Secretário Geral do TKP Kemal Okuyan escreveu: Após a queda de Assad - Uma verdadeira linha de resistência deve ser construída

Antes de tudo e mais nada, como enfatizamos há anos, constitui uma armadilha tremenda para o movimento comunista de todo o mundo estar preso entre uma postura “anti-imperialista” e “tarefas democráticas”.

Secretário Geral do TKP Kemal Okuyan escreveu: Após a queda de Assad - Uma verdadeira linha de resistência deve ser construída
Reprodução/Foto: Huseyin Nasir/AA via Getty Images

Por Kemal Okuyan - Secretário Geral do TKP (Partido Comunista da Turquia)

É um esforço inútil debater se o que ocorre na Síria é uma guerra civil ou intervenção estrangeira. O país tem sido uma zona de conflito na qual as definições de “doméstico” e “estrangeiro” tornaram-se completamente ambíguas.

É evidentemente difícil nessas circunstâncias definir a determinar a força motriz dos últimos desdobramentos que culminaram na queda de Assad. Entretanto, é claro que a propaganda da OTAN - principalmente dos EUA, Reino Unido e Turquia (a qual é um membro da OTAN mas também é dirigida por ambições neo-otomanistas) - de que “o povo derrubou um ditador” é patentemente falsa.

O governo sírio foi enfraquecido por intervenções estrangeiras, guerra prolongada, sanções econômicas, práticas que falharam em unir o povo, corrupção, política econômica liberal, conflitos entre países que deveriam ser aliados de Assad mas que somente impuseram à Síria políticas que satisfizeram seus próprios interesses. Isso foi a causa da queda do governo, tenha ele caído ou sido derrubado.

Tais razões mais profundas de fraqueza fizeram com que o colapso fosse inevitável frente à agressão israelense, às abertas intervenções da parte dos EUA, à intervenção secreta do Reino Unido, à presença militar que a Turquia tentou legitimar com a invocação do direito de lutar contra o “separatismo curdo” e à recente operação executada de maneira coordenada por todos esses poderes.

É evidente que não foi um movimento do povo sírio que causou a queda do regime Assad. Há diversos rastros de uma operação internacional na interação entre a justa indignação popular em relação ao regime e as forças que de fato o derrubaram. Não há dúvidas de que se trata de uma operação imperialista seguida de uma paz imperialista na Síria. Uma paz imperialista nunca estabeleceu paz de fato em lugar algum e, infelizmente, o mesmo será verdade na Síria.

O Partido Comunista da Turquia, durante os últimos dois meses, vem avisando que conflitos não previstos podem se iniciar na Síria, sublinha ainda que estão sendo feitas preparações - ou espalhados rumores nesse sentido - para um acordo entre EUA e Rússia sobre a Ucrânia e a Síria.

Não é coincidência que tanto o governo Biden quanto o britânico, que concordam em uma continuação do conflito ucraniano, decidiram agir rapidamente na Síria,

Evidentemente que o armamento e treinamento do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) na região síria de Idlib - a qual foi deixada sob controle turco no acordo de Astana entre Rússia, Irã e Turquia - não começou há pouco tempo. Apesar de que há anos o HTS é considerado como uma organização terrorista pela Turquia e muitos outros países, também há anos essa organização ligada ao al-Qaeda reforçou sua presença e se preparou nesta região. Apesar da afirmação de que essa organização, ao contrário do Exército Nacional Sírio, não está sob controle turco, é óbvio que o apoio que recebe vem da coordenação entre os EUA, Reino Unido, Israel e Turquia.

No mesmo dia que o governo Biden, junto do Reino Unido e Israel, decidiu agir para mudar o poder na Síria, o governo do presidente Erdoğan começou a afirmar que “Israel nos ameaça depois do Líbano e Síria” e o líder do partido ultra-nacionalista MHP, de maneira chocante, solicitou “diálogo com Öcalan” (líder preso do PKK) e declarou que “é necessário reforçar o fronte interno”.

Era impensável que o governo do AKP - que vem reforçando sua presença militar, política e econômica na Síria baseado em uma perspectiva neo-otomanista há anos - se mantivesse fora desse plano.

Não devemos nos esquecer de que vivemos em uma conjuntura internacional na qual os que atuam juntos também estão competindo ou até em conflito um com o outro. É clara a confusão nas relações turcas com Irã e Israel. A classe dominante turca está cooperando com ambas contra a terceira (Israel).

Tanto o Irã, que não deseja confrontar os EUA e Israel numa guerra aberta, quanto a Rússia, que está esperando o início do governo Trump, foram pegos de surpresa por esse movimento. E, num curto período de tempo, a carta síria que a Rússia colocaria na mesa durante as negociações sobre a Ucrânia se perdeu. Ao contrário, no momento a Rússia está procurando meios para proteger suas bases na Síria. Esse resultado explica o entusiasmo ucraniano para se envolver na operação para Damasco.

O governo Erdoğan irá ou fazer um acordo com a região curda na Síria e ganhar peso econômico e político - como fez com a região curda no Iraque sob Barzani - ou continuará com operações militares contra a presença armada curda. Estamos diante de uma estranha situação na qual ambas as opções beneficiam os EUA e Israel.

A possibilidade de que a Turquia reconheça Rojava, a qual é apoiada há anos pelos EUA e mais recentemente por Israel, e de que a Turquia esteja rumando para resolver sua própria questão curda em um contexto que é preferido pelos EUA só pode significar a síntese do projeto do Oriente Médio Expandido sob uma perspectiva Neo-Otomana. Se a Turquia decidir, por meio do Exército Nacional Sírio, pressionar e eliminar a região curda na Síria, a qual está relativamente estabilizada e é moderna e secular ao contrário do que dizem os jihadistas, fortalecer-se-á a possibilidade de que a Turquia será o novo teatro de intervenção do imperialismo estadunidense na região. Não à toa, nos últimos meses, diversos líderes do PKK vem dizendo ao Estado turco que “ou você une-se a nós e cresce ou se opõe a nós e diminui”.

Nessa conjuntura complexa, na qual todos os países capitalistas estão participando de uma disputa imperialista por divisão imperialista formando alianças extremamente voláteis, somente uma perspectiva de classe pode dispersar a poluição criada por organizações de inteligência e acordos secretos e abertos. Na sequência da derrubada de Assad, é preciso focar na situação geral ao invés de dar atenção para a corrida propagandística entre Tel Aviv e Ankara por proclamação de vitória ou para a questão de se Assad que traiu a Rússia e o Irã ou se Irã e Rússia que traíram Assad.

No Líbano, alvo aberto da agressão israelense, desenvolvimentos rápidos podem ocorrer logo. O Irã pode transformá-lo em um campo central de confronto, o qual poderia tornar-se ainda mais frágil com as mobilizações provocadas nas regiões azeris e curdas, além disso, o país poderia ter sérios problemas com o Azerbaijão - aliado próximo de Israel - e com a Turquia, aliada e inimiga de Israel, ou ainda encarar um ataque direto dos EUA e Israel. Podemos listar também nosso próprio país, a Turquia, onde quantidades enormes de energia se acumulam em profundas falhas geológicas.

Os comunistas têm lições enormes a aprender de toda essa situação.

Antes de tudo e mais nada, como enfatizamos há anos, constitui uma armadilha tremenda para o movimento comunista de todo o mundo estar preso entre uma postura “anti-imperialista” e “tarefas democráticas”. No passado, durante a invasão do Iraque, tarefas “democráticas” e a postura contra o imperialismo foram jogadas uma contra a outra e uma intervenção e ocupação imperialista buscou ser legitimada em nome da libertação do Iraque das mãos da ditadura de Saddam e do direito das nações à autodeterminação.

De maneira similar, apoiar o inimigo do povo, o governo dos mulás no Irã, por causa de sua pretensa posição “anti-imperialista” e justificar intervenções imperialistas em nome da democratização e libertação do Irã são duas faces do mesmo desvio: a perda da perspectiva de classe e pensar dentro dos limites do mando da burguesia.

O mesmo problema existe na Síria. De um ponto de vista, os sírios foram libertados com a queda de Assad. Outro ponto de vista é que a fortaleza anti-imperialista síria foi derrubada. Entretanto, ambos estão errados.

Estamos lidando há anos com o mesmo problema na Turquia. O governo de Erdoğan foi caracterizado por tudo o que se pode imaginar. Somente o TKP mantém a mesma posição sobre o AKP há 22 anos.

Primeiro foi dito que Erdoğan deveria ser apoiado em nome da democracia. O TKP foi contra. Depois, foi dito que todos deveriam se unir contra Erdoğan para lutar pela democracia. Novamente o TKP foi contra. Quando foi dito que o AKP era pró-estadunidense, não discordamos, mas alertamos para que não se esqueçam de que o capitalismo turco tem seus próprios projetos. Então houveram aqueles que buscaram apoio junto a OTAN, reclamando de Erdoğan em nome da “democracia e liberdade”. Ao mesmo tempo, algumas pessoas descobriram que o governo AKP era “anti-imperialista”.

Claro, não achamos que todas essas falácias são criação de “boas intenções”. Ainda assim, podemos tomar somente uma postura amigável perante tais erros, os quais às vezes ocorrem dentro das fileiras do movimento comunistas, e oferecer alguns avisos a partir de nossa própria perspectiva.

Em primeiro lugar, após todas essas grandes tragédias, deve-se abandonar a concepção errônea de que a correlação de forças permite somente estratégias dentro dos limites do sistema imperialista, que o movimento da classe trabalhadora é limitado ou a um paradigma de democratização e liberdade ou a posição inconsistente e negociadora de oposição aos EUA, polida por retórica anti-imperialista, devido a ineficiência do movimento da classe trabalhadora na arena internacional; tudo isso deve ser absolutamente descartado depois de todas essas grandes tragédias.

A era das revoluções burguesas findou-se há muito. O movimento proletário, especialmente o comunista, se encontra, de fato, em um período de fraqueza internacional, mas enquanto nos mantivermos atuando a partir do que chamamos de “pensamentos desejosos e esperançosos” em relação a essa ou aquela facção dentro do mundo imperialista, só continuaremos sangrando mais.

Armam-se constantemente armadilhas perante o movimento comunista.

Em quase todo país, aqueles que desafiam o poder político são acusados de agentes estrangeiros. É o caso nos EUA, no Irã, no Cazaquistão, na Geórgia, na Turquia, na Rússia…

O interessante é que, de fato, há agentes e seus números crescem. A falha dos comunistas de desenvolver uma posição política independente e de se manterem presos em alianças intra-sistema leva aos risco de que essa mancha se espalhe até para o movimento comunista.

Para dar um exemplo: soldados estadunidenses estão treinando e equipando guerrilhas do PYD na região de Rojava, na Síria. Enquanto é fato que anos de agressão contra o povo curdo em diversos países os empurrou em direção ao patrocínio estadunidense e israelense, é possível legitimar essa cooperação aberta e sistemática dentro das fileiras revolucionárias? Colaboracionismo com os EUA e Israel têm sido há décadas o limite do aceitável dentro do movimento comunista, há alguma razão para abrir mão dessa posição agora?

Não. Mas o paradigma libertário é ofuscante, e há os que toleram esse tipo de coisa em nome da esquerda.

Face a isso, o governo do AKP intensifica sua agressão, chamando-os de “americanistas e israelitas”. Um membro da Otan pode acusar os outros de ser pró-americano!

Isso é uma confusão. É necessário sair dessa confusão e tomar uma posição clara. Nem a democratização, nem a solução para a questão nacional, nem o anti-imperialista podem ser resolvidos dentro de um paradigma de pensamento burguês.

Até o movimento proletário está no marco zero quando se trata da correlação de forças, a não ser que atue com uma estratégia independente e se exclua das correlações intra-sistemáticas, será pego entre a democratização e a posição anti-imperialista e ficará preso nessa linha de tensão, independente da escolha que fizer.

A lista está crescendo. Não nos esqueçamos de que, na Iugoslávia, uma das maiores operações imperialistas na história foi defendida com base na liberdade-democracia-direito das nações à autodeterminação, em modo quase que similar ao da Primeira Guerra Mundial. Era difícil mas possível se opor àquela operação e desenvolver uma posição proletária independente sem apoiar a linha burguesa nacionalista representada por Milosevic. E era a única opção.

Então o número de exemplos só cresceu. Não tínhamos que escolher entre uma ditadura liderada por Saddam e uma invasão estadunidense. Claro, o que propomos não é equidistância, é possível desenvolver uma posição independente enfatizando as tarefas prioritárias do momento, agir sem se esquecer de alguns princípios básicos. Do dilema Biden-Trump, Harris-Trump à Síria, do Brasil à Rússia putinista, do Irã à Erdoğan, o movimento internacional se encontra em constante perigo de ser pego entre duas opções dentro do sistema.

A tragédia que há décadas o povo pobre tem sofrido na Síria acabou de entrar em uma nova fase, com consequências críticas e sérias. Devemos nos manter otimistas, mas fato é que a Síria entrou em uma fase muito, muito escura.

Como disse, temos que aprender as lições de toda essa situação. Já que o TKP constantemente se vê perante tais dilemas, já que constroi a luta em uma região que constantemente produz tais dilemas, o Partido busca determinar sua posição ao preservar seus princípios básicos e não se amarrar a esquemas.

Um desses princípios é tomar uma uma clara e inequívoca posição contra toda intervenção direta ou indireta, tentativas de “revolução colorida” e ocupações por países imperialistas. Entretanto, esse princípio só faz sentido quando acompanhado pelo princípio de não alinhamento com qualquer governo burguês e de não participação em nenhum governo dos capitalistas. Quando esses dois princípios aparentam entrar em contradição, o caminho para superar as dificuldades e desenvolver uma atitude independente é colocar tanto a luta por liberdade como a anti-imperialista em um eixo de classe, conquistar terreno e avançar.

Tal posição independente e revolucionária não pode ser exercida durante uma crise se não houve boa preparação e se não houve construção dos devidos canais políticos e sociais para tal posição durante “períodos estáveis”. Se você não tem nenhuma saída de emergência, nenhum equipamento e nenhum plano, a única coisa a se fazer em caso de incêndio é pular no lençol que está aberto e esperando por você nas mãos de outros atores.

Sim, temos que preparar o terreno para uma posição política independente e criar uma nova linha de resistência a qual pode ser facilmente transformada na base para uma ofensiva.

Se não, amanhã seremos forçados a apoiar novas operações contra os jihadistas na Síria, os quais já começaram a cometer massacres, lançadas por Israel e pelos EUA sob o pretexto de limpar a Síria do extremismo islâmico.

Resistência, sucesso e vitória aos comunistas da Palestina, Líbano, Síria, Irã e de todo o mundo!