Quilombo da Mussuca, em Laranjeiras (SE), pode virar cimento

A empreitada invasora, sob o pretexto de trazer progresso, ameaça vidas e o meio ambiente. A instalação da mineração traria impactos devastadores à região, incluindo desmatamento, contaminação de águas potáveis, poluição sonora, e danos ao solo e às estruturas das casas.

Quilombo da Mussuca, em Laranjeiras (SE), pode virar cimento
Reprodução/Foto: Leonardo Maia de Alencar/Change.org

Por Redação

O quilombo Mussuca, em Laranjeiras (SE) tem enfrentado desde o ano passado um inimigo que representa a destruição de sua lógica, perspectiva e modo de vida. Desde que foram notificados pela empresa Cimento Nacional da possibilidade de criação de uma unidade de produção de cimento em parte do seu território, sob a retirada do Sítio São Roque de suas terras, a rotina dos moradores nunca mais foi a mesma e passou a ser de luta contra essa investida mortal, que pode ser responsável pela invasão de terras ancestrais na qual residem há mais de cinco gerações.

Folhetos distribuídos à população indicavam a forma truculenta com que se daria a votação que, em três dias, decidirá sobre a retirada de parte do território: apenas os membros do Grupo de Mulheres Produtoras Quilombolas que constam na lista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) teriam direito a votar – o que não envolve toda a comunidade. Utilizando-se da dificuldade histórica da declaração quilombola – marcada por perseguições seculares no Brasil –, a empresa invasora tentou determinar quem teria o direito de decidir sobre o território, utilizando isso a seu favor, já que a maior parte do grupo apoia a entrega das terras.

Ainda nos folhetos, a Cimento Nacional propôs, em compensação da entrega, a "doação" de outros três territórios ao quilombo: as Fazendas Pindoba e Barriguda e o Sítio Andorinha. Contudo, o que revoltou ainda mais a população é que essas terras já pertencem histórica e culturalmente à Comunidade de Mussuca, faltando apenas a titulação. Ou seja, o que deveria ser um ressarcimento era na verdade um desrespeito com o seu território tradicional. A ação da empresa revela uma apropriação oportunista de um problema recorrente em todo o país: a ausência de titulação dos territórios quilombolas.

A empreitada invasora, sob o pretexto de trazer progresso, ameaça vidas e o meio ambiente. A instalação da mineração traria impactos devastadores à região, incluindo desmatamento, contaminação de águas potáveis, poluição sonora, e danos ao solo e às estruturas das casas.

Além da oferta de terras, a narrativa de criação de empregos diretos e indiretos foi o que fez a proposta parecer uma alternativa viável para alguns moradores. A empresa se aproveita de uma das fragilidades estruturais do capitalismo – sua incapacidade de gerar pleno emprego – para cooptar parte da população que está sendo atacada. Essa retórica perversa inverte valores fundamentais: à sobrevivência e a identidade da comunidade estão profundamente entrelaçadas com seu território, mas, diante da falta de trabalho, alguns moradores acabam deixando seduzir por promessas vazias. Já que, quando questionados sobre os empregos diretamente produzidos pela instalação da mineradora, esses não puderam dar uma resposta concreta.

Nesse contexto, o capital age de forma enganadora, tentando destruir a resistência da comunidade, transformando a falta de opções em uma ferramenta de enfraquecimento. Ao invés de oferecer soluções reais, como a valorização da cultura local e a geração de empregos sustentáveis, o que se propõe é a alienação da própria terra. Isso é uma estratégia consciente para desestruturar a luta de um povo que, por séculos, se manteve firme contra os interesses predatórios do capital.

Após serem notificados sobre a tentativa de "troca" do território, um grupo organizado por meio de uma comissão provisória ocupou o local onde se realizaria a votação e impediu que ela acontecesse. Graças à mobilização popular, foi possível, ainda, através de um despacho da Procuradoria do Estado de Sergipe, suspender a decisão até que a população fosse devidamente informada sobre as consequências de uma possível mudança nos limites territoriais, e até que o INCRA fosse convocado para garantir a defesa dos direitos e bens da população quilombola.

No entanto, em uma reunião com representantes do INCRA, a postura intimidatória foi clara. Alegaram que o grupo empresarial era "poderoso demais" e que sua influência tornaria impossível levar o caso a instâncias superiores, como o Governo Federal. Essa retórica, proferida por um órgão que deveria ser aliado dos povos tradicionais, revela um sintoma profundo de um sistema que, em vez de proteger os interesses dos quilombolas, se alinha aos interesses do capital e das elites burguesas.

O governo Lula-Alckmin, durante sua campanha eleitoral de 2022, colocou a titulação das terras quilombolas e a demarcação das terras indígenas como eixos centrais de sua agenda. No entanto, casos como este revelam uma contradição gritante: os próprios aparatos do Estado, em vez de protegerem os povos tradicionais e garantir os direitos, acabam se colocando a serviço dos interesses de seus opressores. A realidade que se desenha é que, enquanto o governo, que teve como base de apoio muitas dessas comunidades, foi eleito com a promessa de pôr fim à caça às bruxas que essas populações viviam, ele se vê incapaz de cumprir com suas próprias promessas.

É profundamente contraditório que um governo que conta com ministérios como o da Igualdade Racial (MIR), dos Direitos Humanos e da Cidadania, e o dos Povos Originários — todos com pautas alinhadas à defesa dos direitos das comunidades quilombolas e indígenas —, se mostre tão ausente e incapaz de intervir em uma disputa que se desenrola sob seus olhos. O Ministério do Meio Ambiente, com suas responsabilidades sobre a preservação territorial e ambiental, também se revela omisso, deixando os quilombolas e indígenas à mercê de forças externas que buscam usurpar suas terras.

A falta de ação diante dessa situação não só enfraquece a confiança das comunidades nos compromissos assumidos pelo governo, como também expõe a fragilidade da estrutura estatal em lidar com a proteção dos direitos mais elementares de seus povos tradicionais. Em última instância, isso revela uma inconsistência estrutural: o Estado, que se apresenta como defensor da justiça social, acaba sendo cúmplice da perpetuação das desigualdades que deveria combater.

O que está em disputa neste caso, além do território, é a própria concepção de relação com a terra. Historicamente, os quilombos surgiram como espaços de resistência ao sistema escravocrata, mas seu significado ultrapassa os limites da mera oposição ao colonialismo. Ao longo dos séculos, esses territórios passaram a representar uma alternativa à lógica capitalista de exploração da terra, que trata o solo como uma mercadoria, um bem a ser despojado até o esgotamento, sem qualquer consideração pela preservação da vida e dos povos que dele dependem.

O quilombo, nesse contexto, se configura como um símbolo de uma relação não alienada com a terra, baseada na autonomia, na comunidade e na justiça social, contrastando diretamente com a lógica do capital. O ataque a esses espaços não é apenas uma invasão física de terras, mas uma tentativa de destruir, mais uma vez, um modelo de convivência que se opõe aos interesses de grupos exploradores de recursos naturais, que tentam expandir suas áreas de exploração para garantir mais lucro às custas da destruição ambiental e da subordinação dessas populações.

Os quilombos, como o da Mussuca, são pilares essenciais da cultura e da resistência histórica. São espaços que preservam tradições e saberes fundamentais para a identidade nacional. Em um momento tão crítico, é vital mobilizações para defender esses territórios e suas comunidades contra os ataques que visam destruir suas terras, sua cultura e seu modo de vida. A luta dos quilombolas é também uma luta pela preservação do meio ambiente, que já sofre os impactos do desgaste contínuo causado pela exploração desenfreada. Assine o abaixo-assinado pela titulação do território quilombola da comunidade Mussuca.