RBS, afiliada à Globo, e Brasil Paralelo patrocinam vinda de “guru” da extrema-direita para São Paulo e Porto Alegre
O patrocínio de alguém do naipe de Jordan Peterson desmascara a demagogia do Grupo RBS e da Rede Globo, e mostra que se a extrema-direita der dinheiro, então a grande mídia vai lucrar com isso.
Por Redação | Reportagem por C. Selva
O Grupo RBS, maior conglomerado midiático do sul e afiliado à Rede Globo, está patrocinando um evento com Jordan Peterson, intelectual canadense de extrema-direita. O evento é apresentado no Brasil pelo projeto Fronteiras do Pensamento, e é parte da turnê internacional de Peterson, “We Who Wrestle With God” (em tradução livre, Nós Que Lutamos Com Deus). A turnê é patrocinada também pela plataforma de streaming Brasil Paralelo, veículo conservador ligado ao falecido bolsonarista Olavo de Carvalho, cujos documentários já foram tirados do ar pelo Tribunal Superior Eleitoral por favorecerem a estratégia golpista do bolsonarismo. As palestras de Peterson ocorrerão no dia 18 de junho em São Paulo, no Espaço Unimed, e no dia 20 em Porto Alegre, no Auditório Araújo Vianna, administrado pela Opinião Produtora.
Quem é Jordan Peterson e qual é sua ligação com a extrema-direita
Jordan Peterson é ex-docente, escritor de livros de auto-ajuda e psicólogo canadense. É conhecido, principalmente na América do Norte e na Europa, por ser uma figura relevante dentro dos círculos de extrema-direita. Peterson viralizou em 2016, ao ser alvo de protestos na Universidade de Toronto, em que lecionava, depois de se insurgir contra a lei que criminalizou a discriminação contra as pessoas trans no Canadá. O protesto acabou em confronto entre militantes antifascistas e seus apoiadores.
Peterson dedica muitas das suas falas para se opor aos movimentos que lutam contra as desigualdades raciais e sexuais. É contra as cotas nas universidades e acredita que privilégio branco é uma “mentira marxista”. Chegou a falar que feministas toleram o islamismo porque “tem um desejo inconsciente por dominação masculina brutal”, e em mais de uma ocasião defendeu a criminalização do divórcio, proposta que apelidou de “monogamia forçada”, em prol da construção da “família tradicional”. Em 2022, em sua cruzada anti-trans, Peterson foi suspenso do Twitter por chamar de “criminoso” o médico que fez a mastectomia (cirurgia de afirmação de gênero) no ator canadense Elliot Page. Elon Musk restituiu sua conta na plataforma depois de comprar a rede social no mesmo ano.
A vinda de Peterson ao Brasil acontece no momento em que Musk usa suas redes para defender a derrubada de Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal, uma afronta à ala majoritária do STF que defende a prisão de Bolsonaro e dos líderes da tentativa de golpe em 2022. Em concordância com Musk e os bolsonaristas, Peterson assinou ano passado a carta “A expressão aberta é o pilar central de uma sociedade livre”, que afirma que os poderes governamentais de alguns países, inclusive o STF, estariam “criminalizando o discurso político”.
Embora se apresente por vezes como um crítico dos excessos e favorável ao equilíbrio entre ideologias, Peterson consegue sua popularidade se opondo à esquerda e alternando entre minimização, omissão e apoio ao radicalismo da direita. Em 2020, Peterson divulgou matérias a favor de Kyle Rittenhouse, integrante de uma milícia de extrema-direita que assassinou dois manifestantes que estavam compondo o levante antirracista e antifascista de 2020 em Kenosha, nos EUA. Para ele, o ex-presidente Donald Trump, cuja facção tentou utilizar o Exército para impedir a eleição e a posse de Joe Biden, age corretamente na sua oposição à esquerda, e é “vilanizado” injustamente pelos Democratas e pelo poder judiciário em alguns Estados da potência norte-americana.
Os eventos com Peterson no Brasil ocorrem em um momento em que grupos de extrema-direita, financiados e impulsionados por grandes empresários, tentam fortalecer os laços entre seus respectivos movimentos no Brasil e nos Estados Unidos, em um contexto de possível reeleição de Donald Trump e luta pela anistia para Bolsonaro. Em comum, existe o apoio direto ou passivo para a derrubada de regimes políticos considerados excessivamente tolerantes ou mesmo “dominados” pela esquerda, proposta que caminha junto com a construção de novos regimes anticomunistas, patriarcais e fundamentalistas cristãos. Exemplo disso também é que Musk foi a favor do golpe militar de 2019 na Bolívia, que trouxe ao governo a golpista Jeanine Añez. A presidente do governo de extrema-direita foi presa em 2021, um justo destino para uma política que comandou o assassinato de indígenas e camponeses da oposição de esquerda durante execução do golpe.
Outra posição comum desses círculos da extrema-direita é a defesa do liberalismo econômico. Peterson é apoiador do presidente de extrema-direita argentino Javier Milei, a quem Peterson considera que está enfrentando os “socialistas [do Fórum] de Davos”. Desde que foi empossado, Milei tem buscado criminalizar a oposição a seu governo, cujo programa contra os direitos trabalhistas e empresas públicas colocou 57% da população abaixo da linha da pobreza. Milei, como Peterson, é outro amigo de Elon Musk, que está de olho nos recursos naturais da América Latina, além de tentar exercer controle em importantes cadeias produtivas na área de tecnologia, as do Brasil incluso.
Como justificativa filosófica para seus posicionamentos, Peterson se coloca como defensor das hierarquias sociais e da desigualdade de classe como algo inevitável — em alguns casos, para ele, é algo inclusive desejável. Não à toa, Peterson é ferrenhamente anticomunista.
Globo entra em contradição ao ver afiliada se associar com Brasil Paralelo
A associação do Grupo RBS com o Brasil Paralelo entra em contradição com o discurso oficial da Rede Globo, que elenca Bolsonaro como perigoso agitador à serviço da derrubada da Nova República em seu editorial do último dia 2 de fevereiro. Ao patrocinar evento com defensor da tese de suposto radicalismo do STF, a afiliada da Globo favorece um integrante importante de um movimento político internacional que busca dar anistia aos responsáveis por tentar dar um golpe de Estado para dissolver o STF e prender Lula em 2022, o que teria tornado Bolsonaro ditador de um novo regime militar.
Chama a atenção a associação entre a filial gaúcha da “mídia democrática” junto com o Brasil Paralelo. A autoproclamada “Netflix de direita” publica filmes com viés abertamente reacionário e historicamente revisionista sobre diversos temas: em um episódio da série Investigação Paralela, por exemplo, o programa amplifica a visão do agressor condenado por tentar assassinar Maria da Penha. Em 2019, a plataforma também chegou a exibir nas salas de cinema do Cinemark um documentário que defende que o anticomunismo foi uma justificativa justa para o golpe militar da extrema-direita em 1964. A empresa chegou a ser desmonetizada no YouTube por determinação do TSE em 2022, por espalhar desinformação visando associar esquemas de desvio de verba a Lula e minar a credibilidade política do STF, em um contexto de preparação para o golpe bolsonarista.
Enquanto a Globo e a RBS tentam adotar em sua linha editorial uma visão social-liberal, que busca amenizar as desigualdades ainda dentro da lógica do mercado, o Brasil Paralelo defende a visão “liberal na economia, conservadora nos costumes”, como afirmaram seus donos em uma entrevista publicada em fevereiro na revista Exame. Em comum entre essas empresas, está o apoio ao golpe institucional contra o governo Dilma em 2016, que os donos do Brasil Paralelo afirmam que serviu de inspiração para a criação da plataforma. Também é uma característica comum o fato que RBS, Globo e Brasil Paralelo são todas empresas capitalistas que defendem o capitalismo, favoráveis ao controle privado sobre os meios de produção e da lógica de mercado como melhor lógica para satisfazer as necessidades da humanidade — e das necessidades dos seus donos também, não custa lembrar.
A diferença é de tática e de momento histórico: enquanto os donos do Brasil Paralelo conquistaram sua posição na cadeia produtiva do audiovisual brasileiro agitando um discurso marcadamente anti-esquerda e baseado no confronto direto, em um contexto de desgaste do regime da Nova República, os donos da Rede Globo tiveram que amenizar seu discurso jornalístico ao longo das décadas, tendo sido pressionados pelos movimentos sindicais, estudantis e populares, em um cenário de desgaste do regime da extrema-direita que nasceu em 1964. Durante a abertura, era necessário cooptar esses movimentos para dentro da Nova República e impedir que a luta contra a ditadura militar ultrapassasse os limites impostos pelos capitalistas, que temiam a radicalização do movimento dos trabalhadores.
As divergências entre as linhas editoriais de hoje não impedem os criadores do Brasil Paralelo de reconhecerem o papel Roberto Marinho — o comandante da investida midiática contra o governo João Goulart e figura fundamental no golpe de 1964 — como uma inspiração para o seu trabalho. Teria sido o elogio suficiente para fazer a filial da Globo patrocinar o evento da Internacional Fascista no nosso país?
O patrocínio de alguém do naipe de Jordan Peterson desmascara a demagogia do Grupo RBS e da Rede Globo, e mostra que se a extrema-direita der dinheiro, então a grande mídia vai lucrar com isso. Tudo é “nicho de mercado”. Afinal, quando os fascistas chegam ao poder e iniciam sua “doutrina de choque”, quem sofre o terror não são os grandes empresários — são os 600 mil que morreram durante a pandemia do COVID-19 por culpa do governo genocida de Jair Bolsonaro, a grande maioria sendo pessoas pobres, trabalhadoras e negras. Os grandes empresários, em que pese a demagogia “democrática”, na verdade lucraram e muito com as gestões golpistas e de extrema-direita de 2016 para cá.
Fronteiras do Pensamento naturaliza extrema-direita ao trazer Peterson
Em resposta à questionamentos feitos pelo jornal Matinal, que fez a primeira matéria crítica à vinda de Peterson para o Brasil, os organizadores do Fronteiras do Pensamento afirmam que seu projeto “estimula o diálogo e a diversidade de opinião, explorando temáticas importantes para públicos também distintos, e promove, desde 2006, a reflexão sobre assuntos relevantes para a sociedade”. Afirmam ainda que trouxeram pessoas de diferentes posicionamentos, entre eles Thomas Piketty, Mia Couto, Nadia Murad, Graça Machel e Manuel Castells.
Mas o que está em debate não é o fato do projeto ter trazido nenhum desses nomes anteriormente. O que está sendo denunciado é que o projeto Fronteiras do Pensamento defende a tolerância a posicionamentos políticos que pregam a criminalização de pessoas trans, que defendem a legalidade de fascistas usarem o Exército para subverterem a eleição, que defendem a liberdade de milicianos de extrema-direita assassinarem manifestantes antirracistas, que defendem a criminalização do divórcio e a consequente escravização das mulheres em nome da “família tradicional”.
Que o projeto Fronteiras do Pensamento não conceda espaço para alguém de esquerda alinhados com a perspectiva revolucionária poder expressar suas opiniões demonstra que tem razão Moysés Pinto Neto, filósofo entrevistado pelo Matinal. Para ele, a naturalização da extrema-direita serve para deslocar o tabuleiro político para a direita, tornando as eleições uma arena de disputa entre as forças conservadoras e ultraconservadoras, como acontece nos EUA e em grande parte da Europa. Convenhamos, apesar disso, que não se trata aqui de exigir o direito à participação de comunistas dentro do Fronteiras do Pensamento, afinal ninguém nunca precisou da autorização dos organizadores desse projeto para dar qualquer opinião — eu mesmo, antes de saber da vinda de Peterson para o Brasil, nem sabia o que era o Fronteiras do Pensamento, e era feliz assim.
O que chama a atenção é também o fato do Araújo Vianna, auditório público de Porto Alegre hoje administrado privadamente pela Opinião Produtora, ser utilizado para abrigar as ideias de uma figura criminosa como Jordan Peterson. Uma péssima utilização dos bens públicos, que não deve ser tolerada e poderia ser motivo inclusive para terminar o contrato do Opinião com o Araújo Vianna, tivesse Porto Alegre um governo verdadeiramente comprometido com os interesses populares. Já em São Paulo, o evento irá ocorrer no Espaço Unimed, casa de shows desse que é um dos maiores planos de saúde no país, cujos interesses políticos enquanto grande empresa privada da área da saúde certamente dispensam apresentações.
Com sua turnê, o objetivo de Peterson e seus aliados é fortalecer mundo afora a defesa do modelo estadunidense de liberdade de expressão, baseado na Primeira Emenda da Constituição dos EUA. A carta que assinou criticando o STF elogiava o modelo estadunidense como o mais adequado, “esquecendo” que o regime estadunidense é um regime bipartidário, com voto presidencial indireto, que limita profundamente o controle político da sua população na arena eleitoral, chegando a impedir o voto de imigrantes em vários estados. Na liberdade de expressão estadunidense, também, qualquer estrangeiro que tenha sido filiado a um Partido Comunista no exterior não pode conseguir visto para morar nos EUA. Grupos nazistas, por outro lado, têm total cobertura legal para atuar no país.
Essa liberdade de expressão, portanto, é um engodo dos grandes grupos empresariais e dos extremistas da direita, viúvos do fascismo e continuadores das diferentes ideologias repressoras pró-capitalismo ao longo do mundo, para dar liberdade de organização para os seus aliados tramarem publicamente a mudança de regime. Seu objetivo é retroceder os avanços dos movimentos sindicais e populares e fazer com que as classes sociais, além de continuarem existindo, sigam tendo um critério racial, sexual e inclusive geopolítico muito bem definido — o que certamente é útil para um zé ninguém como esse Jordan Peterson, que ascendeu até poder circular nos círculos da alta burguesia internacional por ser esse agitador pseudofascista com pitadas de auto-ajuda.
Mas a ridicularidade desse personagem não apaga o papel político importante que ele representa, nem apaga o perigo que suas ideias muito bem financiadas representam para a classe trabalhadora no Brasil e no mundo.
Grupos antifascistas de Porto Alegre organizam contra-ato
Após o anúncio da vinda de Peterson para o Brasil, manifestações de repúdio começaram a circular nas redes sociais. Acácio Augusto, militante punk e anarquista de Porto Alegre, divulgou no Twitter um chamado à mobilização contra a vinda do intelectual reacionário, defendendo que a cidade não pode aceitar a “importação de pensadores fascistas”. O mesmo texto também foi divulgado na página do Esp(a)ço no Instagram:
Convidamos movimentos e independentes de esquerda para discutir a vinda do "pensador" de extrema-direita Jordan Peterson a Porto Alegre para evento Fronteiras do Pensamento no Auditório Araújo Viana e se movimentar para formar oposição a esse evento. Peterson é conhecido nos EUA por seu discurso reacionário, com uma mentalidade explicitamente antimulher e antitrans. Esse tipo de discurso não deve ser importado para a cidade, muito menos celebrado em um grande evento produzido pelo Grupo RBS e pelo canal de extrema direita Brasil Paralelo, sob o risco de normalizarmos discursos misóginos e transfóbicos.
A reunião ocorrerá no dia 19 de abril, às 19h, no Esp(a)ço. Rua Castro Alves, 101, bairro Rio Branco em Porto Alegre.
Porto Alegre foi palco de confrontos importantes entre a esquerda radical e a extrema-direita nos últimos anos. Em 2020, torcidas organizadas, anarquistas, militantes independentes e militantes de diferentes organizações de esquerda fizeram uma série de contra-atos em frente ao Comando Militar Sul, protestando contra manifestações que pediam que Bolsonaro e as Forças Armadas dessem um golpe militar durante a pandemia da COVID-19. Os protestos inspiraram ações similares em outras regiões do Brasil. Também no Twitter, o perfil da Antimídia, mídia anarquista ligada à luta dos povos originários, chegou a compartilhar a postagem perguntando se haveria mobilização semelhante contra a vinda de Peterson para São Paulo.
Se ocorrer e for bem-sucedida, a ação antifascista será uma novidade na conjuntura, em que o monopólio da repressão à extrema-direita está completamente nas mãos do STF, que tenta emplacar a prisão “lenta, gradual e segura” dos golpistas. Resta saber se as demais organizações de esquerda e entidades sindicais e estudantis participarão — ou se o lema preferido do ano eleitoral será, mais uma vez, “fique em casa, se puder”.