'Se a cooptação liberal das lutas anti-opressão não nos afasta delas, por que nos afasta do veganismo?' (Maria Fernanda Moneda)

O veganismo vai além da alimentação, ele se relaciona com toda a nossa forma de consumo, o veganismo não existe sem o anticapitalismo e o questionamento do consumo produzido pelo modo de produção capitalista.

'Se a cooptação liberal das lutas anti-opressão não nos afasta delas, por que nos afasta do veganismo?' (Maria Fernanda Moneda)
"Que se perguntem por quê certos animais merecem menos solidariedade e respeito, que se perguntem se podemos pensar (e se é viável) um mundo só para nós humanos."

Por Maria Fernanda Moneda para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Escrevo essa tribuna para contribuir com o debate aberto pelos camaradas Rosa, Felipe e Marião, que iniciaram a discussão sobre o veganismo dentro de nossa organização. O que me motivou a somar esforços na qualificação desse debate foram os comentários surgidos nas redes nas publicações de cada uma das anteriores tribunas, desde um total desconhecimento da pauta - acusando-a de querer “acabar com o churrasco do trabalhador” - até um falsa acusação que coloca o movimento como discurso de classe média sob o pretexto de que a alimentação vegana é cara.

Camaradas, de partida, como bem apontado pela camarada Rosa, o movimento vegano assim como o movimento feminista, lgbt e antirracista, possui uma vertente liberal esvaziada de sentido e que, infelizmente, tem tido mais expressão no mainstream. No entanto, o veganismo popular não deixou de existir e não podemos desqualificá-lo só porque o veganismo liberal existe e tem se mostrado com maior inserção nas classes médias. A existência do veganismo liberal não justifica ignorarmos todo o movimento ou não disputá-lo.

Segundo, me parece que falta arcabouço teórico por parte da militância quando falamos de veganismo e antiespecismo, os comentários dos camaradas apresentam contradições e aparentes contradições do movimento que já foram extensamente debatidas e absorvidas.

O que é o veganismo?

Retrocedamos um passo na nossa discussão sobre a dieta vegana e pensemos primeiro no que é o veganismo. Partirei aqui da definição de C.C. Coelho:

O veganismo é um movimento político que usa o boicote como estratégia de ação, um movimento que decide não fazer parte de uma estrutura, de uma construção social que pensa os animais enquanto mercadoria, enquanto valor e recurso para o homem. Nesse sentido o veganismo é um anti-especismo, isto é, ele não considera a espécie humana como centro do cosmos e com nenhum tipo de direito natural sobre nenhuma outra espécie. O veganismo é um antiespecismo e um anticapitalismo por considerar o modo de produção que organiza nossa sociedade como incompatível com a subsistência dos animais humanos e não-humanos. O modo de produção capitalista é responsável pela destruição de diversos ecossistemas e da vida de animais humanos e não-humanos.

Camaradas, observem que a crítica se dirige a essa estrutura que pensa os animais enquanto mercadoria ao mesmo tempo que naturaliza a exploração animal exercida por ela como um direito da espécie humana. Portanto, vemos que o veganismo busca romper com a estrutura de exploração, é dizer, com o modo capitalista de produção, sendo, então, por definição, um movimento anticapitalista.  

Vejam, essa definição foge ao definido pela Vegan Society, ela aprofunda, radicaliza e decoloniza o veganismo, fazendo germinar esse movimento desde uma perspectiva periférica. É importante que entendamos que esse movimento se junta às demais lutas anti-opressão, das quais ele pode e deve aprender de suas experiências. Esse veganismo radical, decolonial é o que chamamos de veganismo popular ou político.

Gostaria de dar ênfase a uma parte importante da definição de veganismo que estamos utilizando aqui: “por considerar o modo de produção que organiza nossa sociedade como incompatível com a subsistência dos animais humanos e não-humanos”. A lógica exploratória e predatória do modo de produção capitalista destrói o planeta em que vivemos, quando falamos em preservar o meio ambiente falamos em manter a nossa vida e a de todos os animais com os quais compartilhamos este planeta. Nós (acredito) estamos bastante cientes do impacto ambiental da produção de animais de corte, mas também estamos cientes do impacto ambiental das fast fashion, da mineração, do uso de combustíveis fósseis. O veganismo vai além da alimentação, ele se relaciona com toda a nossa forma de consumo, o veganismo não existe sem o anticapitalismo e o questionamento do consumo produzido pelo modo de produção capitalista.

E mais, aqui falamos da exploração de animais humanos e não humanos, me parece também desnecessário discorrer sobre a exploração da mão de obra humana nos setores citados acima e em muitos outros. Aqui também já destaco de antemão que “não existe consumo consciente sob o capitalismo”, é verdade, mas isso não é desculpa para que tenhamos um consumo acrítico e não abracemos certas contradições que nos são apresentadas quando tentamos fazer escolhas mais conscientes em nosso dia a dia. Além disso, espero estar conseguindo mostrar que o veganismo não é uma dieta, é uma luta coletiva que não busca produzir culpas individuais sobre o consumo de cada um.

Especismo e direitos dos animais

Bom, camaradas. Posto que o veganismo é sobre animais humanos e não-humanos, que critica a estrutura na qual esses animais são explorados e tratados como mercadoria sendo, portanto, um movimento anticapitalista por sua essência, me parece importante tocar no ponto do especismo.

O especismo, como o nome já nos dá indícios, é a descrminaçao baseada na espécie. Na prática, então, o especismo é o entendimento de que os animais não-humanos não possuem o direito à vida, à dignidade, podendo ser explorados de forma torturante e cruel, entendendo esses animais apenas como valor e mercadoria. Lembremos que estamos falando de animais sencientes, que sentem fome, medo, frio, estamos falando de porcos, araras, cachorros e capivaras, por exemplo. Por que valorizamos mais a vida de certos animais do que de outros? Por que nossos cachorros e gatos são passíveis de vínculos amorosos profundos, mas nos recusamos a entender que o animal que está no nosso prato também sente medo e felicidade? Isso é, também, especismo.

Vejam, se relacionamos o especismo com a ideia de redução dos animais não-humanos a uma mercadoria, me parece óbvio que os animais envolvidos em sacrifícios religiosos não ocupam esse espaço, assim como os animais consumidos por sociedades não-ocidentais, fora da lógica capitalista, tampouco.

E insisto mais uma vez, não se trata de criar culpas individuais, quem estabelece a nossa relação com os animais é o capitalismo  “à medida em que a indústria define quais espécies são adequadas para a produção em escala e a nossa relação com estes animais passa a ser, na verdade, uma relação apenas com o produto final consumível que é imposto pelos capitalistas à sociedade.”

Falando agora da minha trajetória pessoal, enxergar os animais que aparecem atomizados em nossos pratos, ver o sofrimento por trás de comidas afetivas e desconstruir o especismo, foram processos que se deram a partir de experiências muito pessoais e próprias, portanto, não tenho como objetivo desta tribuna despertar a empatia dos camaradas, mas deixo essa provocação para que algo comece a mudar na perspectiva de cada um e para encorajar fraternalmente o confronto de suas contradições. Que se perguntem por quê certos animais merecem menos solidariedade e respeito, que se perguntem se podemos pensar (e se é viável) um mundo só para nós humanos.

Mas faço o recordatório, camaradas, de que os limites do planeta estão postos, nossa sobrevivência aqui exige se não o fim, uma redução considerável do consumo de animais. O mundo novo que queremos construir não se dará sobre terra arrasada e ele precisa pautar o bem viver em comunidade.

Práxis do veganismo

ontuado que o veganismo é um movimento político, anticapitalista e anti especista, pensemos em sua práxis, explorando agora a alimentação à base de vegetais e coloquemos um ponto final ao raso argumento de que “ser vegano é elitista porque é caro”. Camaradas, o consumo de carne e outros alimentos e produtos de origem animal são um aspecto cultural da nossa sociedade, e o veganismo não busca produzir uma culpa naquele que consome esses produtos.

De partida, é claro que o capital olha para o veganismo como um nicho e procura lucrar com isso, vemos leites vegetais com preços exorbitantes, carnes feitas de planta que custam o dobro ou o triplo da carne de origem animal e que não custam o dobro ou o triplo para serem feitos. Essas empresas gourmetizam o veganismo e em grande parte não garantem uma produção sustentável e sem exploração. O vegan-washing existe, assim como o pink-washing, green-washing e outros.

Se falamos de uma diminuição e extinção do consumo de produtos de origem animal e nos apoiamos no consumo de vegetais, precisamos (e é parte essencial do veganismo como vimos acima), questionar o modo de produção transgênico e monocultor que destrói nosso meio ambiente. A alimentação vegetal não são queijos, leites e carnes de planta. A alimentação vegetal se baseia em uma nutrição de qualidade, arroz, feijão, frutas e legumes sem veneno. Por isso o veganismo está ligado à luta pela terra, pela produção orgânica e agricultura familiar, pela proteção das terras indígenas. Vejam, a mudança no modo de produção é intrínseca ao veganismo, ele tem que ser anticapitalista.

“O veganismo quer acabar com o churrasco do trabalhador”. Camaradas, quem controla a alimentação da classe trabalhadora definitivamente não é o veganismo, quem dita nesse momento o que o trabalhador consome ou não, é o capital. A carne já não está presente na alimentação do trabalhador e isso nada tem a ver com o veganismo! À classe trabalhadora o capital oferece alimentos ultraprocessados, causando adoecimento e nutricídio da população de baixa renda. O veganismo olha para essa realidade e entende que somente por meio da soberania alimentar é que construiremos as condições materiais para que as pessoas tenham autonomia na sua escolha alimentar e tenham acesso a uma alimentação de qualidade e aí, então, poderemos avançar sobre o que comer.

Camaradas, de forma nenhuma esse texto abarca todos os aspectos desse movimento, a literatura sobre o veganismo periférico, racializado e anticolonial é extensa. Não nos faltam referências na esquerda que falam sobre a interseccionalidade do veganismo com as demais lutas anti-opressão. Aqui, eu busquei estabelecer o mínimo para que possamos desenvolver um debate de qualidade que ultrapasse o desconhecimento do movimento.

O veganismo é um movimento em disputa, assim como disputamos os movimentos feminista, lgbt e antirracista, devemos disputar também o veganismo e construir uma mudança coletiva capaz de produzir um novo mundo em comunidade.


[1] https://lavrapalavra.com/2020/06/11/a-forma-animal-da-mercadoria

[2] Embora o termo mais popularizado seja “alimentação vegana” ou “comida vegana”, aqui uso o termo mais correto porque veganos somos nós, pois o veganismo é um movimento político, a comida é vegetal. E lembramos que a alimentação é UM dos aspectos do veganismo.


Referências:

Maila Costa, A forma animal da mercadoria.
https://lavrapalavra.com/2020/06/11/a-forma-animal-da-mercadoria/

Victor Oliveira, Veganismo: uma força que já não pode ser ignorada
https://lavrapalavra.com/2022/02/17/veganismo-uma-forca-que-ja-nao-pode-ser-ignorada/

C. C. Coelho, O que é veganismo?
https://www.youtube.com/watch?v=gCXjuhRlvlw&ab_channel=VegetalVermelho