e pecuárias, e, por outro, do impacto da imigração europeia sobre o crescimento demográfico. É de se notar que a Argentina e o Chile viram crescer seus setores educativos a um ritmo muito superior se comparados a países como o Brasil e o México, onde a urbanização era menos acentuada.” (p. 720).
Dessa maneira, o movimento estudantil latinoamericano e brasileiro adentra a luta política justamente porque, diante da tendência geral de redução da mão de obra fabril no capitalismo mundial e da tendência continental de crescentes massas adentrando o mercado de trabalho, os aspectos da dependência vistos no nosso solo apontam para uma particularidade que agrava ainda mais a conjuntura nacional: o fato da redução da quantidade de trabalho por unidade de produto – causada pelo progresso tecnológico – não corresponder a um aumento da massa de trabalho na empresa, aumento que seria a prova de uma relação estável entre mais-valia produzida e investimento produzido. A educação age, portanto, como regulador do valor da força de trabalho e, com o aumento da oferta de mão de obra advinda da ampliação da educação, serve sobretudo para a diminuição do valor da força de trabalho[5]. Lógica hoje intensificada com os grandes contingentes que saem das universidades EàD.
Fruto desta particularidade de incapacidade de incorporação no setor industrial, há um aumento sobressalente do setor de serviços latinoamericano, que se desenvolve, para variar, não somente descolado da industrialização mas também fora das proporções da população dos países, tornando-se independente de ambos estes fatores. E, por conta do acentuado monopolismo do subcontinente, o setor de serviços, além de se expandir de forma desproporcional ao aumento da riqueza nacional, não expressa a redistribuição de uma parte significativa da renda às atividades do setor terciário. A população deste setor em permanente crescente tende, pois, a se marginalizar, tanto do ponto de vista produtivo, como do ponto de vista distributivo, isto é, em termos de emprego e de consumo. Essa é uma fratura que o Brasil carrega até os dias atuais, expresso na face mais escancarada da financeirização e da economia de serviços. Nesse movimento, o setor público-administrativo surge como salvação sob a propaganda da estabilidade financeira. Porém, a cada crise capitalista, surgem novos ataques à carreira pública, que hoje enfrenta a cada concurso uma ampla massa de trabalhadores reprovados, sendo também incapaz de fornecer a todo o país uma solução no âmbito do trabalho.
Dito isso, podemos sintetizar que: na América Latina o progresso da educação se dá na contracorrente do desenvolvimento das forças produtivas; além disso, a contradição existente entre os dois fenômenos, longe de se atenuar, se agrava. Este em frente será um fator importante para sua caracterização não somente como elemento de massas, mas também como permeada pelo trabalho.
5.3 O papel político do movimento estudantil frente às particularidades nacionais do séc. XX e XXI.
Os governos desenvolvimentistas do séc. XX, em busca da industrialização a todo custo, acabam por acirrar a dependência nacional, o que incide sobre os trabalhadores sob a forma de deslocamento das massas crescentes de trabalhadores em benefício da máquina. O impulso atual do ensino técnico representa a contrapartida rigorosa da supressão da formação profissional — obra da burguesia em sua fase de ascensão. Por outro lado, a exigência de um corpo técnico sempre melhor preparado para encarar as freqüentes mudanças tecnológicas e os desdobramentos dos níveis de ensino, com as carreiras pré-profissionais e os cursos ‘MBA”, mostram que os sistemas educativos tentam satisfazer as duas vias pelas quais a sociedade burguesa procura seus “talentos”: a seleção e a sofisticação. Estas características se estendem igualmente às carreiras não-técnicas, majoritariamente de ensino superior, onde se formam o corpo administrativo, a massa de programadores e assistentes de TI, os assistentes psicotécnicos, os sociólogos industriais e os especialistas em economia exigidos pela empresa capitalista moderna.
Entretanto, a capacidade de absorção das crescentes quantidades de mão-de-obra qualificada que sai das Universidades, dos institutos tecnológicos e das escolas técnicas, nas economias mais avançadas, depende de certo número de fatores entre os quais convém citar:
a) A alta produtividade da mão-de-obra, ou seja, a dimensão da mais-valia extraída;
b) A exploração dos países dependentes, cuja mais-valia gera lucros substanciais;
c) A capacidade de reivindicação e de discussão das massas para as questões de salário e de emprego, que fundamentalmente depende do grau de maturidade e experimentação da vanguarda revolucionária nacional. A este respeito, é significativo perceber que a proporção de três técnicos médios por um engenheiro — o que corresponde aproximadamente às normas da indústria, com variantes segundo os setores — não se observa em nenhum país latino-americano, chegando ao ponto, como no México, em que esta proporção é rigorosamente inversa, de modo que o engenheiro é reduzido à função e ao salário do técnico médio. Essa característica se agrava no capitalismo brasileiro expresso ainda nos trabalhadores com formação superior tipicamente industrial exercendo não a função de técnico, mas de trabalhador precarizado, vide o hoje folclórico engenheiro-Uber.
É a partir deste cenário que se inicia também o processo e o discurso privatista da educação brasileira que, a partir das contradições elencadas, defende a Universidade como uma grande empresa, e não uma educação pública como princípio universal. O papel da educação enquanto regulador do mercado de trabalho, porém, permanece o mesmo, mas adquire novas facetas.
O ensino superior público permanece designando o investimento coletivo às faculdades cujos graduandos serão os administradores/supervisores do grande capital industrial e bancário, inclusive com mudanças na própria grade curricular para contemplar a atuação profissional diante da financeirização crescente. O ensino médio-técnico profissionalizante contempla da mesma forma e fomenta o viés empreendedor, agora com a característica de se destinar de sobremaneira “aos filhos da classe trabalhadora” sob o sonho da ascensão social. A Reforma do Ensino Médio vem para concretizar e dar ares estruturais para essa dinâmica de educação pública no país gerada há décadas. O setor privado, por sua vez, fita com extrema ambição essa lógica alimentada pelos governos desenvolvimentistas e de conciliação, aproveitando ainda para garantir os lucros dos grandes conglomerados da educação — revividos no Brasil pelo Prouni — enquanto fomentam o aumento das taxas de lucros em todos os demais setores econômicos por meio da criação de uma massa de trabalhadores de nível superior vomitados ao mercado de trabalho sob a chancela do Ensino à Distância. Absolutamente tudo vai como desejado.
Isso se dá justamente pela particularidade da educação nos termos elencados acima — isto é, da educação enquanto um ensino técnico que suprime a necessidade de formação superior e cujo próprio desenvolvimento do ensino superior corresponde integralmente a essa lógica. Portanto, a educação em si e enquanto um “setor” não pode ser assemelhado aos demais setores em que se produz e veicula o capital já que a sua capacidade de incidir sobre a luta de classe do movimento operário e sindical se dá fora do terreno da educação.
Quando muito, a educação alça um terreno que se confunde com os setores estratégicos quando diz respeito a alguns destes setores dentro da universidade. Por exemplo: uma paralisação nacional dos professores de engenharia do país afeta mesmo na universidade pública o investimento privado que estas faculdades recebem para, por meio de parcerias público privadas e fomento à pesquisa, reverter a produção de conhecimento ao capital transnacionalizado. Porém, uma mobilização deste patamar é mais longínqua e é mais simples de ser construída tendo os próprios estudantes como linha de frente. Ainda assim, tal fenômeno seria incomparável ao potencial revolucionário de todos os engenheiros e funcionários técnicos de engenharia por exemplo da Petrobrás, este de fato um setor produtivo. Essa é uma falha que o documento “Preparar o Partido para um Novo Ciclo” não soube responder sobre o real potencial organizador do setor de educação e, por este vício, hoje caímos em tentação antimarxista em relação ao “setor” da Educação. Confundir o caráter de massas, o policlassismo radical e um suposto progressismo inerente com aquilo que é estratégico será um profundo erro na delimitação de uma estratégia socialista que se calque na Hegemonia do Proletariado.
5.4. Em síntese
Sem a análise precedente não podemos compreender porque o movimento estudantil tende a se definir politicamente “contra o sistema”, ainda que com forte caráter autonomista sobretudo nos cursos mais afetados pela dinâmica educacional, sendo ainda recheado de vícios e vacilações pequeno-burguesas. Disso, seu caráter de massas surge como a única solução possível para as massas gradativamente apartadas da vida econômica do país, ainda que como apresentado tenham como característica seu atravessamento pelo trabalho do ponto de visto do desemprego, do subemprego e principalmente pelas duplas e triplas jornadas de trabalho, típicas da juventude trabalhadora atual. Nesse momento, chegamos à conclusão de que:
Se o aumento das matrículas nos últimos anos, incluindo os governos Lula I e II, principalmente no nível médio e superior, permite mobilizar contingentes sempre maiores de estudantes, conferindo ao movimento o caráter massivo que o distingue na década atual, a contradição entre esta expansão e a tendência do mercado de trabalho constitui a base objetiva desta definição política. Engajados em um processo de formação que ameaça fazê-lo desembocar na proletarização e no desemprego, o estudante latinoamericano aos poucos toma consciência do fato de que suas reivindicações universitárias não podem encontrar soluções no quadro econômico em que vive e que, mesmo se satisfeitas algumas demandas estudantis ou econômicas, isso não resolveria sua problemática profissional mais geral. A luta por uma mudança estrutural se impõe ao estudante latinoamericano como uma necessidade e o leva a ocupar cada vez mais firmemente o terreno da luta de classes. Isto, porém, é uma análise que se limita às universidades públicas, em especial as de maior tradição, enquanto que as novas e crescentes universidades privadas EàD apresentam muitas diferenças.
É desse caldo político formador do movimento estudantil brasileiro[6] que surge, em grande maneira, o pensamento social radical que viceja na Universidade de São Paulo. Esse pensamento político tem tendência a ser, fruto de uma economia dependente, ligado desde sempre à luta de classes nacional que hoje atravessa o estudante brasileiro à dinâmica do trabalho, ainda que vacile continuamente pela ausência de uma vanguarda política revolucionária e pela sua formação social pequeno-burguesa, advinda sobretudo da cultura política da FFCL, mas não somente.
PARTE II - O MOVIMENTO ESTUDANTIL PÚBLICO E PRIVADO
1. Formação e caracterização do pensamento social formado no ME público
Durante o séc. XX o pensamento marxista brasileiro procurou caracterizar o que se convencionou chamar de “pensamento radical brasileiro”, ou “radicalismo”. Não direi que isso se restringe ao suposto “progressismo”, mas que destoa de sobremaneira ao reacionarismo consolidado. Investigar os traços de pensamento radical é condição indispensável para se reavaliar as ideias de transformação social, inclusive as de corte revolucionário[7]. O “radicalismo”, entretanto, não é aqui utilizado nos termos correntes atrelados à máxima marxiana “ser radical é ir às raízes do problema”, mas sua definição real poderia ser descrita como: um conjunto de ideias e atitudes que expressam um contrapeso às ideias conservadores que sempre predominaram no país. Esse contrapeso se dá pois o radicalismo é uma forma progressista de pensamento que reage ao estímulo dos problemas sociais prementes do subdesenvolvimento, em oposição ao modo conservador de produção e reprodução da vida na periferia do capitalismo. Gerado na classe média e em setores esclarecidos das classes dominantes, o “radicalismo” não é um pensamento revolucionário, embora possa servir como fermento transformador, pois se identifica somente com alguns interesses específicos do movimento operário. Este sim, segmento potencialmente revolucionário da sociedade. Assim, o radical se opõe aos interesses de sua classe (burguesa ou pequeno-burguesa) apenas até certo ponto, mas não representa os interesses finais do trabalhador. É fácil ver isso observando que ele pensa os problemas na escala da nação, como um todo, preconizando soluções para a nação, como um todo. Deste modo, passa por cima do antagonismo entre as classes; ou por outra, não localiza devidamente os interesses próprios das classes subalternas, e assim não vê a realidade à luz da tensão entre essas classes subjugadas e as dominantes. O resultado é que tende com frequência à harmonização e à conciliação, não às soluções revolucionárias. Com isso, seu pensamento pode avançar posições revolucionárias, também pode constantemente retroagir a posições conservadoras. E ainda que o radical possa criar teoria de aspecto revolucionário para dar cabo a essa contradição, sua chamada à ação é praticamente inerte. Essa é sua principal característica: mesmo que em pensamento o radical possa alçar um teor de ousadia quase equivalente ao pensamento revolucionário, em geral ele é incapaz, por si só, de produzir um comportamento revolucionário de fato.
Esse pensamento radical foi fecundo no desenvolvimento do movimento estudantil brasileiro, sobretudo na USP com a antiga FFCL, em razão do papel das massas estudantis na luta de classes. Esse radicalismo está, portanto, intimamente ligado à postura do estudante latinoamericano de, ao procurar soluções às suas demandas estudantis, não encontrar saída factível no quadro econômico em que se insere. Porém, ele atravessa todas as contradições de classe que se produzem na pequena-burguesia que adentra a universidade em razão, principalmente, da cisão cada vez maior do vestibular e principalmente pela ausência de políticas de permanência estudantil. Essa é uma questão histórica somente expressa nos dias atuais em razão das políticas de acesso.
1.1 A política de vanguarda frente ao radicalismo estudantil
O fundamental não é tipificar o pensamento político dos locais de atuação para aventar acerca da política das organizações que ali atuam e suas influências, pois para isso bastaria chamá-las de social-democratas, frenteamplistas, oportunistas, esquerdistas, obreiristas, etc. O cerne da questão é investigar o pensamento político e substancialmente o comportamento das massas para, daí, tirar uma ação de vanguarda, que possa ser plenamente guiada pelo programa do proletariado[8]. É flagrante que o radical tem um caráter de massas, sendo incapaz de se constituir enquanto um segmento de vanguarda, ainda que alguns de seus expoentes possam alçar essa qualidade por uma dinâmica própria, formação etc.
No positivo, o “pensamento radical” serve às causas de transformações viáveis em sociedades conservadoras ou atravessadas pela conciliação de classe como é a brasileira — mas somente até certo ponto. No negativo, entretanto, o radical sempre trará consigo elementos de atenuação e oportunismo, que podem a todo momento desviar o curso das transformações sociais às suas máximas consequências. A política da vanguarda, porém, não pôde nunca abandonar completamente os “radicalismos”, mas precisa direcioná-lo, visto que ele é amplamente difundido e, pior ainda, acredita-se revolucionário, como é no contexto pequeno-burguês da Universidade de São Paulo. Isso porque a responsabilidade da vanguarda não é mais agir em nome do movimento, mas de mobilizá-lo e de dar-lhe uma direção política.
2. Os setores prioritários de inserção: tração no movimento estudantil público
Definir áreas mais importantes para o ME significa fazer meramente do movimento estudantil uma muleta de recrutamentos para o movimento sindical, mas do potencial organizativo e de pressão que a mobilização com caráter de massas em um setor em que se produz e circula o capital na universidade é capaz de gerar no terreno da luta de classes.
Por exemplo, se toda a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP paralisa por permanência, ou mesmo conseguindo alçar essa mobilização para pautas políticas como Reforma Universitária ou diretas para o reitor, irá realizar piquetes e atos massificados a nível apenas da faculdade, isso tem um valor frente à reitoria, aos funcionários, à burguesia paulista e ao governo de SP, é possível que tranquem o Portão 1 da universidade e que massifiquem uma mobilização municipal com maior fôlego. Porém, quando inserido nessa dinâmica, a Escola Politécnica e a Faculdade de Medicina paralisam pela mesma pauta, o valor e a capacidade de tração desse local prioritário alavanca a pauta para patamares mais significativos, com maior garantia de “vitória dos estudantes”. Não porque é a POLI, ou porque meramente se somam pessoas às mobilizações, mas porque se paralisa a circulação de capital e se coloca em cheque, ao menos por um curto período, o investimento privado na universidade pública — que é majoritariamente voltado aos setores de Ciência e Tecnologia —, ao tempo que se “atrapalha” a formação dos técnicos administrativos do capital e com isso o princípio de sofisticação e seleção dos quadros para esses setores. Mais importante, dá-se um passo para a formação de uma cultura política de organização nestes locais. Portanto, é preciso entender as potencialidades políticas de cada local não somente pelo seu fator de mobilização ou de influência sobre o movimento estudantil, mas também a sua capacidade de influir sobre o capital privado na universidade pública, luta esta que estamos sempre na defensiva. Entretanto, isso não é o suficiente para uma categorização estratégica, visto que tal paralisação não tem potencial de penetrar as fortalezas produtivas da reprodução social capitalista, mas é somente auxiliar ao programa do proletariado.
Por isso também, o assédio das empresas-juniores, dos bancos, com oportunidades de estágio muito bem remunerado, são expressão típica desses locais e a sua paralisação tem, diante disso, uma capacidade de paralisar a produção e a circulação do valor também na universidade, e por isso, o potencial de tração da educação se dá sobretudo nos setores estratégicos. Diante disso, não basta realizar somente uma discussão com a pauta anti-inovação/empreendedorismo, mas é preciso debater em profundidade a privatização da universidade e como o empreendedorismo atua como uma disputa de consciência do proletariado cuja expressão são as agências de inovação e startups.
Entretanto, o catalisador das mobilizações nestes setores não é dado pura e simplesmente pela elevação das pautas e das contradições locais para o âmbito político geral, mas é construir e organizar os meios para influir a política geral para tais setores, que historicamente não tem um caráter de massas pujante, tampouco sua composição social e suas oportunidades de trabalho constituem um corpo estudantil com grandes dificuldades de terem solucionadas suas demandas estudantis no quadro econômico vigente — um dos pilares do caráter de massas da juventude trabalhadora brasileira e latinoamericana. A proletarização dos estudantes e as políticas de acesso são um ponto-chave para mudança desse cenário, mas isso continua sendo muito recente. Daí a necessidade ímpar da propaganda para a atuação nos setores estratégicos estudantis, visto que as contradições do capitalismo precisam ser demonstradas de maneira mais profunda, haja vista que elas se escondem no seu cotidiano político. Enquanto isso, fora deles, podemos utilizar da agitação e das palavras de ordem incisivas para influir na política local com pouco esforço e algum saldo político.
8. A Atuação nas privadas de massas:
O central da luta de classes na universidade é o controle social da produção de conhecimento. Isto é, enquanto a burguesia se insere no setor da educação do ponto de vista da produção, dentre outros, de Ciência e Tecnologia — dado que essa produção voltada ao Estado hoje é bastante diminuta.
Na nossa conjuntura recente, tivemos um crescimento da massa de universitários no Brasil vindos da “classe trabalhadora”. Isto porém, ao contrário do histórico apresentado na parte 1 do documento, ocorreu hoje com os recursos públicos para o setor privado. O FIES e o ProUni funcionam como uma troca entre as empresas de educação e o governo, o que permite que o Governo, se antes era capaz pagar suas contas em dia em grande volume como nenhum outro organismo, faça crescer essas empresas de educação que, a partir de 2008, começaram a se tornar oligopólios internacionais. Com isso, tornam-se grandes agentes também do Poder Político, a ponto de hoje dominarem o Ministério da Educação e pautarem a não revogação do Novo Ensino Médio.
Esse processo retira a capacidade do governo de enfrentar tais setores, ainda que hoje sequer seja possível dizer que há tal vontade política no governo neoliberal Lula III. Esse crescimento do setor privado é feito em detrimento do crescimento do setor público e, nesse contexto de avanço da burguesia, vemos a deterioração das condições gerais de existência e de mobilização/organização do proletariado para tais setores realmente estratégicos.O Golpe de 2016 aprofunda o projeto político do capitalismo para a educação e tanto Michel Temer quanto Bolsonaro aceleram o crescimento do setor privado da educação com governos puro-sangue da burguesia. O discurso da responsabilidade fiscal contra os governos petistas e hoje tomado para si pelo Partido dos Trabalhadores fortalece as iniciativas privadas da educação. Daí tem-se uma questão ideológica: a entrada do empreendedorismo na universidade, do discurso de superação, de inovação, e como salvação para o desaguar no desemprego iminente típico da juventude no país. No Governo Bolsonaro, consolida-se um elemento conservador contra a ideologia de gênero, contra o ensino científico e avesso ao tripé universitário. Isso se consolida nas novas BNCC com a entrada do empreendedorismo, do ambientalismo liberal pujante etc.
O crescimento do setor privado, a falta de diálogo com os estudantes frente aos problemas concretos e, em última instância, impõem a deslegitimação da UNE perante a sua base. Para caracterizar a linha das juventudes que dirigem a UNE, temos o oportunismo como forma de se manter à frente das entidades e disputar os espaços de poder. Nesse processo, se alinham aos políticos burgueses e partidos da ordem, solicitando verba para as entidades gerais para conseguir recursos sem a apresentação de programas e interesses estudantis. Assim, as entidades gerais surgem de forma completamente descolada da realidade estudantil.
A estratégia desses setores volta-se ao movimento estudantil privado e está baseada na busca de pequenas vitórias locais e por vias institucionais guiadas apenas pelo reformismo das universidades brasileiras sem a superação dos problemas estruturais ligados ao projeto de país. As possibilidades de luta que essas entidades têm são muito limitadas sob essa gestão, porque tem um projeto rebaixado de luta e de universidade no horizonte nacional com baixa inserção de um programa de universidade popular. Na conjuntura mais imediata, o que observamos é que a pandemia enquanto crise humanitária acentuou tais aspectos da crise na educação com uma contradição entre os avanços tecnológicos que são anunciados com o ensino remoto e a situação do país. Essas contradições estão claras e o nosso papel no movimento estudantil em geral se reflete em demonstrar o sentido político destas contradições no panfletar do nosso programa
O ensino remoto, assim, possibilita uma redução de custos no setor público e privado pelas demissões em massa, além de diminuições vertiginosas na quantidade de aulas — que se pode reproduzir ao infinito para alunos que jamais caberiam numa sala. Esta estratégia, ainda que tenha como fundamento o aumento dos lucros na educação privada, é também um elemento desorganizador do movimento estudantil e do movimento sindical destes locais, pois já que é impossível realizar sequer uma passagem em sala virtual, sequer há como se consolidar um movimento estudantil. A crise econômica que está colocada para a classe trabalhadora faz com que a universidade esteja cada vez mais distante para essa “classe”. Com o descolamento da universidade da produção do conhecimento e servindo somente ao desenvolvimento produtivo privado, se consolida na sociedade a noção de que a educação é um gasto e que permanência é uma ultraje quando o horizonte é de aumento constante das mensalidades no setor público. E os gigantes da educação que atuam no país não precisam sequer de matrícula para lucrar já que estão na Bolsa de Valores. Há, portanto, uma desconexão completa das aulas e do ensino enquanto mercadoria e a criação e circulação de valor no setor privado.
Portanto, ainda que o avanço do programa de um ensino popular nos setores prioritários de inserção possa se dar de maneira geral e que, concretamente, ocorre sobretudo nas universidades públicas do país, o setor privado da educação deve ser exponencialmente mais importante pela sua capacidade de influir sobre a luta de classes em uma fração da burguesia que detém um poder político relevante no Brasil. Isto é, somente se superadas as ilusões de um setor estratégico da educação e sintetizando essa problemática naquilo que o movimento estudantil pode realmente ser um braço relevante da luta pela hegemonia do proletariado: não pelo seu caráter estratégico, mas pelo seu atravessamento da juventude trabalhadora pelo trabalho e o caráter de massas que as entidades gerais ainda detém frente à burguesia nacional e transnacionalizada se um dia mergulhadas num programa pautado na hegemonia proletária.
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