'Reforma agrária: breves apontamentos sobre racismo e exército industrial de reserva' (José Donizete)
A luta pela hegemonia passa necessariamente pelo desenvolvimento de uma visão e de um projeto de reforma agrária revolucionária que seja capaz de se somar aos esforços empreendidos pelas várias organizações sociais do campo no sentido prático e no sentido de radicalizá-las pela revolução brasileira.
Por José Donizete para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
1. Introdução
O objetivo desse pequeno texto é chamar ês comunistas brasileires ao debate sobre a reforma agrária, uma vez que essa problemática possui relação com diversas questões estruturais e estruturantes em nosso país, como o racismo, o desemprego e o ataque ao território amazônico e aos seus povos originários.
Ao dispor brevemente sobre cada um desses aspectos da questão agrária, ressaltamos a importância e a urgência de a incorporarmos em nossas produções teóricas e também em nossa luta prática, entendendo que um projeto adequadamente planejado e executado de reforma agrária será essencial para a luta antirracista, para a luta contra a crise climática e para a garantia de emprego e dignidade para todes trabalhadores brasileires.
Ademais, ressaltamos a importância de debatermos e atuarmos nessa frente de luta especialmente nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, que histórica e recentemente sofrem o assalto do agronegócio que persegue sistematicamente ês camponeses e povos originários que ainda teimam em produzir alimentos para ês brasileires.
2. Balanço histórico
A invasão do período colonial foi marcada pela divisão do território nacional em capitanias hereditárias (e suas sesmarias) a determinados portugueses, sendo que essa distribuição era feita conforme o prestígio do pretenso invasor para com o Rei: sua pureza racial e status social eram os critérios utilizados para garantir o direito de tomá-las. Seguindo a lógica de “terras virgens” descrita por Locke, os povos originários (“não-civilizados”) não teriam quaisquer direitos sobre nosso território porque não o cultivavam de forma intensiva.
Por outro lado, ês africanes escravizades e trazides à força para serem submetides à exploração total sequer eram considerades pessoas, eram tratades como mercadorias que poderiam ser vendidas, trocadas ou mesmo destruídas a critério do senhorio.
A obra “Dialética Radical do Brasil Negro”, de Clóvis Moura, é essencial para entendermos a dinâmica do modo de produção escravista. Segundo o autor, a lógica colonial impunha a transferência de valor das colônias para a metrópole e limitava a acumulação de capitais por parte dos escravizadores portugueses, pois:
a) a instalação de engenhos era bastante cara;
b) o preço da mão-de-obra não era controlado pelos latifundiários;
c) o preço da mercadoria vendida também não estava em seu controle, em face do pacto colonial;
d) um enorme aparato colonial de repressão de escravizades africanes e povos originários, que também era custeado pelos escravistas brasileiros, teve de ser criado para reprimir as constantes revoltas, fugas e quilombagens dês explorades;
Em razão disso, caso não houvesse um fluxo constante de escravizades africanes esse modo de produção rapidamente entraria em colapso, pois dependia da exploração e reposição intensa dessas pessoas no eito (sem esquecer que nem todes escravizades trabalhavam diretamente na produção do açúcar, pois desempenhavam os mais diversos papéis na sociedade colonial, desde os cuidados domésticos até a atuação como sapateires e ferreires, jornaleires, p. ex.).
Enquanto o tráfico de pessoas escravizadas foi permitido (e estimulado) esse modo de produção conseguiu se manter e se reproduzir, mesmo que com dificuldades, no período chamado por Moura de “escravismo pleno” (1550-1850). Todavia, o rápido desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção nas potências capitalistas do pós-revolução industrial chegou ao Brasil (especialmente na região onde o modo de produção escravista era mais dinâmico, como Minas, Rio de Janeiro e São Paulo) e ensejou o “cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escravista”. Trata-se do período chamado, por Clóvis Moura, de “escravismo tardio” (1850-1888).
Essa “modernização sem mudança”, ao mesmo tempo em que cristalizou a segregação racial no Brasil em bases não mais escravistas, assegurou a dinamização das forças produtivas a partir da introdução de novas tecnologias/setores industriais controladas por capital externo (principalmente inglês), mantendo a lógica de economia dependente (com a mudança de metrópole) e criando condições para a existência de uma burguesia intermediária/gerente do grande capital externo, algo parecido com o que Fanon descreve em “Os Condenados da Terra”.
Portanto, além de estradas de ferro, bancos, linhas telegráficas, agências postais, grandes varejistas e etc., o capital inglês dominava também as etapas de distribuição e comercialização dos produtos mais rentáveis aqui produzidos: o café, o açúcar e o algodão. No setor da mineração, p. ex., empresas estrangeiras também se utilizavam abertamente de pessoas escravizadas como mão-de-obra.
Por outro lado, as oligarquias latifundiárias conseguiram manter o equilíbrio entre apoiar esse processo de modernização em uma posição subalterna e manter, após a abolição, seus privilégios de classe e, principalmente, a propriedade da terra. A principal ferramenta utilizada para garantir esse domínio foi a Lei de Terras, promulgada em 1850. Em suma, essa lei significou que as terras devolutas (ainda não destinadas pelo Estado) não seriam mais doadas, apenas comercializadas, ou seja, foram liberalizadas para serem adquiridas por quem tivesse dinheiro ou o crédito necessário.
Logo, isso tornou impossível que o Estado, ao decretar a abolição que inevitavelmente viria após a Lei Eusébio de Queiroz (também de 1850) acompanhasse essa medida com uma de doação de terras às pessoas escravizadas e libertas, que, evidentemente, não teriam nem o dinheiro nem o crédito para comprar qualquer pedaço de chão para se sustentar (o mesmo se aplicou aes camponeses mestiços e aes já libertos).
Além disso, esse dispositivo legal criou um aparato jurídico de repressão violenta a quem tinha a posse de terras e não tinha título de propriedade, bem como um fundo para a importação de trabalhadores livres. Logo, o objetivo não era apenas vender essas terras, mas vendê-las para imigrantes como tentativa de branquear a população brasileira e de negar o direito de propriedade à população negra escravizada e também à ampla população camponesa mestiça e liberta.
Em resumo:
“A política programada para uma manobra de branqueamento no seu nível ideológico nada tem a ver com o favorecimento à integração das populações brasileiras compostas de negros, mulatos, mamelucos e não brancos em geral. Com essa montagem seletora e discriminatória no setor agrário, essas populações ficam nos espaços marginais de estrutura agrária. Ela é montada, pelo contrário, para que a corrente migratória tenha possibilidades concretas de conseguir ser proprietária no Brasil. Finalmente, resguarda-se o latifúndio escravista de ver aprovada no Parlamento uma lei que doe as terras do Estado aos escravos libertados após a Abolição.”
Logo, camaradas, precisamos questionar abertamente o caráter racial da concentração de terras no Brasil e a manutenção desse caráter ao longo de nosso desenvolvimento histórico.
Para além dos 300 anos onde a produção no Brasil-Colônia e Império dependeu principalmente da escravização de pessoas africanas, em uma dinâmica que contribuiu para a racialização dos povos de África, a mesma classe latifundiária dominante que escravizou também planejou, abertamente, uma transição “lenta, gradual e segura” da escravidão que excluísse sequer a possibilidade de as pessoas libertas terem o acesso à terra.
Não podemos esquecer que nesse momento histórico já era de amplo conhecimento que um processo de reforma agrária parcelar, como a que ocorreu na França pós-revolucionária, foi essencial à acumulação de capitais e à industrialização que ocorreu posteriormente nesse país.
3. Situação Atual
Como sabemos, a ausência de qualquer tipo de ruptura sistêmica para com a lógica do latifúndio não quebrou a base econômica exportadora de commodities, que se antes eram a cana-de-açúcar e o café, passaram a ser, principalmente, a soja, o milho e a carne bovina.
O processo de industrialização pelo qual passamos no século XX, de caráter fortemente dependente, também não culminou (nem poderia) na criação e reprodução de um complexo industrial nacional a partir de tecnologia brasileira, continuamos dependentes de conglomerados estrangeiros para manter nossas telecomunicações, armazenar nossos dados e até para viabilizar a produção da soja, do milho e da proteína animal.
O Estado brasileiro continua despejando a maior parte de seus recursos para financiar essa produção primário-exportadora com crédito a juros negativos ou com tributos em níveis risíveis (seja da propriedade da terra ou dos bens exportados na forma bruta).
O latifúndio ainda é uma das principais (senão a principal) base do poder político burguês no Brasil, conseguindo não apenas capturar o Estado para subsidiar sua reprodução mas também trabalhar por uma hegemonia sociocultural na forma do sertanejo universitário e de “exposições agropecuárias” no interior do país que, em muitos casos, são os eventos culturais mais aguardados do ano.
O agronegócio brasileiro segue sua expansão a todo vapor, sem esconder que o caráter reacionário e racista persiste desde o período colonial:
"(...) produtores brancos ocupam 208 milhões de hectares – quase 60% de toda a área das propriedades rurais registradas pelo IBGE. Os negros, mesmo sendo a maioria dos produtores rurais, ocupam menos da metade da área dos brancos – 99 milhões de hectares, ou 28% da área total de estabelecimentos rurais."
Precisamos urgentemente debater e formular sobre a questão agrária no Brasil, afinal de contas, de acordo com o censo de 2010, quase 30 milhões de brasileiros vivem na zona rural e nesses territórios o analfabetismo, a pobreza, o desemprego e todos os flagelos decorrentes de uma sociedade capitalista são sentidos de forma ainda mais aguda.
Essa situação afeta diretamente a vida nas cidades, pois a miséria camponesa e a concentração de terras, causadoras de um lento e constante processo de êxodo rural, também contribuem para aumentar o contingente de trabalhadores desempregados nas cidades (o exército industrial de reserva) e o grau de sua exploração:
“(...) a estrutura agrária atual existe exatamente para que se obtenha (...) uma oferta de mão de obra ao mais baixo preço possível. (...) ora, o custo da mão de obra agrícola é fator decisivo na determinação do preço da oferta de trabalho não especializada urbana”.
Na Região Norte como um todo e, especialmente, em nosso Estado de Rondônia, sentimos as consequências de políticas como a marcha para o oeste varguista e do “integrar para não entregar” da ditadura empresarial-militar, como:
a) O deslocamento do eixo dos principais conflitos (inclusive armados) pela terra para o Norte do país como fruto da intenção (não-declarada) de “pacificar” o campo sul-sudestino;
b) A devastação ambiental e destruição do modo de vida de povos originários como indígenas, quilombolas e povos ribeirinhos por meio da extração de madeira ilegal, da construção de usinas hidrelétricas, da mineração e do garimpo e, claro da expansão do agronegócio, especialmente da pecuária;
c) A rápida formação de latifúndios em terras antes destinadas a eventuais assentamentos, uma vez que a “lógica” liberal de reforma agrária como concessão de propriedade em locais distantes de grandes centros populacionais, mercados consumidores, inverte a chave desse processo e faz desses trabalhadores meros desbravadores de terras para a futura aquisição pela burguesia latifundiária.
Dessa maneira, camaradas, espero que essa breve exposição sirva como provocação ao debate público e qualificado sobre a reforma agrária, uma vez que a luta pela hegemonia passa necessariamente pelo desenvolvimento de uma visão e de um projeto de reforma agrária revolucionária que seja capaz de se somar aos esforços empreendidos pelas várias organizações sociais do campo no sentido prático e no sentido de radicalizá-las pela revolução brasileira, pois sabemos que qualquer ganho mínimo para a classe trabalhadora rural ou urbana só será obtido com uma ampla união de esforços e que uma verdadeira reforma agrária com a cara e o conteúdo da classe trabalhadora brasileira não será feita no âmbito do estado burguês.