'Racismo só é competência do Minervino?' (Contribuição anônima)
Na prática, muitos dos camaradas brancos continuam desprezando as denúncias de racismo, se recusando a dar relevância aos incômodos e problemas levantados por camaradas que sofrem com o racismo velado e a invalidação de suas propostas e argumentações.
Contribuição anônima para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Um dos principais motivos para o racha do PCB foi a divisão entre o partido e seus coletivos. CNMO, CFCAM, UC, LGBTComunista e Vianinha eram tratados tanto pelo partido como pela UJC como repositórios de camaradas que se encaixavam nos objetivos de cada um. Camaradas ligados a lutas raciais eram direcionados ao Minervino, camaradas ligadas a questões de gênero eram indicadas a procurar o Ana Montenegro. Tal comportamento é consequência do mesmo problema que originou os coletivos, o fato de o partido não saber lidar com questões de raça, gênero, orientação sexual de maneira comunista, subdividindo por agrupamentos.
Essa subdivisão, a princípio voltada para um foco maior em cada questão, se traduziu em uma prática fragmentada, em que os membros dos coletivos raramente militavam também no partido, e os aposentados da UJC eram enviados a um coletivo sem serem integrados ao PCB. A divisão chegou a tal ponto, que a comunicação entre coletivos, juventude e partido praticamente inexistiam, sendo muito difícil estabelecer tarefas e locais de atuação comuns. Além disso, os coletivos não se desenvolveram em todos os estados, e mesmo em lugares como São Paulo demoraram muito a se dividir em núcleos, ou nem chegaram a fazê-lo. Em estados do Norte, sequer foi possível fundar o Minervino ou o Ana.
Outro ponto dessa composição esquisita era a transformação dos coletivos em consultorias, quando surgiam tarefas ligadas a negros, mulheres e LGBT, lembrava-se da existência de coletivos com acúmulos sobre os temas, que poderiam montar mesas de conversa, apresentações e outros modelos de Agitação e Propaganda.
Recorri ao histórico do PCB formal para demonstrar como os coletivos têm sido tratados há anos. O foco da tribuna é a questão racial, mas muitas das críticas são válidas também para questões que envolvam o Ana Montenegro e o LGBTComunista. Além disso, realizo uma crítica àqueles que aderiram ao PCB-RR, mas continuam escolhendo as lutas mais distantes, cuja frustração pela falha é menor, como o caso da Palestina.
Meu ponto central é o fato de o PCB-RR demonstrar pouco empenho em lidar com a questão racial. Compreendo que solucionar todos os problemas demorará muito tempo, e que somente após um novo Congresso teremos condições de realizar de fato. Contudo, percebo alguns sinais de que caminhamos muito lentamente na solução desse problema específico, em um ritmo ainda mais lento do que qualquer outra questão candente em nossa organização.
Pretendo, assim, comentar dois pontos centrais, o primeiro deles sendo a “difícil” definição sobre o que é racismo entre nossas fileiras, que leva à omissão, e o segundo é a produção de tribunas, que versam sobre os mais diversos e aleatórios temas, desde a questão palestina, até a dissolução da UJC, passando pela segurança digital e pela reforma agrária.
Será que isso é racismo?
Em diferentes ocasiões vivenciamos casos de racismo explícitos, como a expulsão do camarada Jones Manoel, até casos menos declarados, cuja aparência é tão diferente da raiz que é muito complicado percebê-lo. Ou será que é difícil perceber porque a maioria de nossas fileiras é branca? Ou mesmo porque temos pouquíssimas formações sobre questões de raça em qualquer espaço que não seja o CNMO?
Penso que a dificuldade de enxergar ações racistas advém dos dois questionamentos. Para os camaradas brancos perceberem as nuances do racismo, é preciso haver formações constantes sobre o assunto, pois não experienciamos a discriminação da mesma forma que nossos camaradas negros. Não se trata de uma questão de identidade, mas da análise material da realidade, se ele não nos afeta da mesma maneira, é preciso estudar duas vezes mais, para compreender todos os elementos que o envolvem.
É função dos comunistas combater qualquer forma de discriminação, independente das características individuais. Se somos uma organização de maioria branca, é nosso dever combater o racismo com seriedade. Entretanto, não é o caso em muitos locais. Por vezes, os militantes nem percebem o que estão fazendo, são incapazes de notar que existem pesos diferentes nas críticas, nas investigações, nas denúncias, quando são direcionadas a militantes negros.
Em conjunto, está a omissão. Quando nos deparamos com um caso de racismo, acontecem diversas reações: os militantes negros são os primeiros a perceber e denunciar. Camaradas brancos, por outro lado, tendem a assumir posturas defensivas e de negação, não percebendo as nuances de seus comportamentos. Sabemos que a diferença de posturas advém do racismo estrutural, que é sutil a ponto de passar despercebido em alguns contextos.
Existem dois desdobramentos dessa postura, cujos impactos são o uso do acúmulo teórico para mascarar o racismo, o desprezo por questões de raça e um peso maior ao punitivismo contra militantes negros. Debateremos cada item detalhadamente, inter-relacionando seus aspectos centrais.
O primeiro ponto é formativamente problemático, ele influencia o desenvolvimento teórico e prático de nossos camaradas, especialmente os recém-ingressados. Militantes com anos de experiência, e acúmulos sobre marxismo e temas de nossos trabalhos, tendem a ser vistos como referência por militantes mais jovens, que se considerem inexperientes e inseguros sobre os debates internos. Embora seja um movimento comum, existe um problema candente nisso, o fato de muitos militantes usarem de seus acúmulos teóricos, suas experiências em tarefas estaduais e nacionais, e até sua atuação em outras instâncias, para mascarar manifestações racistas.
Comportamento que se manifesta em falas que recorrem a termos complexos e estranhos a quem tem pouca experiência, como blanquismo e dimitrovismo, que podem ser explicados de maneira mais simples aos recém-chegados. Sabendo que, em nossas fileiras, uma argumentação com base sólida é valorizada ao máximo nas tomadas de decisão, se emprega o uso de termos teóricos pouco conhecidos — com uma suposta superioridade acadêmica, ao estilo do PCB formal — contra a argumentação de camaradas negros. O principal efeito dessa prática é a invalidação das falas, criando uma aparência de fragilidade argumentativa, ou falta de embasamento.
O segundo ponto, o desprezo por questões de raça, é bastante sutil, já que é comum pressupor que, por sermos comunistas, somos automaticamente antirracistas e livres de qualquer desvio. Na prática, muitos dos camaradas brancos continuam desprezando as denúncias de racismo, se recusando a dar relevância aos incômodos e problemas levantados por camaradas que sofrem com o racismo velado e a invalidação de suas propostas e argumentações.
A principal manifestação desse ponto é a perspectiva de que o combate ao racismo é exclusivo do CNMO. Tarefas ligadas ao novembro antirracista, à privatização dos presídios e outros aspectos da opressão racial eram, antes do racha, competência quase que exclusiva do coletivo negro. Contudo, há outros problemas, além de só pensarmos a atuação racial a partir do coletivo, outros órgãos do partido não se davam — e continuam assim — ao trabalho de formular sobre o tema, tampouco de se apropriar das formulações muito qualitativas dos camaradas do Minervino.
Se a criação dos coletivos tinha como função aprofundar os debates e a ação sobre seu tema específico, parece que isso não se realizou com o Minervino de Oliveira. Mas o PCB formal não é o único responsável por isso, posto que em lugares como São Paulo, onde a UJC ao nível estadual aderiu à RR, essa prática continua presente. Evidente que uma mudança desse tipo exige tempo e maturidade teórica de nossas fileiras, mas pouco se vê sendo feito nesse sentido.
O terceiro ponto está ligado à maneira como conduzimos nossos processos internos e as disputas políticas internas que travamos. Quando um camarada negro é acusado de algum desvio ou conduta inapropriada, a reação tende a ser rápida, com consequências profundas, como afastamentos ou expulsões surgindo desde o começo do processo. Isso é algo que pouco se vê em casos de assédio, vazamento de informações ou desvios de militantes brancos, evidência do recorte de raça presente nesses comportamentos.
Em tribuna interna da UJC vimos um caso de racismo muito claro, no qual a assistência de um núcleo apresentou uma narrativa sobre um militante que estava sendo pensado para um cargo de direção. No caso em questão, se aproveitando de sua condição de militante experiente e figura pública, o assistente apresentou ao núcleo uma imagem de que o militante negro tinha uma linha destoante, desvios carreiristas e tendia a manipular outros militantes. Casos assim mostram como ainda mantemos vivas várias manifestações racistas, como a imagem do negro manipulador em quem não se pode confiar, o que fica ainda pior quando vem de figuras de direção.
Existe racismo na Palestina?
Minha crítica ao tratamento da questão da Palestina não parte de uma posição contrária ao povo palestino, tampouco de negar suas dores e o caráter racista do genocídio em curso em Gaza. Critico, apenas, a postura do PCB, tanto RR quanto CC, frente a isso, mas com maior foco ao RR, do qual faço parte. O partido tem dedicado muita energia à cobertura e aos atos relacionados à guerra da Palestina, o que não seria um problema se fosse mais uma das atividades em andamento, e se fosse adotada como o que de fato é, uma solidariedade e apoio internacional a um povo, e não nossa tarefa primordial da conjuntura.
Ora, vivemos uma conjuntura cheia de tarefas, o governo Lula 3 é de longe o mais neoliberal do PT, e é incapaz de tratar com seriedade a questão racial brasileira, o desmatamento da Amazônia e a questão latifundiária. Nessa conjuntura, temos o dever de reconstruir – ou construir – o PCB, por meio do XVII Congresso, que segue dirigido por Comissões autointituladas, embora tenha uma integração um pouco maior com a UJC.
Temos, portanto, tarefas muito importantes, questões nacionais fundamentais para organizar, como a sindicalização dos trabalhadores de aplicativo, a organização do movimento de cultura na periferia, de ocupações urbanas e rurais, o combate ao latifúndio, sobre o qual não temos acúmulo ou prática alguma, nem mesmo aproximação com organizações como o MST ou a CPT.
Compreendo que lidar com a Palestina é mais fácil, no sentido de que nossa atuação é limitada a posts de rede social e manifestações pontuais. É óbvio que a Palestina é uma luta fundamental na conjuntura internacional, mas, sendo realistas, qual é a nossa capacidade política, organizativa e econômica para contribuir de fato com essa luta? Compor atos e publicar nas redes sociais não tem pressionado nem o governo brasileiro a fazer algo, quanto mais pressionar Israel. Por outro lado, temos uma questão central sobre a qual temos capacidade de agir, mas escolhemos não fazê-lo, pois isso supostamente é competência do coletivo negro.
Expressão disso é a quantidade de tribunas de acompanhamento da Palestina, que são diárias, em contraste com o número de tribunas sobre a questão racial, que normalmente é apresentada como um elemento secundário de um problema maior. As tribunas expressam nosso principal momento de crítica e autocrítica pública entre congressos, é por meio delas que nossas formulações e debates levam a sínteses. A ausência de debates raciais nesse espaço demonstra a falta de preocupação do partido, de modo que não adianta criticar o PCB formal sem superar de fato essa contradição.
Por fim, faço o apelo para que a continuidade da reconstrução revolucionária tenha a questão racial como uma prioridade, pois não podemos dividir o trabalho de modo que apenas os militantes do Minervino formulem sobre a questão, tampouco podemos permitir que ocorram casos de racismo em nossas fileiras! Formulem sobre a questão racial, realizem formações e considerem tudo isso no momento do Congresso! A luta mais fácil não traz resultados profundos e transformadores.