Rússia e Burkina Faso estreitam relações e ampliam cooperação econômica e militar
O presidente Traoré convidou empresários da burguesia russa a construírem fábricas de processamento em Burkina Faso, citando também a possibilidade de exploração nuclear e de hidrocarbonetos.
Essa matéria é parte de uma cobertura mais ampla sobre os acontecimentos recentes em Burkina Faso e na África Ocidental. Leia a primeira parte para detalhes sobre a prorrogação das eleições burkinabés em meio às tensões regionais no combate ao fundamentalismo, a segunda parte para o cenário de surgimento dos grupos fundamentalistas na África Ocidental, e a terceira parte para a política econômica atual do governo do país.
Em conexão com os esforços nacionais de industrialização e superação da dependência econômica, o governo de transição em Burkina Faso opera diferentes aproximações diplomáticas, tendo como principal objetivo o amparo aos esforços para recuperação de seu território e o combate aos grupos fundamentalistas.
Parte de um momento de efervescência na conjuntura internacional, a ascensão da junta militar em Burkina Faso contou, além do enfático sentimento antifrancês, com uma contundente crítica ao Ocidente por parte de figuras públicas ligadas a pequena burguesia e movimentos de massa. Nesse sentido, desde que assumiu a presidência da junta, Ibrahim Traoré atacou frontalmente a pilhagem histórica do continente africano e o caráter de determinados governos africanos que, segundo o capitão das forças armadas, agem de acordo com os interesses da antiga metrópole.
Longe de ser uma particularidade de Burkina Faso, as críticas são ecos nascidos na presença francesa na África Ocidental. Com o avanço dos movimentos separatistas tuaregues no norte do Mali em 2012, um grupo de militares derrubou o presidente malinês Amadou Toumani Touré. A partir daí foram realizadas diversas missões militares lideradas pelas forças armadas francesas e tropas da ONU, em diálogo com o governo do Mali, onde se destacaram a Operação Serval e, posteriormente, a Operação Barkhane. Ambas foram estopins para que grupos fundamentalistas e milícias passassem a formar alianças para combater os governos, desenvolvendo suas redes de influência e financiamento.
A extensão da presença francesa no chamado G5 do Sahel, que inclui além de Níger, Mali e Burkina Faso, a Mauritânia e o Chade, levou a diversas manifestações populares que denunciavam não apenas a incapacidade das forças armadas francesas de lidarem com a escalada dos conflitos, mas o próprio caráter neocolonial do governo malinense. É nesse contexto que, em 2020, o militar Assimi Goïta lidera o golpe de estado que destituiu o presidente Ibrahim Boubacar Keïta.
Atuando nesse cenário, Ibrahim Traoré passou a conduzir uma política diplomática que busca não apenas reforçar sua capacidade militar para lidar com as questões de segurança no Sahel, mas encontrar alternativas políticas e econômicas que sustentem o grau de autonomia reivindicado em seu discurso. É dessa maneira que a Federação Russa vem atuando para se consolidar como principal aliada do regime de transição em Burkina Faso.
A agudização da política de aproximação russa com os países do continente africano não é recente. Na ocasião da 1ª Cúpula Rússia-África, realizada na cidade de Sóchi em 2019, foram assinados acordos com a Câmara de Comércio de Burkina Faso e Christian Kaboré, então presidente, apelou para cooperação da Rússia para “estabelecer uma parceria estratégica reforçada com o Sahel e fornecer apoio ao plano de ação para combater o terrorismo”. No entanto, Kaboré, alvo de diversas críticas internas pela ineficiência no combate aos fundamentalistas, manteve uma relação ambígua com a Federação Russa, dando prioridade a relação com os franceses e o ocidente.
Já na 2ª Cúpula Rússia-África, realizada em São Petersburgo, em julho de 2023, portanto após os golpes ocorridos no Mali e Burkina Faso (e poucos dias antes do golpe no Níger), Ibrahim Traoré usou como pôde os espaços do Fórum Econômico para enfatizar suas críticas às potências ocidentais, estreitando relações com o Kremlin. Em uma sessão de trabalho com Vladimir Putin, realizada no dia 29, este reafirmou a natureza positiva da relação entre os dois países, anunciando a reabertura da embaixada russa em Burkina. O presidente burkinabé por sua vez, além de citar diversos produtos agrícolas que poderiam interessar o mercado russo, como manga e castanha de caju, convidou os empresários russos a construírem fábricas de processamento no país, citando também uma possível facilitação na construção de uma central nuclear e na exploração de hidrocarbonetos.
Em outubro de 2023, o Ministro da Energia de Burkina, Simon-Pierre Boussim, assinou um memorando em Moscou, junto do vice-diretor da empresa estatal russa Rosatom, Nikolay Spasski, para construção da mencionada central nuclear. A magnitude do acordo entre os dois países pode ser mensurada a partir do fato de que o continente africano possui apenas uma central nuclear, localizada em Koeberg, na África do Sul. O interesse de Burkina Faso na energia nuclear vem do fato de que hoje o país é dependente da importação de energia vinda da Costa do Marfim e de Gana, tendo apenas cerca de 20% da população com acesso a eletricidade. Traoré em entrevistas concedidas após a assinatura do memorando projetou a construção da Central para 2030, junto de outros objetivos para superar o déficit energético.
No âmbito da crise alimentar, a Rússia anunciou na Cúpula Rússia-África uma série de medidas para o fornecimento de cereais para o continente africano e a entrega gratuita destes por seis meses para determinados países, o que incluiu Burkina Faso. Esta medida, tendo em vista a Guerra da Ucrânia e as sanções impostas pela União Europeia à Rússia, é encarada como uma das estratégias do Kremlin para buscar apoio nos organismos internacionais, superando seu isolamento. Nesse cenário, Putin enfatizou em suas intervenções na Cúpula a necessidade da reforma no Conselho de Segurança da ONU para incluir o continente africano.
Na esteira de medidas sociais e econômicas, foi lançada em Burkina Faso a associação Iniciativa Africana, reunindo setores da sociedade civil e profissionais russos na organização de cursos de capacitação e ações comunitárias. Exemplo destas ações, em março de 2024, dezenas de burkinenses estiveram na formação em primeiros socorros ministrada pelo médico infectologista russo Dmitrii Dolbnya, na escola secundária Bambata.
Ainda em relação à saúde, uma equipe russa visitou o Laboratório Nacional de Referência para Febres Hemorrágicas Virais em novembro de 2023, localizado no Centro Muraz, na cidade de Bobo-Dioulasso. Buscando apoiar o combate à dengue no país, a delegação estrangeira montou um laboratório móvel para realizar testes e auxiliar os funcionários.
Nessa série de aproximações, um dos grandes pilares desenvolvidos por Burkina Faso foi o fortalecimento dos laços militares com a Federação Russa. Em setembro de 2023, Yunus-Bek Yevkurov, representante do Ministério da Defesa russo, visitou a capital burkinabé, Ouagadougou, para discutir uma série de questões.
Em novembro, reforçando acordos de defesa já firmados, Sergei Shoigu, Ministro da Defesa russo e Kassoum Coulibaly, Ministro da Defesa burkinabé, reuniram-se e discutiram o treinamento de pilotos na Rússia, bem como caminhos a serem trilhados, especialmente após a retirada de cerca de 400 soldados franceses de Burkina Faso.
Em janeiro de 2024, 100 soldados russos foram enviados para Burkina Faso com o objetivo de fornecer a segurança de Traoré e seu governo, além de formar os militares burkinabés. O contingente faz parte da Legião Africana, força militar russa que tem como fim substituir o Grupo Wagner. Ligada ao Kremlin, a força agrega os mercenários do grupo privado de Yevgeny Prigozhin, falecido em 2023, meses após iniciar um conflito aberto com o governo de Vladmir Putin e o general Sergei Shoigu. Escapando de questões jurídicas e burocráticas internacionais enfrentadas pelo Grupo Wagner, a Legião Africana tem a anunciada pretensão de atuar em Burkina Faso, Líbia, Mali, República Centro Africana e Níger, estando atrelado e respondendo diretamente à Moscou.
Dando continuidade à essa cronológica série de trocas entre os dois países, o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, visitou Burkina Faso no início de junho, reafirmando o compromisso com a Aliança dos Estados do Sahel (AES), além de anunciar a cooperação na produção de fertilizantes e na construção de um laboratório para detecção de doenças infecciosas. Lavrov foi, ao fim de sua visita, condecorado com a medalha da Ordem do Garanhão no Palácio Koulouba. Mais alta distinção do país, o gesto reforça enormemente a importância dada às relações entre Burkina Faso e a Federação Russa.
Em coletiva de imprensa, Lavrov, ao lado do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Burkina Faso, Karamoko Jean Marie Traoré, enfatizou que as relações com o país africano, que avançaram desde que Ibrahim Traoré assumiu o poder, não possuem um caráter neocolonial. Este discurso, sustentado há tempos pelas autoridades russas, vem acompanhado da noção de multipolaridade, adotada pelo Kremlin em documentos e declarações oficiais.